sábado, 30 de dezembro de 2017

OS VEICULOS E EU...

ALGUMAS PESSOAS ME PERGUNTAVAM POR QUE NÃO CONDUZIA E COMO NÃO TEREI QUALQUER POSSIBILIDADE DE EXPLICAR ORALMENTE, DECIDI ESCREVER SOBRE O TEMA, ASSIM:




                         OS VEICULOS E EU...


                                          I


Também nesta área, familiares e amigos tentaram, com verdadeiros esforço e boa vontade, perceber a minha relutância ou falta de entusiasmo em relação aos mais comuns meios de locomoção individuais
 Eu próprio queria perceber melhor, até que ponto é real ou apenas uma reação num momento de choque violento. Vamos avançar.
Na aldeia, é verdade, tudo começa na aldeia, como eu, só havia: nem meia dúzia de carros de vacas (isto no início da década de cinquenta), duas bicicletas, a do Viterbo e a da filha do senhor Aleixo, e um jeep, o do senhor Aníbal Soares que, mesmo sendo jeep, era com alguma dificuldade que fazia o trajeto da Quinta do Custódio para Castelo Melhor, ou o inverso. Sobretudo a seguir às bátegas de água que deixavam os caminhos com buracos de muito respeito, uns senhores buracos!
Como terá sucedido com outros de sempre, também os da minha idade fizeram carros com rodas de tábuas, mas ou menos circulares, tal como fizeram aviões de papel e respetivos e até balões, como os das festas, não como meio de transporte, nem com outra intenção senão a de tentar imitar o que víamos e nos despertava mais curiosidade. Só muito mais tarde, nem sei bem onde, soube que um luso-brasileiro, no inicio do século XVIII um balão que poderia ser um meio de transporte.
Um projeto que nunca abandonámos e que teria sido a nossa grande criação espetacular, pois pretendia transportar pessoas, teve a sua intransponível dificuldade no fracasso em fixar quatro "raios" de madeira, em aros de pneus, aquela parte dos rebordos onde estão umas dezenas de fios de arame de aço, onde os pregos, para segurar os tais raios de madeira,  que no centro levaria o eixo, foi um obstáculo que nunca conseguimos vencer, aquela barreira de fios de aço.
Primeiro fracasso!
Quando cheguei a Lisboa, isto para não perder tempo com pormenores que nada trazem de melhoria ao discurso, já lá havia um pouco de tudo: bicicletas de corrida, sobretudo usadas pelos boletineiros da Marconi para entregarem os telegramas, dos quais eu gostava especialmente, quando nos seus arrepiantes slalons por entre as filas de automóveis, caótico por vezes, ultrapassavam todos, pela esquerda ou pela direita, raramente parando; havia também as pasteleiras, pesadonas, mas andavam; e as motos, de várias marcas e cilindradas, mas sobretudo as Harleys, as Norton e as BMW.
Das que mais gostava, pelo ruído que faziam em aceleração, eram as Norton quinhentos! Até pela velocidade, como uma única vez assisti, aquilo não era exercício para repetir muitas vezes       , um hoje motoqueiro, a descer a avenida Almirante Reis, ultrapassando tudo o que lhe aparecia pela frente, pela esquerda ou pela direita, até o perder de vista, já na Rua da Palma.
E havia os automóveis, de várias marcas e modelos, sendo os Citroen arrastadeira, os "carochas" da WW, os Fiat's seiscentos e os Mercedes, a maioria destes pintados de preto e verde, eram as cores dos táxis, os de maior implantação.
A certa altura apareceram as Vespas e a seguir as Lambrettas, mais vagarosas que as motos, mas muito menos barulhentas.
E dei comigo a "sonhar" com a entrada em Castelo Melhor, montado numa Norton quinhentos, a toda a velocidade e espantar aquela gente toda! O sonho era tão mal sonhado que não tinha ponta por onde se pegasse! A toda a velocidade a fazer a curva do Ferrão Barrão era mais que certo que me espalhava, não ao comprido como se costuma dizer, mas de lambas e atravessado contra a barreira do medo (o medo do Ferrão Barrão, único medo daquela zona e região) e já nem chegava a Castelo Melhor e como a distância, não sendo grande, o monte do carrascal fazia de barreira e ninguém se aperceberia e só seria encontrado, vivo ou morto, esparramado no meio dos calhaus!
