OS VEICULOS E EU...
I
Também nesta
área, familiares e amigos tentaram, com verdadeiros esforço e boa vontade,
perceber a minha relutância ou falta de entusiasmo em relação aos mais comuns
meios de locomoção individuais
Eu próprio queria perceber melhor, até que
ponto é real ou apenas uma reação num momento de choque violento. Vamos
avançar.
Na aldeia, é
verdade, tudo começa na aldeia, como eu, só havia: nem meia dúzia de carros de
vacas (isto no início da década de cinquenta), duas bicicletas, a do Viterbo e
a da filha do senhor Aleixo, e um jeep, o do senhor Aníbal Soares que, mesmo
sendo jeep, era com alguma dificuldade que fazia o trajeto da Quinta do
Custódio para Castelo Melhor, ou o inverso. Sobretudo a seguir às bátegas de
água que deixavam os caminhos com buracos de muito respeito, uns senhores
buracos!
Como terá
sucedido com outros de sempre, também os da minha idade fizeram carros com
rodas de tábuas, mas ou menos circulares, tal como fizeram aviões de papel e
respetivos e até balões, como os das festas, não como meio de transporte, nem
com outra intenção senão a de tentar imitar o que víamos e nos despertava mais
curiosidade. Só muito mais tarde, nem sei bem onde, soube que um
luso-brasileiro, no inicio do século XVIII um balão que poderia ser um meio de
transporte.
Um projeto
que nunca abandonámos e que teria sido a nossa grande criação espetacular, pois
pretendia transportar pessoas, teve a sua intransponível dificuldade no
fracasso em fixar quatro "raios" de madeira, em aros de pneus, aquela
parte dos rebordos onde estão umas dezenas de fios de arame de aço, onde os
pregos, para segurar os tais raios de madeira,
que no centro levaria o eixo, foi um obstáculo que nunca conseguimos
vencer, aquela barreira de fios de aço.
Primeiro fracasso!
Quando
cheguei a Lisboa, isto para não perder tempo com pormenores que nada trazem de
melhoria ao discurso, já lá havia um pouco de tudo: bicicletas de corrida,
sobretudo usadas pelos boletineiros da Marconi para entregarem os telegramas,
dos quais eu gostava especialmente, quando nos seus arrepiantes slalons por
entre as filas de automóveis, caótico por vezes, ultrapassavam todos, pela
esquerda ou pela direita, raramente parando; havia também as pasteleiras,
pesadonas, mas andavam; e as motos, de várias marcas e cilindradas, mas
sobretudo as Harleys, as Norton e as BMW.
Das que mais
gostava, pelo ruído que faziam em aceleração, eram as Norton quinhentos! Até
pela velocidade, como uma única vez assisti, aquilo não era exercício para
repetir muitas vezes , um hoje
motoqueiro, a descer a avenida Almirante Reis, ultrapassando tudo o que lhe
aparecia pela frente, pela esquerda ou pela direita, até o perder de vista, já
na Rua da Palma.
E havia os
automóveis, de várias marcas e modelos, sendo os Citroen arrastadeira, os
"carochas" da WW, os Fiat's seiscentos e os Mercedes, a maioria
destes pintados de preto e verde, eram as cores dos táxis, os de maior
implantação.
A certa
altura apareceram as Vespas e a seguir as Lambrettas, mais vagarosas que as
motos, mas muito menos barulhentas.
E dei comigo
a "sonhar" com a entrada em Castelo Melhor, montado numa Norton
quinhentos, a toda a velocidade e espantar aquela gente toda! O sonho era tão
mal sonhado que não tinha ponta por onde se pegasse! A toda a velocidade a
fazer a curva do Ferrão Barrão era mais que certo que me espalhava, não ao
comprido como se costuma dizer, mas de lambas e atravessado contra a barreira
do medo (o medo do Ferrão Barrão, único medo daquela zona e região) e já nem
chegava a Castelo Melhor e como a distância, não sendo grande, o monte do
carrascal fazia de barreira e ninguém se aperceberia e só seria encontrado,
vivo ou morto, esparramado no meio dos calhaus!
