O “Admirável Mundo Novo…”

(Manuel Duran Clemente, in Facebook, 10/04/2022)

(Há textos notáveis e este é um texto notável. Uma reflexão sobre o atual momento histórico, vista pelo prisma de quem se sente português, em Portugal, integrando nessa visão todos os nossos méritos e deméritos, virtudes e defeitos, esses atributos que nos fizeram ser um pequeno país, ainda assim grande por vezes nos cometimentos – dizem alguns. Aqui fica. Para a reflexão de todos. Tanto dos que me aplaudem como daqueles que me querem calar e incinerar.

Estátua de Sal, 12/04/2022)


1. “Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da hipocrisia” podia ser o título dum ensaio sobre o que se lê nas redes sociais e na imprensa… Sobre o que se ouve nas televisões acerca da Guerra na Ucrânia, da perigosa invasão Russa e do esquecimento da estratégia de alargamento da NATO…!!!

A famosa distopia de Aldous Huxley sobre uma sociedade totalitária do futuro, regida pela tecnologia e pelo materialismo e sob a máscara da democracia e da felicidade.

“Admirável Mundo Novo” é uma parábola fantástica sobre a desumanização dos seres humanos.

«Na utopia negativa descrita no livro, o Homem foi subjugado pelas suas invenções. A ciência, a tecnologia e a organização social deixaram de estar ao serviço do Homem; tornaram-se os seus amos. Desde a publicação deste livro, o mundo rumou a passos tão largos na direcção errada que, se fosse escrita hoje a mesma obra, a acção não distaria seiscentos anos do presente, mas somente duzentos. O preço da liberdade, e até da simples humanidade, é a vigilância eterna.»

Encontrei hoje este preambulo assertivo ao pensar que vou deixar de manifestar a minha inquietação nas redes sociais perante a teimosia cega de uma corrente de afirmações pessoais e de uma histeria mediática apostada em inflamar os ânimos com visões parciais e caça às bruxas.

Em vez de iniciativas que imponham rapidamente a paz assistimos a uma onda de narrativa de ódio que se estende a toda uma Europa com censura e xenofobia contra a população russa que não tem responsabilidade com o que está a acontecer e, até, é também sua vítima.

Com uma vergonhosa onda de russofobia decidir penalizar trabalhadores, artistas, desportistas, eventos culturais…como está acontecendo por parte de certas organizações é uma atitude difícil de perceber.

Temos outra pandemia.

Ontem a adquirir medicamentos numa farmácia inquiri uma médica, lá trabalhadora, sobre a sua nacionalidade. Esquivou-se. Insisti. Com o meu instinto disse: “não me diga que é russa?”. Confirmou, com receio. Descansei-a com conforto verbal. Vim no regresso a casa perplexo e abatido. Que mundo é este?!!

2.”Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da hipocrisia” (Continuação).

“O presidente ucraniano, Volodydymyr Zelensky, disse, durante uma entrevista televisiva na segunda-feira, que não vai insistir na adesão da Ucrânia à NATO, uma das questões que motivaram oficialmente a invasão russa”.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky acusa o Ocidente de quebrar promessas sobre proteção aérea.

“Por várias vezes, Putin disse que a adesão da Ucrânia à NATO constituía uma ameaça para os interesses de Moscovo, tendo exigido ao Ocidente que não expandisse a sua zona de influência militar junto das suas fronteiras.”

“O Presidente russo também reconheceu as duas autoproclamadas repúblicas separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia, exigindo agora que Kiev também as reconheça.”

“A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional que está a responder com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e financeiras a Moscovo.”

“Vladimir Putin justificou a “operação militar especial” na Ucrânia com a necessidade de desmilitarizar o país vizinho, afirmando ser a única maneira de a Rússia se defender e garantindo que a ofensiva durará o tempo necessário.”

Estes são cinco parágrafos de notícias recentes conhecidas e dos OCS. De alguma verdade a que temos direito.

Mais há mais quem tenha escrito.

Desta vez Miguel Sousa Tavares, no jornal Expresso, nestas três ideias força:

“E se é verdade que Putin anexou a Crimeia, não é menos verdade que esta sempre fora uma província russa (como a Florida é dos Estados Unidos) — tanto que foi ali, em Ialta, que teve lugar a mais importante cimeira dos Aliados durante a 2ª Grande Guerra, entre Estaline, Churchill e Roosevelt, e que a sua anexação teve o apoio maio­ritário da população, pois a entrega à Ucrânia, durante o tempo da URSS, fora um gesto absurdo do ucraniano secretário-geral do PCUS, Khrushchov.”