Outro obstáculo que o sonho não teve em conta, tal era o entusiasmo, de que ainda havia a Cascalheira, que vai do ribeiro até à casa da minha tia rica e do meu padrinho, rico também, repleta de cascalho, por isso teria aquele nome, aquela que o senhor Bispo da Guarda desceu às pressas no jeep da Guarda Republicana, não creio que a gritar," oh da guarda" como se costumava fazer quando metidos em sarilhos e a levar traulitada, porque ainda não era usado o "quem m'acode", nem o "help, help", por um lado, por que um senhor bispo sabe o suficiente para calcular que, a uns oitenta quilómetros de lonjura, ninguém o ouviria, por muito forte que fosse o seu grito e se o fizesse, por estar acagaçado e com medufa, seria deixar mal colocada a Guarda que o acompanhava na fuga!
Quando a conversa descampa para aquela cena de um bispo a fugir como o diabo foge da cruz, se é que verdade é, na cruz ainda acredito, mas no diabo...diabos me carreguem se acredito em tal coisa e ainda por cima a fugir duma cruz, que nem é dito de que material era feita...enfim, fica assim porque senão ainda acabo por me perder outra vez! Estaria na parte do sonho em que esqueci a cascalheira, onde me espatifava contra um dos muros sem subir sequer vinte metros! Ainda se fosse uma daquelas que há hoje e que até voam com o motoqueiro em cima ou por baixo dela, então formava a carreira cá bem antes de chegar e assim que chegasse à ponte, que serve para passar duma margem para a outra do ribeiro, tal como cantou e acho que ainda a canta a pedido e para fechar o espetáculo, e que fala do casario e da serra do Pilar e da ponte que atravessa o rio ( é o Douro, mas não digam nada, deixem o artista cantar!), acabando ou estribilhando, para os que não saibam o que é ou para que serve uma ponte, " A ponte é uma passagem, p'rá outra margem" e não interessa para que lado é porque é para os dois, dava à mota aquele sinal,  não deve ser com as esporas como na equitação, a mota encabritava-se, como se cavalo fosse, levantava voo, bem acima dos muros laterais e poisava mesmo no ponto onde o Reinaldo leu o responso de boas vindas ao senhor bispo, meio a cair, meio a endireitar-se e em travagem fazia em meio peão a curva para a rua Larga, aqui sim já podia meter prego a fundo, atropelar duas galinhas que desfizeram em penas e gritos piados, mas logo se calaram e o moto acelera também, mal embateu num porco que fazia a sua caminhada diária por estar a ficar gordo e ficou, muito quieto, sentado e desmaiado, mesmo no degrau da oficina de sapataria do senhor Marcolino, pai do Acácio, aluno do latinório como eu, para usarmos quando o senhor bispo andasse a passear perto do altar mor, mas que se gorou quando eu comuniquei que não ía mais ao latim se era para pegar num dos cantos do manto!
Para quê esta gente há de levar uma capa daquelas a arrastar pelo chão e a encher-se de terra e lama, porque em Abril das águas mil o mais certo era haver lama e mais não seria porque terra mais não havia! Mas para que levei eu tanta reguada se o senhor bispo trazia com ela uma data me aprendizes que passaram uma boa parte do tempo a tirar da cabeça do prelado a boininha, experimentarem para verem como lhes assentava e voltavam a colocar na cabeça do chefe.
Retomando o "sonho" exibicionista, de entrar a toda a brida Castelo Melhor adentro, já o Sérgio tinha deixado o seminário e chegado a Lisboa, tendo sido o meu tutor quem tratou de lhe arranjar emprego e por ali andámos a encontrar-nos ao fim de semana à tarde em casa do nosso tutor, o meu mano Licínio.