Outro
obstáculo que o sonho não teve em conta, tal era o entusiasmo, de que ainda
havia a Cascalheira, que vai do ribeiro até à casa da minha tia rica e do meu
padrinho, rico também, repleta de cascalho, por isso teria aquele nome, aquela
que o senhor Bispo da Guarda desceu às pressas no jeep da Guarda Republicana,
não creio que a gritar," oh da guarda" como se costumava fazer quando
metidos em sarilhos e a levar traulitada, porque ainda não era usado o
"quem m'acode", nem o "help, help", por um lado, por que um
senhor bispo sabe o suficiente para calcular que, a uns oitenta quilómetros de
lonjura, ninguém o ouviria, por muito forte que fosse o seu grito e se o
fizesse, por estar acagaçado e com medufa, seria deixar mal colocada a Guarda
que o acompanhava na fuga!
Quando a
conversa descampa para aquela cena de um bispo a fugir como o diabo foge da
cruz, se é que verdade é, na cruz ainda acredito, mas no diabo...diabos me
carreguem se acredito em tal coisa e ainda por cima a fugir duma cruz, que nem
é dito de que material era feita...enfim, fica assim porque senão ainda acabo
por me perder outra vez! Estaria na parte do sonho em que esqueci a
cascalheira, onde me espatifava contra um dos muros sem subir sequer vinte
metros! Ainda se fosse uma daquelas que há hoje e que até voam com o motoqueiro
em cima ou por baixo dela, então formava a carreira cá bem antes de chegar e
assim que chegasse à ponte, que serve para passar duma margem para a outra do
ribeiro, tal como cantou e acho que ainda a canta a pedido e para fechar o
espetáculo, e que fala do casario e da serra do Pilar e da ponte que atravessa
o rio ( é o Douro, mas não digam nada, deixem o artista cantar!), acabando ou
estribilhando, para os que não saibam o que é ou para que serve uma ponte,
" A ponte é uma passagem, p'rá outra margem" e não interessa para que
lado é porque é para os dois, dava à mota aquele sinal, não deve ser com as esporas como na equitação,
a mota encabritava-se, como se cavalo fosse, levantava voo, bem acima dos muros
laterais e poisava mesmo no ponto onde o Reinaldo leu o responso de boas vindas
ao senhor bispo, meio a cair, meio a endireitar-se e em travagem fazia em meio
peão a curva para a rua Larga, aqui sim já podia meter prego a fundo, atropelar
duas galinhas que desfizeram em penas e gritos piados, mas logo se calaram e o
moto acelera também, mal embateu num porco que fazia a sua caminhada diária por
estar a ficar gordo e ficou, muito quieto, sentado e desmaiado, mesmo no degrau
da oficina de sapataria do senhor Marcolino, pai do Acácio, aluno do latinório
como eu, para usarmos quando o senhor bispo andasse a passear perto do altar
mor, mas que se gorou quando eu comuniquei que não ía mais ao latim se era para
pegar num dos cantos do manto!
Para quê
esta gente há de levar uma capa daquelas a arrastar pelo chão e a encher-se de
terra e lama, porque em Abril das águas mil o mais certo era haver lama e mais
não seria porque terra mais não havia! Mas para que levei eu tanta reguada se o
senhor bispo trazia com ela uma data me aprendizes que passaram uma boa parte
do tempo a tirar da cabeça do prelado a boininha, experimentarem para verem
como lhes assentava e voltavam a colocar na cabeça do chefe.
Retomando o
"sonho" exibicionista, de entrar a toda a brida Castelo Melhor
adentro, já o Sérgio tinha deixado o seminário e chegado a Lisboa, tendo sido o
meu tutor quem tratou de lhe arranjar emprego e por ali andámos a encontrar-nos
ao fim de semana à tarde em casa do nosso tutor, o meu mano Licínio.
Foi num
desses fins de semana que resolvemos ir tirar a carta de bicicleta, começando
pela condução primeiro e depois...se houvesse depois, se veria! O campo grande
era quem tinha o monopólio desta escola, com sede, stand e os veículos, na
parte esquerda de quem vai para o Alvalade, a casa do leão; e tinha que ser
daquele lado, porque tinha carreirinhos alcatroados para fingirem que não era
terra batida, bem melhor ou mais certo seria chamar-lhe terra pisada, andando,
com sebes em bucho aparadas, para proteger a relva e alguns canteiros, outro
palavrão que merecia melhor atenção dos linguistas, com umas flores ou uma palmeira,
desenhando o bucho avenidas, ruas e pequenas praças, todos sabem que praceta é
uma praça pequena, que também podia ser pracinha, mas pracinha não soa bem,
fica a praceta! Becos não tinha, travessas tinha várias!