“E na questão da adesão da Ucrânia à NATO, com a consequente instalação de tropas da NATO e armas nucleares no seu território apontadas à Rússia, Putin pode estar carregado de razão.”

“Por igual razão, Kennedy esteve à beira de desencadear a terceira guerra mundial quando o mesmo Khrushchov quis instalar mísseis russos em Cuba, apontados aos Estados Unidos. A mesma narrativa não pode ter duas leituras e duas morais diferentes.”» (M.S.T.)

A condenação -da invasão russa – pela generalidade da comunidade internacional pode confortar-nos a todos. A todos que seriamente odeiam invasões mas concomitantemente odeiam meias verdades. Cuidam de evitar entrar no palco da histeria mediática. Sem se darem conta das omissões graves e das visões parciais colocadas à vista de todos. Não só no que tem acontecido mas no que acontece no presente.

Não chega dizer. O passado não justifica o presente. Basta verificar. O presente resulta do passado.

Ontem. Todo o Ocidente lúcido se queixava. Ai o admirável mundo novo!

Hoje todos parecem terem sido vacinados. Acordaram na parte bela e feliz do planeta. A leste do Éden. Bem dentro Paraíso.

3. “Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da histeria” (Conclusão)

Nos anteriores capítulos falei do livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. Hoje vou falar das contradições do saber e não posso deixar de referir “A Rebelião das Massas” de J. Ortega y Gasset…notável pensador “hermano”.

Li-o antes dos meus vinte anos assim como Garcia Lorca, Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez, Simone Beauvoir, Marguerite Yourcenar (esse imortal “Memórias de Adriano”), A. Saint-Exupéry (a “Cidadela” e “Petit Prince”), John Steinbeck (“Ratos e Homens” e a “25ª Hora”), Torga, Camilo, Herculano, Eça, Fernando Pessoa (Obra Poética/ edição, em papel bíblia, de S. Paulo, 1960, que me acompanhou sempre nas viagens desde os meus 19 anos e ainda acompanha). Li outros calhamaços ou muito pequenos em tamanho como o que dizem ser – o mais bem escrito, de sempre (?)- “A Crónica duma Morte Anunciada” de GGM. Também li, escrevi e investiguei Camões, Cervantes e Bocage e até o Luso-Tropicalismo de Gilberto Freyre. Isto nos tenros anos 50, 60 e 70. Depois li muito mais como é óbvio, nunca esquecendo Saramago e para mim o seu eterno “Levantado do Chão”. Li bastante sobre geopolítica e política, como entenderão. No meu exílio – sabia (?) fui exilado na República Popular de Angola – até 09.Set.1976. Exilado por irmãos de Abril e depois deste. Nesses seis meses, com o “frio” da tropical angústia – sem filhos e família -voltei a ler o livro “Rebelião das Massas” que Edmar Edgar Valles, amigo assassinado no 27 de Maio de 1977, me havia emprestado. Fará algum sentido esta narração apologética narcísica? Faz. Na sociedade e “mundo” ignaros de hoje … Só alguns percebem como certas circunstâncias fazem sentido.

Acontece que em setembro passado numa entrevista que dei ao Jornal do Fundão, à ultima questão que me foi colocada, ficou lavrada a seguinte resposta:

Vejo com muita inquietação este crescimento dos extremismos. Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional, que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os mais desfavorecidos e descontentes. Saber mais e melhor é preciso para distinguir oportunismos assaz perigosos…

Isto foi dito, por mim, seis meses antes da invasão da Ucrânia. A nossa sociedade (a não alienada e até a alienada) clamava por mal-estar permanente.