Foi num desses fins de semana que resolvemos ir tirar a carta de bicicleta, começando pela condução primeiro e depois...se houvesse depois, se veria! O campo grande era quem tinha o monopólio desta escola, com sede, stand e os veículos, na parte esquerda de quem vai para o Alvalade, a casa do leão; e tinha que ser daquele lado, porque tinha carreirinhos alcatroados para fingirem que não era terra batida, bem melhor ou mais certo seria chamar-lhe terra pisada, andando, com sebes em bucho aparadas, para proteger a relva e alguns canteiros, outro palavrão que merecia melhor atenção dos linguistas, com umas flores ou uma palmeira, desenhando o bucho avenidas, ruas e pequenas praças, todos sabem que praceta é uma praça pequena, que também podia ser pracinha, mas pracinha não soa bem, fica a praceta! Becos não tinha, travessas tinha várias!
Só podia ser do lado esquerdo por que do lado direito eram os elétricos quem punha e dispunha, mas os automóveis que seguiam para o aeroporto também se escapavam, só os mais espertos, como em tudo, evitando o maior tráfego da parte central da avenida e no centro do Campo Grande, era um bom campo antes de ser o que era e do que é hoje! Começava onde acabava a Avenida da República, há cada estranha coisa...para que a Republica, que nunca se soube muito bem o que foi ou o que ainda hoje não é, tal como a democracia, que todos usam como quem usa uma marca de sapatilhas e mais não saberão, mas usar democracia dá um ar distinto, leve, despoluído, elegante mesmo! Entre o fim da República e o começo do Campo Grande semearam, há muitos anos, umas sementes de escultura e quando eu cheguei a Lisboa e fui para aqueles lados, já era do tamanho que hoje tem, um tal canteiro em ponto maior na altura e com uma estrada em toda a roda, porque o campo, como era grande, podiam dividi-lo em vários talhões, o da esquerda para a escola dos duas rodas, ao centro umas árvores grandes, plátanos e choupos que se dão bem e crescem depressa e do lado direito a tal estrada para os elétricos, amarelos, pendurados de uns cabos elétricos, sargentos elétricos ainda não havia, e oficiais elétricos também não.
O Campo Grande era do Largo até à Alameda das Linhas de Torres! Esta é, de todas, a denominação mais abstrusa que nas redondezas existe! Alameda, segundo ensinam as Palavras Cruzadas é uma avenida com álamos, nunca vi lá tal árvore; das linhas de torres que me digam porquê?! As linhas que por lá passam são as dos elétricos que vão para a Calçada de Carriche e de Torres, então é um desastre! Quais torres ?! Há, que eu saiba, as torres das igrejas, as Torres Novas e Velhas, umas perto de Lisboa e outras já no centro do País, a descambar para os lados de Espanha! E desde há uns anos há as Torres das Amoreiras que nasceram para ver se calavam e aquietavam um senhor dos desenhos, que foi o iniciador de toda a bela arte urbana das cidades, por todo o lado se vendo letras e bonecos um tanto pró moderno plasmadas nos muros disponíveis das urbes. O tal pai das pichagens, talvez por ser gente da alta, não pintava muros, mas tudo o que fossa fachada de prédio (ou será empena?), quanto mais alto melhor, lá vinha uma pintura daquele Senhor! Alguém devia estar farto das fachadas coloridas e das tintas que eram gastas e vai de encontrar emprego para o riscador e foi assim que o Senhor se entreteve a desenhar as Torres das Amoreiras, mais parecendo silos para automóveis do que local onde vive e trabalha umas largas centenas, ou mesmo milhares de pessoas!
Eu e o Sérgio fomos até ao Campo Grande e alugámos o veículo por uma hora, não para tirar a carta, era só para aprendermos e a Norton viria depois. De que forma não sei: dinheiro era coisa que não tinha, mas eu estou agora convencido de que o sonho ou era isso mesmo ou não tinha raízes tão profundas. Vamos ver se esta dúvida deixa de o ser. Sempre gostei de ter dúvidas para ter o prazer de as tirar!