Só podia ser
do lado esquerdo por que do lado direito eram os elétricos quem punha e
dispunha, mas os automóveis que seguiam para o aeroporto também se escapavam,
só os mais espertos, como em tudo, evitando o maior tráfego da parte central da
avenida e no centro do Campo Grande, era um bom campo antes de ser o que era e
do que é hoje! Começava onde acabava a Avenida da República, há cada estranha
coisa...para que a Republica, que nunca se soube muito bem o que foi ou o que
ainda hoje não é, tal como a democracia, que todos usam como quem usa uma marca
de sapatilhas e mais não saberão, mas usar democracia dá um ar distinto, leve,
despoluído, elegante mesmo! Entre o fim da República e o começo do Campo Grande
semearam, há muitos anos, umas sementes de escultura e quando eu cheguei a
Lisboa e fui para aqueles lados, já era do tamanho que hoje tem, um tal
canteiro em ponto maior na altura e com uma estrada em toda a roda, porque o
campo, como era grande, podiam dividi-lo em vários talhões, o da esquerda para
a escola dos duas rodas, ao centro umas árvores grandes, plátanos e choupos que
se dão bem e crescem depressa e do lado direito a tal estrada para os elétricos,
amarelos, pendurados de uns cabos elétricos, sargentos elétricos ainda não
havia, e oficiais elétricos também não.
O Campo
Grande era do Largo até à Alameda das Linhas de Torres! Esta é, de todas, a
denominação mais abstrusa que nas redondezas existe! Alameda, segundo ensinam
as Palavras Cruzadas é uma avenida com álamos, nunca vi lá tal árvore; das
linhas de torres que me digam porquê?! As linhas que por lá passam são as dos
elétricos que vão para a Calçada de Carriche e de Torres, então é um desastre!
Quais torres ?! Há, que eu saiba, as torres das igrejas, as Torres Novas e
Velhas, umas perto de Lisboa e outras já no centro do País, a descambar para os
lados de Espanha! E desde há uns anos há as Torres das Amoreiras que nasceram
para ver se calavam e aquietavam um senhor dos desenhos, que foi o iniciador de
toda a bela arte urbana das cidades, por todo o lado se vendo letras e bonecos
um tanto pró moderno plasmadas nos muros disponíveis das urbes. O tal pai das
pichagens, talvez por ser gente da alta, não pintava muros, mas tudo o que
fossa fachada de prédio (ou será empena?), quanto mais alto melhor, lá vinha
uma pintura daquele Senhor! Alguém devia estar farto das fachadas coloridas e
das tintas que eram gastas e vai de encontrar emprego para o riscador e foi
assim que o Senhor se entreteve a desenhar as Torres das Amoreiras, mais
parecendo silos para automóveis do que local onde vive e trabalha umas largas
centenas, ou mesmo milhares de pessoas!
Eu e o
Sérgio fomos até ao Campo Grande e alugámos o veículo por uma hora, não para
tirar a carta, era só para aprendermos e a Norton viria depois. De que forma
não sei: dinheiro era coisa que não tinha, mas eu estou agora convencido de que
o sonho ou era isso mesmo ou não tinha raízes tão profundas. Vamos ver se esta
dúvida deixa de o ser. Sempre gostei de ter dúvidas para ter o prazer de as
tirar!
Fui o
primeiro a ensaiar, talvez por que o Sérgio devia saber já alguma coisa que
terá aprendido lá no seminário. Numa das travessas das pequenas avenidas,
ladeadas de bucho mal tratado, pela falta de jardineiros e talvez também pelos
estragos causados pelas bicicletas e pelos seus condutores armados em Nicolau e
Trindade, já desistidos da vida e outros mais próximos e igualmente bons do
pedal, o Alves Barbosa, o Ribeiro da Silva e o grande Joaquim Agostinho, estes
dois também já nos deixaram, o Silva num acidente de motorizada e o Agostinho
em plena prova, por se ter atravessado um canídeo no trajeto e dos danos
provocados pela queda não mais recuperou! O Sérgio segurou a bicicleta até eu
ficar em equilíbrio instável, mas como era a descer...pois era...a descer,
porque assim que me largou o selim, "tem-te, não caias" a bicha
entrou em desequilíbrio e quando o Sérgio viu que eu ia experimentar a
qualidade do alcatrão de pedrinhas à vista, começou a gritar: "trava,
trava" e eu sem saber onde tal
coisa estava, fiz-me ao terreno, eu para a direita, a bicicleta para a
esquerda, eu enfiado de cabeça nos arbustos e ela encostada a eles um pouco
atrás!