Nós os portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns:

3.1.-Internamente: -*Reféns de uma cultura “de poder pelo poder” em vez “do poder pelas pessoas, pelas nossas gentes”…

*Reféns pela mentira, pela manipulação, pelo “faz de conta”…

*Reféns pelo angariar clientelas a todo o custo…criando elites sôfregas por lugares ao sol…e que por aí vão propagando formas de estar e de vivência nada condizentes com o espírito de Abril…

*Reféns de se fazerem de “ouvidos moucos” das verdadeiras necessidades e ensejos do povo trabalhador…

*Reféns de acções constantes dum asfixiar das responsabilidades cívicas e dos direitos de participação e da cidadania activa que Abril abriu…

*Reféns, por muito que nos custe, do prodígio da incompetência e da estratégia do suicídio…que o mais pessimista de nós nunca esperaria após o 25 de Abril…

*Reféns da ilusão de alternativas salvadores mas que apenas têm escondido o papel de afundadores do País de Abril, repetindo e alternando a farsa a que se entregaram nestas cinco décadas…subvertendo na prática as normas, os fundamentos e as linhas orientadoras da Constituição de 1976…e até querendo atribuir-lhe os males do País…

*Reféns pela incapacidade de desmontar uma intensa ofensiva ideológica levada a cabo pelos órgãos de comunicação, propriedade do grande capital, cujo objectivo tem sido criar condições favoráveis à continuação da política dos poderosos…e à desqualificação da vida dos trabalhadores…

*Reféns da corrupção, da apropriação, assalto e esbulho aos bens, que supostamente deveriam estar ao serviço de todos os cidadãos, mas têm servido para a criação de coutadas geradoras de lucros e escandalosas remunerações e prémios anuais recordes do mundo …

*Reféns, pecado maior, do mando dos grupos financeiros e económicos nacionais, a cuja subordinação, esta nossa democracia já compete com os piores tempos da ditadura…

E, ainda mais, a nível global, éramos ou estávamos reféns:

3.2-Externamente: -*Reféns duma débil e falsa União Europeia (um gigante de pés de barro) para onde partimos (em 1985) apenas com dez anos de democracia e com um estrondoso atraso estrutural económico (herdado da ditadura) que só por si merecia, como muitos avisaram, outro tipo de negociações, outras cautelas, leviana e festivamente, desprezadas…

*Reféns da incapacidade de fazer valerem os pontos de vista nacionais, submissos à abdicação e imposição que nos fragilizaram em sectores económicos vitais (como nas pescas, na indústria e na agricultura…) entre outras malfeitorias semelhantes…

*Reféns ou aliados à cegueira de não perceber que a crise internacional teve responsáveis…os mesmíssimos que agora a querem curar à custa dos mais fracos e dos que são sempre sacrificados: quem trabalha e produz…

*Reféns ou cúmplices da ignorância do que tem acontecido aos povos que recorreram à designada “ajuda externa” que não é mais do que um “eufemismo” porque significa tudo menos ajuda. É exploração, é especulação, é ingerência…

*Reféns duma lógica de integração capitalista que é o aumento da acumulação e concentração de capital dos grandes conglomerados de empresas, dos monopólios dos países mais ricos e desenvolvidos que não só engordam à custa do saque dos países do terceiro mundo, como também dos países menos desenvolvidos da U.E….

*Reféns, pecado ainda maior, de não perceber que as ditas crises financeiras resultam das crises do capitalismo e baseiam-se sempre na sobre acumulação de capital na esfera da produção. Não perceber que perante as crises ou impasses o capital monopolista irá tornar-se mais agressivo, predatório e sem escrúpulos, intensificando a exploração dos trabalhadores. O objectivo é a redução do custo da força do trabalho…

*Reféns de não perceber ou ser cúmplices de que nenhum pacto, mecanismo ou programa de estabilidade, poderá, só por si, debelar a crise ou resolver as contradições do capitalismo, como ataque selvagem e bárbaro do capital contra os direitos e vida dos trabalhadores, das camadas populares e dos jovens… …

*Reféns de não compreender que com a continuação das politicas e dos comportamentos ,que teimosamente o Capital impõe ( perante o qual se têm vergado os responsáveis portugueses)…com a continuação dessas políticas o desemprego, a pobreza, e as contradições entre os estados-membros da U.E. irão aumentar, com graves consequências para os povos…

*Reféns de não entender que a escalada de ataques antipopulares atingirá todos os estados membros da U.E, porque o Capital Monopolista quer é reduzir o custo da força do trabalho, o seu objectivo fulcral é reforçar a competitividade não só em relação aos EUA, mas também em relação às forças emergentes como China, India e outras, com mão de obra muito mais baixa… a questão dos défices e dos endividamentos pode ser apenas e tão somente uma cortina de fumo…

Nós os portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns destes factores.

Milagre. Com a brutal invasão do capitalista “putinista” deixámos de estar reféns? Ou, ao invés, ainda podemos ficar mais presos, mais pobres e mais alienados?