Fui o primeiro a ensaiar, talvez por que o Sérgio devia saber já alguma coisa que terá aprendido lá no seminário. Numa das travessas das pequenas avenidas, ladeadas de bucho mal tratado, pela falta de jardineiros e talvez também pelos estragos causados pelas bicicletas e pelos seus condutores armados em Nicolau e Trindade, já desistidos da vida e outros mais próximos e igualmente bons do pedal, o Alves Barbosa, o Ribeiro da Silva e o grande Joaquim Agostinho, estes dois também já nos deixaram, o Silva num acidente de motorizada e o Agostinho em plena prova, por se ter atravessado um canídeo no trajeto e dos danos provocados pela queda não mais recuperou! O Sérgio segurou a bicicleta até eu ficar em equilíbrio instável, mas como era a descer...pois era...a descer, porque assim que me largou o selim, "tem-te, não caias" a bicha entrou em desequilíbrio e quando o Sérgio viu que eu ia experimentar a qualidade do alcatrão de pedrinhas à vista, começou a gritar: "trava, trava"  e eu sem saber onde tal coisa estava, fiz-me ao terreno, eu para a direita, a bicicleta para a esquerda, eu enfiado de cabeça nos arbustos e ela encostada a eles um pouco atrás!
A bicicleta não sofreu danos e eu fiquei um pouco mal tratado; as calças rotas num dos joelhos, o casaco único com dois rasgões, aquele que a pensionista do Largo de Santa Bárbara comprou para me ressarcir do que o hóspede fumador me tinha rapinado depois do incêndio do colchão.
Ali dei por terminada a minha aprendizagem, ficando o Sérgio a gastar o tempo que tínhamos comprado e pago! Longe vai o tempo em que o tempo se comprava! Ou continuará a ser comprado?
Mais tarde, no Largo de Santa Bárbara, que sempre me acompanhou e me livrou das trovoadas, passavam os elétricos que vinham da baixa e iam para o Arco do Cego (estes nomes, ai esta confusão! Para que um cego queria um arco, muito mais aquele onde arco não havia, só podia ter sido sacanice, enganarem o invisual! Ou seria para apontar o dedo a alguém daqueles sítios, que armava em esperto e então o Cego era para justificar o aforismo de que o pior cego é o que não quer ver!), para Campolide e Amoreiras e regressavam os que tinham ido até ao Cego, isto para frisar que havia dois trilhos de carril, curvando mesmo no Largo, os que desciam da Passos Manuel e os que subiam da Egas Moniz para a Passos Manuel!
Era naquele ponto que aliviavam o travão os que desciam e aceleravam os que subiam, sofrendo os carris um desgaste muito maior que nos troços planos; um funcionário da Carris a que designavam por agulheiro, espalhava areia para criar aderência e possibilitar a marcha, não ficando as rodas a patinar em vez de andar.
Foi nesse ponto que uma Vespa, com o condutor e um pendura, vinda da Egas Moniz para subir em direção a uma das ruas, a Passos Manuel ou Conde Redondo, hoje Jacinta Marto, ao iniciar a curva acelerou para iniciar a subida, derrapou nos carris, perdendo o equilíbrio e o controlo, ainda tentou reequilibrar a Vespa, mas acabou por tombar para o lado direito, atirando o pendura que foi embater no lancil da placa triangular ali existente e como não levava capacete, foi a cabeça a embater diretamente na esquina do lancil; o crânio estalou como uma melancia madura quando cai, jorrando sangue para todo o lado, a massa encefálica a espreitar pela brecha e o acidentado deu dois esticões com as pernas e ficou imobilizado para sempre! Um horror!
O condutor a quem a Vespa tinha abandonado, resvalando pelo alcatrão em direção ao café, ao levantar-se, de calças rasgadas e sangue a ver-se pelas janelas dos rasgões, ao olhar o colega e o seu estado, desatou aos berros e a correr aos baldões em direção à rua de Santa Bárbara até perder o equilíbrio e cair, a desfazer-se em pranto.
Decidi naquele instante que não iria de Norton 500 a Castelo Melhor, nem a parte alguma e decidi também que não mais tentaria aprender a andar de bicicleta. E não era por medo, até porque dois ou três anos passados, já na Rodrigo da Fonseca, andei, como pendura, na BMW 250 do Manel leiteiro e até uma noite fomos ao estádio Alvalade ver umas provas de perseguição: entre um Lotus e um Mercedes 300 SL, um Iseta e um Fiat 500 e entre a Norton e a Harley, sendo a Norton conduzida pelo campeão nacional, Ângelo Dinis, amigo do Manel leiteiro que lhe perguntou se me dava uma boleia até Campolide, onde iriamos beber uma cerveja na Goa.