A bicicleta
não sofreu danos e eu fiquei um pouco mal tratado; as calças rotas num dos
joelhos, o casaco único com dois rasgões, aquele que a pensionista do Largo de
Santa Bárbara comprou para me ressarcir do que o hóspede fumador me tinha
rapinado depois do incêndio do colchão.
Ali dei por
terminada a minha aprendizagem, ficando o Sérgio a gastar o tempo que tínhamos
comprado e pago! Longe vai o tempo em que o tempo se comprava! Ou continuará a
ser comprado?
Mais tarde,
no Largo de Santa Bárbara, que sempre me acompanhou e me livrou das trovoadas, passavam
os elétricos que vinham da baixa e iam para o Arco do Cego (estes nomes, ai
esta confusão! Para que um cego queria um arco, muito mais aquele onde arco não
havia, só podia ter sido sacanice, enganarem o invisual! Ou seria para apontar
o dedo a alguém daqueles sítios, que armava em esperto e então o Cego era para
justificar o aforismo de que o pior cego é o que não quer ver!), para Campolide
e Amoreiras e regressavam os que tinham ido até ao Cego, isto para frisar que
havia dois trilhos de carril, curvando mesmo no Largo, os que desciam da Passos
Manuel e os que subiam da Egas Moniz para a Passos Manuel!
Era naquele
ponto que aliviavam o travão os que desciam e aceleravam os que subiam,
sofrendo os carris um desgaste muito maior que nos troços planos; um
funcionário da Carris a que designavam por agulheiro, espalhava areia para
criar aderência e possibilitar a marcha, não ficando as rodas a patinar em vez
de andar.
Foi nesse
ponto que uma Vespa, com o condutor e um pendura, vinda da Egas Moniz para
subir em direção a uma das ruas, a Passos Manuel ou Conde Redondo, hoje Jacinta
Marto, ao iniciar a curva acelerou para iniciar a subida, derrapou nos carris,
perdendo o equilíbrio e o controlo, ainda tentou reequilibrar a Vespa, mas
acabou por tombar para o lado direito, atirando o pendura que foi embater no
lancil da placa triangular ali existente e como não levava capacete, foi a
cabeça a embater diretamente na esquina do lancil; o crânio estalou como uma
melancia madura quando cai, jorrando sangue para todo o lado, a massa
encefálica a espreitar pela brecha e o acidentado deu dois esticões com as
pernas e ficou imobilizado para sempre! Um horror!
O condutor a
quem a Vespa tinha abandonado, resvalando pelo alcatrão em direção ao café, ao
levantar-se, de calças rasgadas e sangue a ver-se pelas janelas dos rasgões, ao
olhar o colega e o seu estado, desatou aos berros e a correr aos baldões em
direção à rua de Santa Bárbara até perder o equilíbrio e cair, a desfazer-se em
pranto.
Decidi
naquele instante que não iria de Norton 500 a Castelo Melhor, nem a parte
alguma e decidi também que não mais tentaria aprender a andar de bicicleta. E
não era por medo, até porque dois ou três anos passados, já na Rodrigo da
Fonseca, andei, como pendura, na BMW 250 do Manel leiteiro e até uma noite
fomos ao estádio Alvalade ver umas provas de perseguição: entre um Lotus e um
Mercedes 300 SL, um Iseta e um Fiat 500 e entre a Norton e a Harley, sendo a
Norton conduzida pelo campeão nacional, Ângelo Dinis, amigo do Manel leiteiro
que lhe perguntou se me dava uma boleia até Campolide, onde iriamos beber uma
cerveja na Goa.
Foi o fim!
Não mais andaria de Norton e menos com o campeão, que se notabilizou com a moto
Triunph 500.
Mais tarde,
voltei a andar, não em alguma das de grande cilindrada, mas numa BMW 250. Já
acabado o curso em Vendas Novas, fomos mandados para Leiria uns sessenta,
apenas eu "especializado" em munições de artilharia e a maioria de
campanha, comunicações e outras. Entre eles veio o "Niki", nunca o
conheci por outra designação, mas era inevitável conhecê-lo pela sua
genialidade em transformar riscos, por mais retorcidos que fossem, em figuras
de banda desenhada ou outras. Horas foram passadas, com vários riscadores
juntos ao génio, uns fazendo riscos e ele dar-lhe formas de sua imaginação e
nunca demorando mais de cinco minutos.