O título do livro de J. Ortega Y Gasset engana os ingénuos e incultos. Não trata da revolta do povo sacrificado. Trata do povo massificado pela poluição corrente da atmosfera. Poluição igual a ignorância. Ignorância igual a POPULISMO ou a pior. Hegemonia do obscurantismo, obstáculo do progresso e da união cidadã para uma sociedade melhor, mais verdadeiramente igualitária e solidária. Menos enganosa e hipócrita.

Viva Abril.


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11 pensamentos sobre “O “Admirável Mundo Novo…”

  1. Olha quem este blogue escolhe para vir aqui pronunciar-se sobre este conflito! O ex-capitão bandalho, de melenas compridas, um ultraje à imagem do militar comum que, felizmente, foi silenciado perante as câmaras da RTP em 25 de Novembro. Auto-imposto pivot de telejornal revolucionário, foi dos que queriam levar a revolução de Abril para o caminho que o nosso povo já tinha rejeitado com todas as letras. Como é que este espaço mediático não se dá ao menos ao respeito?

    • Chama-se pluralismo.

      E TODOS os que fizeram Abril, mesmo os do Verão Quente, são quem nos deu a liberdade e a possibilidade de pluralismo, ainda antes da Constituição ser aprovada em 1976 e nos tornar oficialmente uma Democracia.

      Aliás, como cada vez mais se percebe, o 25-Novembro até foi um reajuste com boas intenções, mas de boas intenções está o Inferno cheio, e o que se vê hoje é que na prática o que o 25-Novembro fez foi criar as bases para hoje não termos pluralismo, e em vez disso termos todos os OCS nas mãos do “critério editorial” dos seus donos Capitalistas.

      O resultado disso é o fim da Geringonça, e o crescimento da Extrema-Direita económica (IL) e a Extrema-Direita Fascista (Chega) que nem sequer o 25-Abril queriam. Todos levados ao colo por canais cheios de comentadores à lá Ventura e onde opinião do PCP não entra.

      Assim, este blog merece o meu elogio. Aliás, vendo agora as coisas à distãncia, peço desculpa pela minha infantilidade de ter tanto criticado o dono do blog por publicar tantos textos de Sócrates e seus defendores.
      Eu estava errado, a EstátuaDeSal estava certa. Mas a vida é mesmo assim, só os burros é que não aprendem.

      As ideias devem valer pelo conteúdo, e não serem julgadas à partida com preconceito em relação ao seu autor. E a discussão num Mundo Livre e Democrático não pode “SE” se publica ou se censura, mas sim como debater ideias civilizadamente com quem discordamos.

      A lição que a EstátuaDeSal me deu nestes anos todos, e em especial desde 24-Fevereiro-2022, é uma que espero manter toda a vida. Portanto, posso concordar mais ou menos, posso discordar até na totalidade, posso debater e criticar as ideias do autor (acima de tudo daqueles de que não gosto nada, como Sócrates ou Miguel Sousa Tavares) mas não voltarei a criticar a publicação de qualquer texto.

      E também este pluralismo, embora secundário, é um exemplo. Eu não me lembro de um único comentário censurado neste blog. Mas vejo com fartura blogs que só publicam comentários amigos, e blog e até jornais que já deixaram de ter secção de comentários. Pois o contraditório incomoda-os e não toleram nada fora do “pensamento” único.

      A exceção, em qualquer Estado de Direito minimamente decente, é quando a opinião deixa de ser opinião pois passou a ser apenas ódio contra alguém ou contra determinado grupo de pessoas. E o ódio é crime, pois xenofobia ou racismo, anti-semitismo ou islamofobia, não são opinião. São apenas grunhidos. E peço já desculpa aos porcos e javalis pela comparação.

      Por falar nisto, e a terminar, lembro outro grande professor da minha ideologia democrática e plural: Karl Popper. Ser intolerante para com os intolerantes, não é censura. É defender as vítimas dos intolerantes, e é defender a Democracia e o Pluralismo, que acabariam se os intolerantes chegassem ao poder. Foi uma lição que ele aprendeu ao ver como o nazismo cresceu na Alemanha e como, depois de ser tolerado e chegar ao poder, fez o que todos sabemos que fez.