Foi o fim! Não mais andaria de Norton e menos com o campeão, que se notabilizou com a moto Triunph 500.
Mais tarde, voltei a andar, não em alguma das de grande cilindrada, mas numa BMW 250. Já acabado o curso em Vendas Novas, fomos mandados para Leiria uns sessenta, apenas eu "especializado" em munições de artilharia e a maioria de campanha, comunicações e outras. Entre eles veio o "Niki", nunca o conheci por outra designação, mas era inevitável conhecê-lo pela sua genialidade em transformar riscos, por mais retorcidos que fossem, em figuras de banda desenhada ou outras. Horas foram passadas, com vários riscadores juntos ao génio, uns fazendo riscos e ele dar-lhe formas de sua imaginação e nunca demorando mais de cinco minutos.
Nascido em Beja, capital do Baixo Alentejo, filho de um comerciante, para ali se deslocava todos os fins de semana na sua BMW, muitas vezes dando boleia, até Vila Franca de Xira a um colega que partilhava o mesmo quarto, alugado na cidade, junto a uma taberna e o conhecido fotógrafo, Fabião. Por qualquer razão que nunca soube, nem tinha que saber, o Niki e o colega desentenderam-se, ficando o Niki sozinho no quarto.
Sabia que também eu, sempre que podia, fazia o fim de semana em Lisboa, onde ia trabalhar no mesmo estabelecimento onde trabalhei até ir cumprir o serviço militar, recebendo uma quantia que não recordo e alguns produtos alimentares, nomeadamente conservas, para complementar algumas refeições, por ser o rancho de muito má qualidade, havendo uma das refeições que de segunda a sexta-feira era sempre dobrada com feijão branco, miudinho e difícil de comer por ser tão duro.
Foi o Niki quem se ofereceu a dar-me boleia até Vila Franca, tal como fazia com o anterior ex-colega de quarto, uma vez que ele passava para a outra margem do Tejo, pela ponte ali existente a caminho de Beja.
Num dos fins de semana, mal saímos de Leiria, começou a chover, uma chuvinha mole, que foi aumentando e quando chegámos ao Vale Gracioso já era uma chuvada bem densa que nos aconselhou a resguardar no Mosteiro da Batalha, já completamente encharcados e o frio a fazer-se sentir; ao cabo de quase uma hora, sem parar de chover, mal abrandou regressámos a Leiria, ele ia mudar de roupa e regressava à estrada e eu, ficaria por Leiria porque não tinha outra fatiota de reserva.
A última viagem de BMW de Leiria para Lisboa, não teve um início pacífico; saímos frente à entrada para o Parque da cidade como era hábito, a cerca de cem metros tinha que ser passada a ponte frente Hotel Lis. Era a antiga Estrada Nacional número um, por ali passando todo o tráfego que vinha de Lisboa para o Norte, até ao Porto e no sentido inverso. A ponte era estreita para os camiões de carga fazerem a curva para entrar ou sair da ponte, muitas vezes passando por cima do passeio, tendo sido protegido o lancil com uma chapa metálica que, devido ao uso frequente, se foi desgastando ao ponto de abrir uma fissura no vértice do ângulo, por ser a parte mais atingida.
O Niki fez-se à curva, bem encostado ao lancil chapeado, de tal modo que o meu sapato direito, apoiado no pedal e com a biqueira ligeiramente voltada para fora, a sola entrou na fissura da chapa que, como uma faca, cortou toda a cosedura ficando desligada do corpo do sapato! Parou logo à frente, no início da Rua Machado dos Santos e ambos desatámos a rir, ele a gozar o seu naco ao imaginar-me a ir de Vila Franca para Lisboa, com a sola a fazer cloc, cloc, a cada passo dado! O meu riso, menos entusiástico, estava já misturado com a busca da solução. Foi ele ao mercado de Santana pedir um bocado de guita, atei o sapato e seguimos para Vila Franca, com o ar a entrar pela pequenina abertura e a deixar-me o pé a ficar desagradavelmente frio, mas fizemos a viagem, tirando o bilhete até Sacavém, onde saía e voltava a entrar na carruagem apinhada e sempre pela porta mais distante do revisor, fazendo sempre a viagem de borla, como aprendi em Sacavém durante o tempo do curso, cuja duração foi de cerca de seis meses.
