Acerca de crimes de guerra
10 de abril às 17:10 ·
Publicado no jornal PÚBLICO da AUTORIA de José Pedro Teixeira Fernandes,
Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
09de ABRIL, 2022“Os crimes de guerra na Ucrânia e a Justiça internacional.”
A Justiça penal internacional está perante um fortíssimo dilema de grandes repercussões. Conforme actuar, ou não actuar, na Ucrânia, reforçará a sua legitimidade ou sairá ainda mais descredibilizad
1. Quando vemos as atrocidades cometidas na guerra da Ucrânia as memórias das guerras europeias do passado vêm à mente. O Direito Internacional Humanitário (DIH) data do século XIX e está ligado a Henry Dunant, o fundador da Cruz Vermelha Internacional. As suas Memórias de Solferino, um relato do enorme sofrimento humano na batalha de Solferino de 1859 — um dos episódios mais sangrentos das guerras de unificação de Itália —, impulsionaram a regulamentação jurídica da guerra. Nessa altura, o uso da força militar era entendido como uma forma normal de prosseguir objectivos de política externa.
As enormes tragédias das duas guerras mundiais do século XX levaram à proibição de fazer a guerra. A grande excepção é o direito de defesa individual e colectiva. As Convenções de Haia de 1899 e 1907, a Carta das Nações Unidas de 1945, a Convenção das Nações Unidas de 1948 sobre o genocídio, as Convenções de Genebra de 1949 são as traves-mestras do DIH. Para além da ilegalização da guerra, limitar a violência nos conflitos armados poupando aqueles que não participam nas hostilidades é o seu principal objectivo.
2. Quanto ao dispositivo de salvaguarda judicial do cumprimento do DIH, a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) em 1998 foi uma inovação jurídica do final do século XX. Tal como é dito no Preâmbulo do Estatuto de Roma, tem “carácter permanente e independente no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afectem a comunidade internacional”.
Nos termos do artigo 5.º, n.º 1 do referido Estatuto de Roma do TPI, tem competência para julgar os crimes mais graves que afectam a comunidade internacional: o genocídio; os crimes contra a humanidade; os crimes de guerra; e o crime de agressão. Os seus antecedentes estão nos julgamentos de Nuremberga de 1945-1946 dos criminosos de guerra nazis.
No plano das ideias, deve muito a Hersch Lauterpacht, o jurista que cunhou o conceito de crime contra a humanidade, e a Rafael Lemkin, um outro jurista que criou o conceito de genocídio. O livro de Philippe Sands Estrada Leste-Oeste: As Origens do Genocídio e dos Crimes Contra a Humanidade (trad. port., Vogais, 2019) é uma leitura que se impõe neste contexto. Leva-nos à Ucrânia de inícios do século XX, especialmente à cidade de Lviv (Lemberg em alemão, Lwów em polaco e Lvov em russo), onde Lauterpacht e Lemkin foram estudantes de Direito.
3. Inquestionavelmente, o DIH e o TPI foram desenvolvimentos civilizacionais notáveis sobretudo do século XX. Este último tribunal abriu a possibilidade de indivíduos, não apenas Estados, serem julgados num tribunal penal internacional permanente. Todavia, ambos enfrentam hoje um duplo (e grave) problema: a difícil aplicação das suas normas à realidade da guerra contemporânea e a dificuldade de sancionar todos os infractores.
Começando pelo primeiro problema. O modelo jurídico subjacente ao DIH vê as actividades bélicas como um duelo entre combatentes (forças militares identificadas como tal, ou equiparadas), que devem travar combates à margem das populações civis e de instalações materiais civis. Assim, o DIH está construído de uma forma que pressupõe uma separação nítida entre combatentes e não combatentes, entre alvos militares e alvos civis, entre proporcionalidade e desproporcionalidade no uso da força, entre armas proibidas e não proibidas.
Esse talvez seja o mundo das operações de paz envolvendo forças militares. Não é o mundo real da guerra convencional de atrito contemporânea. Aí quase sempre tais distinções se esbatem, seja pelas dificuldades de as efectuar em situação real de guerra — onde se trava uma luta de vida ou de morte —, seja porque as partes em confronto amplificam o problema (por exemplo, misturando deliberadamente combatentes militares e civis ou usando instalações civis para cobrir instalações militares, ou outras tácticas que impossibilitam a distinção.)