      Por isso percebo o que as pessoas russófonas sofreram nestes 8 anos, em especial os bombardeados (e +13 mil assassinados) em Lugansk e Donetsk. E percebo quem foi em seu auxílio depois de perder a paciência em 2022. O que não percebo é como ouvi hoje na SIC (que só vi por estar na casa de outra pessoa) um “jornalista” a festejar o facto de alguns nazis do Batalhão Azov terem ALEGADAMENTE (a Rússia diz que matou 50 e aceitou rendição dos outros 42: https://southfront.org/military-situation-in-mariupol-on-april-12-2022-map-update/) conseguido fugir ao cerco em Mariupol. Ele disse que foi “uma boa notícia”. Uma boa notícia um grupo de nazis fugir a quem os quer levar à justiça (seja já a da bala, seja a do tribunal mais tarde)? Eu pergunto: “boa notícia” para quem? O Ocidente está louco!

    • Bem, percebo que o Sr. Aguinaldo nutra desconfiança em relação a este capitão de Abril que pertenceu à minoria que nos queria enfiar pelos olhos dentro um tipo de sociedade que nem de longe queríamos. Alguns entusiastas não perceberam que aquela utopia só nos podia desgraçar e lançar no abismo. E isso só não se concretizou porque o bom senso prevaleceu e a maioria da nação e dos militares de Abril restauraram a ordem sem a qual nenhum “Abril” seria alguma vez possível. Absolutamente nada tinha a ver connosco a sociedade comunista defendida por Cunhal e decalcada da da Rússia, da de Cuba ou de outros lugares onde ela faliu desastrosamente. Essa utopia estava ao arrepio da própria natureza da nação portuguesa e do espaço geográfico onde ela se integra e procura nortear o seu destino.
      É possível que o senhor Duran Clemente (não sei se militar ainda) tenha reflectido sobre a insensatez de outrora, mercê de leituras sérias e de uma visão do mundo rasgada com outra lucidez, encarando-o tal como ele é, com as suas grandezas e as suas misérias, e não como o idealizamos. O mundo vai girando e o tempo correndo, e a par e passo deparamos, desgostosos mas não surpreendidos, que o ser humano é a espécie que é e o mundo em que vivemos é o que ele consegue gerar e não aquele que surge como uma auréola boreal no fundo dos nossos sonhos. Esse mundo nunca vai existir, e é por isso que os séculos se sucedem e das trevas emergirão sempre os demónios da guerra. Foi assim no século XX, é assim neste século e será sempre e sempre assim pelos séculos vindouros. Até encerrar-se o capítulo final da civilização humana, ou da sua existência no planeta. Yuval Harari estima que ela não durará mais um milénio, mas pode até acontecer que esteja nas mãos loucas do Sr. Putin abreviar esse prazo de validade, acaso o desatino troque as voltas às suas meninges de ex-espião do KGB.
      Estou de acordo com o Sr. Clemente quanto a um ponto da sua reflexão. É aceitar e compartilhar a opinião de que um mundo melhor mais justo, mais igual e mais seguro, não poderá ser configurado em função da lógica do neocapitalismo puro e duro que hoje tende a consagrar-se e a impor-se até onde o marxismo-leninismo era a outra arquitectura de alternativa.
      No fundo, o Sr. Clemente está como eu e todos os homens de boa vontade. Não sabemos bem o que queremos como solução para o mundo porque o problema é bem complicado. Socialismo utópico, socialismo científico, socialismo cristão ou social-democracia, este último é que ainda assim pode terçar amas e pôr rédeas ao neocapitalismo. Mas teme-se que a galvanização do neocapitalismo se torne incontrolável e que a civilização fique órfã de verdadeira ideologia, o que poderá ter a vantagem de os problemas mundiais se resolverem apenas e simplesmente pela mecânica dos negócios e da interacção comercial. Se assim for, as armas não terão mais força que o triunfo das economias e seria o ocaso das guerras?
      Mas as expectativas são escassas ou difusas quando há uma potência – a Rússia – que resolve invadir e atacar um país europeu do tamanho da Ucrânia. Esse país usa argumentos que se julgava já arrumados num canto da história.
      Daí eu estar convencido de que o único responsável pela tragédia humana que caiu sobre os ucranianos não pode ser imputado senão ao líder da Rússia. Culpa-se a NATO de antecedentes que o comprometem, mas seria impensável ver a NATO ou qualquer dos seus membros a invadir outro país europeu.
      O que é intolerável é o clima de russofobia e concordo totalmente com o que o Sr. Duran Clemente denunciou citando o caso da farmacêutica. É inadmissível e compete às autoridades públicas agir no sentido do esclarecimento dos cidadãos. Aliás, se russofobia existe não é mais que um sintoma daquilo que atrás referi a respeito da natureza humana, que é capaz de comportamentos demenciais como de atitudes de bondade e solidariedade.