Ainda recordo duma outra viagem, de Leiria para Fátima e regresso, no fim da tarde de doze de Maio, por não sabermos o que fazer e ele nunca ter ido a Fátima. Ainda não tínhamos chegado ao lugar de Cardosos, quando um furo na roda traseira, um pequeno furo, mas que nos impedia de prosseguir naquelas condições. Para trás não queria voltar e a solução que encontrou, aquele também não ficava perdido em cogitações inúteis, foi a de fazer sinal ao primeiro motociclista a quem pediu a bomba do ar emprestada e lá atestou o pneu, ao mesmo tempo que combinava com o senhor a dar-nos a ajuda enquanto pudesse e que foi até Fátima, sendo esta, também, o destino do simpático motociclista! Consistia no empréstimo da bomba as vezes que fossem necessárias; nós adiantar-nos-íamos até o pneu aguentar, esperávamos por ele, enchíamos o pneu, devolvíamos a bomba e andávamos mais uns quilómetros e em três paragens de “oração” chegámos ao destino: O simpático senhor ainda foi connosco a um vendedor de pneus que se comprometeu a remendar o furo, não cobrava nada “vocês andam sempre tesos!”, disse o comerciante e ainda nos facilitou a visita ao dizer “vão descansados que eu deixo a moto além” apontando um telheiro onde guardava os pneus velhos! Agradecemos ao motociclista e ao comerciante de pneus e cada um foi à sua vida!
Havia muita gente nas ruas a deambular, vendo o pouco que havia para ver naquela época. A noite estava amena, as ruas muito iluminadas, era o primeiro dia das celebrações anuais, o dia da primeira epifania!
Numa das ruas bem iluminadas e com gente a cruzar-se sem pressas, vi a uns metros à frente, de costas, uma senhora, aparentemente jovem, vestindo uma saia muito travada, era esta a forma como era designada, num tecido verde, todo aos “borbotos” e que se meneava duma forma que seria normalíssima, mas que me pareceu um pouco fora do comum, estava farto de ver aquelas saias em Lisboa, bem incómodas nalgumas situações! Apenas a que mais me suscitou essa ideia de incomodidade: estava, com outras pessoas, a esperar a chegado do autocarro para a Praça do Chile! Entraram duas pessoas, sem problemas, mas uma terceira contorcia-se para chegar com o pé direito ao estribo para depois se elevar com a ajuda do pequeno corrimão da porta! Não conseguia de maneira nenhuma chegar ao estribo e não tomava a iniciativa de subir a saia acima dos joelhos, talvez por saber que só passaria descosida! Como não atava nem desatava, peguei-lhe pelas axilas e com ela a ajudar, entrou e a seguir todos os que esperavam! Não me recordo se agradeceu ou refilou, era coisa em que não pensava nem penso hoje! Mas voltemos a Fátima…!
Recordado da cena do autocarro, em Lisboa, dei um pequeno toque com o cotovelo no braço do Niki e comentei: de certeza que aquela agitação verde que ali vai não veio cumprir promessa nenhuma! “É verdade!” , acrescentou ele! E nesta atitude descontraída, quando passávamos pela saia azul, eu pela esquerda e o Niki pela direita, dei uma peque palmada e de imediato a modelo de saia verde, em plena passerelle, rodou para a direita e deu uma valente estalada na cara do Niki e continuou! Nós é que parámos, com o Niki com a mão a cobrir face esquerda e eu a rir da cena e ele a dizer, fingindo uma zanga que não tinha: “quer dizer, tu palpas o cú à mulher e quem leva uma estalada a sério, sou eu!”
Nunca pensei que tivesse esta reacção, no meio de tanta gente, alguns de boca aberta e um deles, juiz de primeira instância, perguntou, olhando para mim e para o Niki: “mas que raio se passou? Pergunta o curioso. Nada de importante, respondi, apenas uma pequena confusão Já sanada!