4. Para além da dificuldade de destrinçar, na prática, o que são condutas lícitas e ilícitas de guerra, há um segundo problema, o do sancionamento dos infractores, seja eles quem forem, conforme resulta da ideia de justiça. O problema leva-nos às instâncias jurisdicionais internacionais criadas para os punir, desde logo ao TPI. Como notado, tem competência para julgar crimes que afectam a comunidade internacional no seu conjunto, ou seja, a generalidade da humanidade. No entanto, a situação é bem mais complexa do que um simples olhar jurídico sugere.
Há, desde logo, a questão prévia da sua legitimidade, ou seja, de saber se representa efectivamente uma justiça de (e para) toda a humanidade. Em 193 Estados das Nações Unidas, 123 são parte do TPI, o que dá uma maioria de mais de 60%. Nessa óptica, há uma (quase) globalidade. No entanto, em termos geográficos a imagem é diferente. Enquanto a Europa e o Ocidente têm 43 Estados — o maior número —, a África tem 33 Estados; a América Latina e Caraíbas têm 28 Estados; e a Ásia-Pacífico — onde vive a grande maioria da população mundial — apenas 18 Estados. Mais significativo, e limitador da sua legitimidade e também da eficácia, é nenhum dos cinco Estados mais populosos do mundo — China, Índia, EUA, Indonésia e Paquistão — serem parte do TPI.
5. Não é um acaso que todas as grandes potências, sejam autoritárias (China e Rússia) ou sejam democráticas (EUA e Índia), se tenham colocado à margem do TPI, não se vinculando ao Estatuto de Roma. Se há algo em que todas estão de acordo é que a jurisdição do TPI não se aplica aos seus nacionais. Também não é um mero caso que esse afastamento contraste com a presença em massa dos europeus da União Europeia, os maiores e entusiásticos apoiantes desse tribunal.
Os primeiros — as grandes potências, desde logo os EUA — sempre encararam a possibilidade real de se envolverem em guerras convencionais onde as normas do DIH são quase sempre incumpríveis, pelas razões anteriormente explicadas. Assim, não quiseram ficar sujeitos a uma jurisdição internacional vista como potencialmente lesiva dos seus interesses políticos e da sua soberania.
Quanto aos segundos — os europeus da União Europeia —, foram, como notado, os mais entusiastas na criação do TPI, vendo aí uma realização do ideal de paz perpétua kantiana e do seu modelo normativo. Na realidade, também só imaginavam usar as suas forças militares em operações de paz das Nações Unidas ou operações humanitárias multinacionais da NATO, não em operações de combate, pelo que não tinham o problema das grandes potências.
O TPI nasceu no meio de um idealismo legalista, mas também de hipocrisia política: para muitos é uma boa ideia, mas para aplicar aos outros. Entusiasma os que não se vêem a usar a força militar em guerras, irrita os que têm de a usar.
6. A ideia de justiça é complexa e multifacetada. No entanto, nada afecta mais o sentimento de justiça/injustiça do ser humano que a percepção de que casos similares são tratados de forma diferente, nem de que a justiça é branda (ou não persegue) os mais fortes e de que é dura (e só persegue) os mais fracos. Um sentimento de existir uma justiça penal internacional enviesada e permeável ao poder dos mais fortes — ou seja, de grande injustiça — instalou-se já em África (e noutras partes do mundo).
Na realidade, se formos ver os casos onde até agora decorrem processos de julgamento no âmbito do TPI, praticamente só encontramos políticos, militares ou responsáveis por milícias africanos. África tem sido onde o TPI tem tido a maior parte da sua actuação. Este número elevado de processos é visto como prova de uma justiça distorcida, com critérios variáveis e permeável sobretudo aos interesses do Ocidente.
Nas críticas mais cáusticas feitas por africanos, o Tribunal é mesmo acusado de ser um instrumento neo-colonial nas mãos dos ocidentais. Em 2017, a União Africana aprovou até uma resolução sobre a possibilidade de abandono colectivo do TPI. Alguns Estados saíram mesmo como o Burundi e a África do Sul — esta última reverteu depois a sua saída devido a uma decisão constitucional interna —, mas não houve abandono generalizado, pelo menos até agora.
Alguns maus exemplos prejudicam agora a imagem de primazia moral — e de prosseguir a justiça em nome de toda comunidade internacional — que o Ocidente pretende dar ao mundo. É inevitável concordar-se que o mesmo padrão de justiça deveria ser usado noutras guerras (Iraque, Afeganistão, Iémen, Etiópia/Tigré) e não foi
7. A percepção de que a justiça internacional não persegue nem julga os mais fortes (e usa critérios díspares) vai estar, ainda mais, sob escrutínio da opinião pública mundial.