    • Aguinaldo Faria

      Eu não estou de acordo com a opinião de Duran Clemente, mas tenho muito apreço por ele !

      Quanto aos trabalhadores, escritores, músicos, compositores, etc. que estão a ser vítimas da estupidez xenófoba do Ocidente, sim, é verdade !

      Como é verdade que também o Povo russo que se manifesta contra esta guerra, também é vítima de perseguições, bastonadas selváticas e prisões, por verem os seus filhos morrerem numa guerra inútil e injusta, a mando dos filhos da Putin e dos seus generais, e se rebelarem públicamente contra ela !

      É nisso e só nisso, que eu não estou de acordo com Durão Clemente. Quanto a haver aqui um bandalho, claro que há, também não se dá ao respeito…Mas não é o Durão Clemente !

  2. A 25 hora é de Virghil Gheorgiu. Um livro extraordinário que li há muito tempo. As leituras apontadas foram também feitas por mim na sua maioria. Mas falando da guerra, ou melhor da destruição das vidas humanas, as causas apontadas justificam estas mortes e destruições? Devemos indignar-nos pelo ostracismo a que está votada a cultura russa e os russos em geral, com certeza. Não nos podemos indignar com os horrores da guerra e com as consequências a nível europeu e talvez mundial? As ameaças de guerra nuclear, química e biológica não aconteceram? Não apoio ninguém que justifique esta guerra, lamento veementemente os horrores que ela causa.

  3. É de facto um grande texto, quem me dera que mais gente raciocinasse assim, independentemente de no final ter uma ou outra opinião. Mas a realidade é o que é, por isso tem uma ironia de que só a realidade é capaz:
    – em França, após 5 anos do Extremo-Centro NeoLiberal e EuroFanático, a candidata que anda nas sondagens em torno dos 49% (e se noutras está abaixo, noutras já passou a estar à frente!), defende que a França saia da NATO!! Isto depois do incumbente ter anunciado a sua morte cerebral, e de no último mês ter dado a cambalhota dizendo que o “morto cerebral” afinal está bem vivo e unido…

    Mas será essa candidata Le Pen menos belicista que Macron e companhia? Não. É simplesmente menos Atlantista, mais Soberanista. E de uma posição de EuroCeticismo até anos recentes, esta Extrema-Direita de NeoFascistas, passou a ser Europeísta (mas com os “valores europeus” mais ao estilo dos do Polaco Duda e companhia, ou até em certos pontos daquele neerlandês que nos acusou xenofobamente de no Sul gastarmos muito dinheiro em mulheres e vinho…), e quer mudar a UE por dentro. Ou melhor, quer mandar na UE, para poder mandar nos outros todos, mostrando assim que aprendeu com e terrível exemplo que os do Extremo-Centro e EuroFanáticos nos deram nestes 20 e tal últimos anos.

    Reparem bem que Le Pen pode assim vir a liderar o princípio do fim da NATO, e ser a primeira NeoFascista a liderar o tal Exército Europeu que se quer criar, para mandar os nossos jovens defender os seus interesses, em vez de enviar os nossos jovens defender os interesses dos EUA.
    Até parece uma coisa boa (ou menos má) na teoria, mas na prática é apenas um confronto de elites e oligarquias, umas que lucram mais se derem os seus povos como carne para canhão americano, outras que lucram mais se derem o seu povo como carne para canhão dos próprio interesses nacionais. Ou seja, o mesmo Capitalismo agressivo e mortal, mas apenas com ligeiras diferenças quanto ao que fazer junto às fronteiras…

    Ainda assim, a NeoFascista pode ser o primeiro passo para a garantia de paz na Europa num futuro próximo. Aliás, o NeoFascista Orbán já mostrou isso mesmo, ao ser o único com bom senso para não enviar armas da NATO (cujo objetivo [não da NATO, mas do seu dono EUA] é só tornar o conflito o mais duradouro possível) para o derrotado mais que previsível da Ucrânia.
    A realidade é mesmo o próprio cúmulo da ironia!