Cumprida a promessa de ir a Fátima na sua moto e espreitar a multidão, de vela na mão e a orar à Virgem, cada um por seu motivo, outros sem motivo algum, no ar pairava um forte cheiro a cera e uma zoada como se ao longe estivesse a ser executada uma sinfonia em que só os baixos entravam. A primeira vez que estive na Cova da Iria foi em missão de apoio aos peregrinos, através da Bateria de Referenciação, eleito pala escola de Meteorologia, juntamente com outros, um de cada especialidade e sempre gostei do ambiente místico que enchia todo o recinto e transbordava para fora dele.
Quando achámos que estava na hora de regressar fomos buscar a moto, viu se estava tudo bem com os pneus e mal entrámos na estrada e ligou os faróis, nada sucedeu, repetiu a operação e o resultado foi o mesmo! E agora, camarada?!
- Temos de a levar para Leiria e como luz não temos, vamos à boleia! respondeu.
Á boleia?! De quem? perguntei.
- Já vais ver! Respondeu, naquele tom de voz calmo e de acentuado sotaque do Alentejo.
Mal apareceu o primeiro carro arrancou e tentou manter-se a uma distância que permitia alguma visibilidade e assim percebi o que era ir à boleia.
O automobilista, deve ter pensado que íamos a persegui-lo e acelerou, depressa ficámos sem boleia; mas logo veio outro, que nos ultrapassou depois de fazer os respetivos sinais e continuou, connosco atrás, mas em cada curva ficávamos sem luz e tínhamos de parar, perdendo a boleia. Assim percorremos uns dez quilómetros ou mais, até que aparece um terceiro, ultrapassou-nos e parou logo à frente e saindo do carro veio ter connosco e perguntara, mesmo antes de chegar junto a nós:
- Há algum problema, amigos?
Estamos sem luz, somos militares, viemos de Fátima e vamos para Leiria.
- E como chegaram até aqui? Pergunta, com ar de espanto.
Viemos à boleia, atrás dos automóveis, até perdermos a proximidade e termos de parar.
- Mas que temeridade! exclamou. Vamos fazer o seguinte: eu vou à frente, modero a velocidade e nas curvas abrando para não ficarem sem luz! Moro nos lugar dos Cardosos, a uns quilómetros de Leiria, e como não é tarde, vou convosco até à entrada de Leiria!
Isso é uma grande maçada, nós nos desenrascamos! Para Fátima foi um furo do pneu traseiro, tivemos que ír à boleia de um motociclista que nos emprestava a bomba para meter o ar indispensável, andávamos mais uns quilómetros e esperávamos por ele, sempre assim, até Fátima!
- Foram cumprir alguma promessa? perguntou, a sorrir!
Não. Como em Leiria não havia nada para fazer e o camarada alentejano nunca tinha ido a Fátima, resolvemos ir, aproveitando a data e assim ele veria como é aquela terra em dia de Celebração!
- Então foi castigo! Disse o nosso salvador, rindo!
E retomámos a marcha atrás do automóvel, até ao centro da cidade, onde nos despedimos do anjo que devia estar em Fátima e nos seguiu!


                                                           II


O senhor Alfredo, meu último patrão em Lisboa, comprou, de sociedade com um dos irmãos, comerciante do mesmo ramo, com a intenção de economizar, no transporte diário dos produtos adquiridos no mercado da Ribeira e no Mercado Abastecedor das Frutas, um carro antigo, deixando de estarem dependentes da empresa que o transporte e entrega no domicilio, a partir daqueles mercados.
Foi uma calamidade! Nenhum deles tinha carta de condução quando se decidiram pela compra, devendo tê-la conseguido, como tantos o terão feito, subornando alguém. Não que eles o tenham dito, mas quando alguns encartados viam as aselhices que ambos faziam, comentavam, em linguagem chocarreira: "foi comprada, hein?!" e eles riam.
Mas ao cabo de uns meses de asneiras e muitos treinos à noite, quando havia menos trânsito, lá foram acertando com a condução e diminuindo o perigo que no representavam. Os danos provocados a terceiros não foram muitos nem graves, mas o "chaço" em que foram aprendendo foi de tal modo mal tratado que certo dia deixou pura e simplesmente de andar! Encostou à box e por ali ficou.