Nos últimos tempos, emergiram substanciais indícios de crimes de guerra na Ucrânia que terão sido cometidos pelas forças militares russas, seja o exército regular ou mercenários/milícias ao seu serviço. O Ocidente — em particular os EUA e o seu Presidente Joe Biden — está na linha da frente dessas acusações, assumindo um papel moral, jurídico e político em nome da comunidade internacional. Propõe-se levar os responsáveis à justiça, não deixando impunes os graves crimes de guerra cometidos contra civis ucranianos.
Todavia, há enormes obstáculos nesse percurso. Surgem, desde logo, as contradições morais do Ocidente — em particular dos EUA — pelas guerras em que esteve envolvido. Afectam o sentimento de que há uma justiça que está a ser genuinamente prosseguida em nome de toda a comunidade internacional aplicável da mesma forma a todos os seres humanos. É necessário lembrar aqui que os EUA sempre se opuseram a participar no TPI e a aceitar qualquer jurisdição penal internacional sobre cidadãos do seu país. No caso das iniciativas de investigação de potenciais crimes de guerra cometidos no Afeganistão, os juízes desse tribunal foram até ameaçados da aplicação de sanções pelos EUA.
Inevitavelmente, esses maus exemplos prejudicam agora a imagem de primazia moral — e de prosseguir a justiça em nome de toda comunidade internacional — que o Ocidente pretende dar ao mundo. Nada disto invalida (nem é argumento válido para afastar) o ultraje moral e compaixão pelo enorme sofrimento humano dos ucranianos devido a crimes de guerra contra civis. Nem também para abandonar uma vontade determinada de agir internacionalmente para punir os seus perpetradores. Mas é inevitável concordar-se que o mesmo padrão de justiça deveria ser usado noutras guerras (Iraque, Afeganistão, Iémen, Etiópia/Tigré) e não foi.
Estamos numa encruzilhada. O Ocidente, apesar de manter um grau de influência importante no mundo, perdeu gradualmente terreno. E o resto do mundo está em gradual ascensão (a China ambiciona a primazia mundial), mas não tem ainda poder suficiente para o reconfigurar à sua maneira
8. A justiça penal internacional está perante um fortíssimo dilema de grandes repercussões. Conforme actuar, ou não actuar, na Ucrânia, reforçará a sua legitimidade ou sairá ainda mais descredibilizada. Mas as circunstâncias políticas são extraordinariamente adversas. O TPI tem a sua margem de actuação largamente condicionada pelo facto de a Rússia não ser parte deste. Quanto à Ucrânia, também não ratificou o Estatuto de Roma, só mostrando interesse em colaborar com o TPI após a deterioração das suas relações com a Rússia. A sua acção está provavelmente bloqueada quanto a um possível julgamento e eventual aplicação de sanções penais por crimes de guerra a militares e/ou políticos russos.
Aqui, é necessário voltar a insistir num ponto: a legitimidade da justiça aos olhos do mundo não é exactamente a mesma coisa do que a legitimidade aos olhos do Ocidente. A queixa no TPI para investigação de crimes de guerra cometidos pela Rússia — apresentada por 38 Estados, todos ocidentais ou politicamente próximos — evidencia o problema. Não estamos no mundo de 1945 onde o concerto das grandes potências vencedoras da guerra permitiu criar o Tribunal especial (militar) de Nuremberga. Nem no imediato pós-Guerra Fria, em 1993/1994, onde foi possível, pelo consenso dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, criar tribunais had hoc para os crimes de guerra cometidos na antiga Jugoslávia e no Ruanda. Com as profundas divisões políticas do mundo, essa é agora uma (muito provável) impossibilidade.
No Conselho de Segurança, para além da Rússia, que sempre poderia vetar, nada indica que a China, nem a Índia, nem outras potências não ocidentais tenham interesse na criação de um tribunal especial (had hoc) para os crimes de guerra na Ucrânia. Se, ainda assim, hipoteticamente for criado, será um empreendimento de Justiça ocidental, o que lhe limita o alcance.
Estamos numa encruzilhada. O Ocidente, apesar de manter um grau de influência importante no mundo, perdeu gradualmente terreno. Não tem a possibilidade de configurar as instituições mundiais como teve após a II Guerra Mundial, nem na década de 1990, onde teve o último grande momento de poder hegemónico. E o resto do mundo está em gradual ascensão (e a China ambiciona a primazia mundial), mas não tem ainda poder suficiente para o reconfigurar à sua maneira. O resultado é um mundo com profundas rivalidades políticas e fragmentado, onde o bloqueio da Justiça internacional na Ucrânia é um dano colateral.
IMAGEM da WIKIPÉDIA de eventual crime de guerra
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