    Pensam estes lunáticos (a maioria dos tolos Europeus que só vêm o curto prazo dos seus calendários eleitorais internos) que a Rússia esperou 14 anos (desde provocação com convite da NATO à Ucrânia e Geórgia) e início das sanções (sim, foi em 2008 que a guerra económica começou contra a Rússia e Ásia Central), e que chegados aqui, e com toda a guerra de 8 anos no Donbass, mas a guerra do Azerbaijão (com armas da NATO/Turquia e Israel) contra a Arménia, que Putin tomava esta decisão de invadir o 2º maior país Europeu só com capacidade militar para 1 ou 2 meses? Se pensam isso, então são ainda mais parvos do que eu já os acusava.

    Mas quem presta boa atenção à realidade (ao contrário dos oportunistas de vistas curtas, ou dos desinformados pela “imprensa livre”), é quem mais perto está da verdade, ou pelo menos de perceber para onde caminhamos a médio prazo e como evitar dar tiros nos pés. Assim, lembro-me que já em 2015 se debatia nos EUA, entre apoiantes de Clinton/Obama/Biden de um lado, e apoiantes de Trump do outro, que a decisão eleitoral nos EUA ou iria mudar o próprio país, ou o Mundo. Uma vitória vermelha (GOP, Republicanos) resultaria numa guerra civil, e uma vitória azul (Democratas) resultaria numa guerra mundial. Nem o Nostradamus esteve assim tão perto de acertar!

    Assim, espero só que a humanidade chegue viva a 2024 (e para lá disso, obviamente), e que só uma das previsões se concretize, para bem de todos (a subsituição dos Imperialistas belicistas azuis, pelos Soberanistas belicistas vermelhos). E também aí, com o NeoFascista (seja Trump ou outro) a ser mais garante de paz do que o NeoLiberal.

    É triste ter de escrever uma coisa destes, ainda para mais sabendo que o Mundo podia estar todo tão melhor, se num caso ganhasse Sanders, e no outro ganhasse Mélenchon. Sinto-me como os eleitores franceses que ontem na Euronews diziam-se tão desiludidos que lhes parecia que a 2ª volta das suas eleições seria a repetição da história de 2017, mas agora como farsa, e que a “escolha” que lhes era dada era entre a peste e a cólera.
    Não sei se a previsão “Macron 2017 = Le Pen 2022) vai mesmo concretizar-se, mas faço já aqui outra que espero que se venha a verificar: Mélenchon 2027.

    A propósito da Euronews, reparei que este canal, antes garante de independência q.b. sobre assuntos políticos e internacionais, está também a ir pelo mau caminho. É que o mesmo canal que se recusa a chamar Extrema-Direita aos Nazi do Batalhão Azov, ou a membros do SBU que ainda hoje ostentam o nome e símbolo da Divisão Galícia das SS Nazi (como se pode ver aqui: https://odysee.com/@RT:fd/army_symbols_11_04:8), no mesmo dia chamou “Extrema”-Esquerda a Mélenchon. Ou seja, «glorificar o nazismo tudo bem, mas defender os trabalhadores é que já não pode ser». Senti vergonha alheia, pelo “jornalista” da Euronews que disse tal barbaridade, e pelo “critério editorial” (o nome da auto-CENSURA dentro do Capitalismo) a que os jornalistas estão obrigados a seguir para manter o emprego…

    Se eu já tinha desistido de ver notícias em canais Portugueses, estou agora inclinado a deixar de ver também a Euronews. Recuso ser insultado e enganado desta maneira. Talvez aproveite o tempo extra para colocar as leituras em dia, como tão bem fez o Manuel Duran Clemente.

  4. Houve um tempo em que a guerra era travada com pedras e flechas e em que o mundo estava interligado de uma forma muito limitada, mas hoje o mundo não é assim. Não se trata só de globalização. A tecnologia tornou tudo muito próximo e tudo se move à velocidade da luz. Acreditar que Portugal pode passar ao lado de uma guerra da magnitude da que está a acontecer na Ucrânia, é ingénuo.
    A guerra existe e está aí! É obrigação dos nossos representante políticos procurar a paz, mas não a qualquer preço e, independentemente, de todos os motivos que nos trouxeram aqui, há uma posição que tem de ser tomada.
    Alega-se que a Rússia tem bons motivos e justificação para se lançar neste ataque, mas ignora-se o mais óbvio de tudo:
    – Será esta uma guerra do Povo Russo ou uma Guerra de um ditador totalitário?!

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