Resolveram comprar outro veículo e a escolha recaiu numa carrinha Peugeot 203, de caixa aberta, que ainda sofreu a bom sofrer. Por vezes eu transitava ao lado do condutor, isto sucedendo depois de o senhor Alfredo deixar o irmão e os produtos no Bairro Azul e nós seguíamos para a Rodrigo da Fonseca. Foi assim que, com ele a gerir os pedais e a caixa de velocidades, eu aprendi a manobrar o volante e ganhei alguma noção de conduzir.
No ano seguinte veio a tropa e em Angola, sem carta de condução, guiei jipes dentro do quartel e uma vez fora dele, quando fomos levantar seis jipes novos, munido de uma folha de papel tamanho A cinco e apenas o carimbo da Unidade, ao Deposito de Material e Manutenção! Como um dos condutores estava em estado de não poder conduzir, peguei eu no  volante, com o condutor ao lado e de lado tombado, percorrendo cerca de um quilómetro, distância entre o Depósito de Material e o GACL. Como não houve tempo para aprender a usar a caixa de velocidades, o percurso foi feito sempre com a primeira engatada!...
Mas no carro do furriel Carvalho, colega do RACL, um Cônsul de três velocidades, com alavanca no volante, conduzi só ou acompanhados, várias centenas de quilómetros, sem carta de condução, também por que o policiamento ser quase nulo, sobretudo à noite e mesmo de dia não abordavam muito os militares. Só em caso de acidente é que acorriam, mas logo passavam a pasta mal outro militar aparecia e assumia a responsabilidade. Era uma balbúrdia bem organizada! E eu tão inapto era que, com centenas várias de quilómetros percorridos, não conseguia meter a terceira velocidade sem arranhar.
Para evitar algum percalço a mim ou ao Carvalho, dono do Cônsul, decidi aprender para fazer exame de condução; dei a entrada então exigida, mil e quinhentos angolares, mas à quarta lição o proprietário da escola e dos carros, naturalmente, foi detido, acusado de estar a exercer uma sem que estivesse legalizado. Lá se foi o sinal e a carta de condução.
A passagem pelo Tribunal Judicial e pela Instrução Preparatória, logo após o meu regresso de Angola, onde se investigavam a maior parte dos crimes, exceto uma meia dúzia deles, ou nem tanto, que eram da exclusiva competência da Policia Judiciária, a grande maioria dos investigados eram devidos a acidentes de trânsito, de que resultassem ferimentos ou a morte.
Foi tal o número de estropiados  que foram ouvidos, ou no Tribunal, no Hospital ou no domicilio, foram tantas as autópsias a que tive de assistir que, se já era pouco o entusiasmo pela condução, este passou a ser quase nulo.
E de tal forma foi o trauma que só no ano de noventa e três, quando a empresa faliu e a eminência de desemprego era real é que decidi obter a carta de condução, por poder vir a ser útil num novo trabalho.
Inscrevi-me numa das Escolas de Condução e fiz o exame de Código sem dificuldade, mas quando passei à fase da condução os problemas logo vieram ao de cima: o instrutor que teve de ser trocado por outro; no exame o carro que nos foi distribuído tinha problemas de embraiagem de tal ordem que teve de ser levado à oficina antes de os exames terem começado, acabando por chumbar, tal como o que se seguiu a mim e no mesmo carro.
Fui aconselhado, pelo segundo instrutor, a mudar de escola por me terem "tomado de ponta" e seria muito difícil eu passar enquanto o ambiente estivesse como estava.
Mudei, fiz o exame sem grandes problemas, mas sempre tive pouco prazer quando conduzi. A viagem mais longa que fiz foi à Costa Vicentina e regresso, não tendo ao todo conduzido mais que dois mil quilómetros.
Dez anos depois de obtida teria de a renovar, o que não fiz e assim terminou a minha aventura no caso dos transportes.

Reis Caçote
2002/dig.11/14 


















                       




                             


                                                

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