Nascido em
Beja, capital do Baixo Alentejo, filho de um comerciante, para ali se deslocava
todos os fins de semana na sua BMW, muitas vezes dando boleia, até Vila Franca
de Xira a um colega que partilhava o mesmo quarto, alugado na cidade, junto a
uma taberna e o conhecido fotógrafo, Fabião. Por qualquer razão que nunca
soube, nem tinha que saber, o Niki e o colega desentenderam-se, ficando o Niki
sozinho no quarto.
Sabia que
também eu, sempre que podia, fazia o fim de semana em Lisboa, onde ia trabalhar
no mesmo estabelecimento onde trabalhei até ir cumprir o serviço militar,
recebendo uma quantia que não recordo e alguns produtos alimentares,
nomeadamente conservas, para complementar algumas refeições, por ser o rancho
de muito má qualidade, havendo uma das refeições que de segunda a sexta-feira
era sempre dobrada com feijão branco, miudinho e difícil de comer por ser tão
duro.
Foi o Niki
quem se ofereceu a dar-me boleia até Vila Franca, tal como fazia com o anterior
ex-colega de quarto, uma vez que ele passava para a outra margem do Tejo, pela
ponte ali existente a caminho de Beja.
Num dos fins
de semana, mal saímos de Leiria, começou a chover, uma chuvinha mole, que foi
aumentando e quando chegámos ao Vale Gracioso já era uma chuvada bem densa que
nos aconselhou a resguardar no Mosteiro da Batalha, já completamente
encharcados e o frio a fazer-se sentir; ao cabo de quase uma hora, sem parar de
chover, mal abrandou regressámos a Leiria, ele ia mudar de roupa e regressava à
estrada e eu, ficaria por Leiria porque não tinha outra fatiota de reserva.
A última viagem
de BMW de Leiria para Lisboa, não teve um início pacífico; saímos frente à
entrada para o Parque da cidade como era hábito, a cerca de cem metros tinha
que ser passada a ponte frente Hotel Lis. Era a antiga Estrada Nacional número
um, por ali passando todo o tráfego que vinha de Lisboa para o Norte, até ao
Porto e no sentido inverso. A ponte era estreita para os camiões de carga
fazerem a curva para entrar ou sair da ponte, muitas vezes passando por cima do
passeio, tendo sido protegido o lancil com uma chapa metálica que, devido ao
uso frequente, se foi desgastando ao ponto de abrir uma fissura no vértice do
ângulo, por ser a parte mais atingida.
O Niki
fez-se à curva, bem encostado ao lancil chapeado, de tal modo que o meu sapato
direito, apoiado no pedal e com a biqueira ligeiramente voltada para fora, a
sola entrou na fissura da chapa que, como uma faca, cortou toda a cosedura
ficando desligada do corpo do sapato! Parou logo à frente, no início da Rua
Machado dos Santos e ambos desatámos a rir, ele a gozar o seu naco ao
imaginar-me a ir de Vila Franca para Lisboa, com a sola a fazer cloc, cloc, a
cada passo dado! O meu riso, menos entusiástico, estava já misturado com a
busca da solução. Foi ele ao mercado de Santana pedir um bocado de guita, atei
o sapato e seguimos para Vila Franca, com o ar a entrar pela pequenina abertura
e a deixar-me o pé a ficar desagradavelmente frio, mas fizemos a viagem,
tirando o bilhete até Sacavém, onde saía e voltava a entrar na carruagem
apinhada e sempre pela porta mais distante do revisor, fazendo sempre a viagem
de borla, como aprendi em Sacavém durante o tempo do curso, cuja duração foi de
cerca de seis meses.
Ainda
recordo duma outra viagem, de Leiria para Fátima e regresso, no fim da tarde de
doze de Maio, por não sabermos o que fazer e ele nunca ter ido a Fátima. Ainda
não tínhamos chegado ao lugar de Cardosos, quando um furo na roda traseira, um
pequeno furo, mas que nos impedia de prosseguir naquelas condições. Para trás
não queria voltar e a solução que encontrou, aquele também não ficava perdido
em cogitações inúteis, foi a de fazer sinal ao primeiro motociclista a quem
pediu a bomba do ar emprestada e lá atestou o pneu, ao mesmo tempo que
combinava com o senhor a dar-nos a ajuda enquanto pudesse e que foi até Fátima,
sendo esta, também, o destino do simpático motociclista! Consistia no
empréstimo da bomba as vezes que fossem necessárias; nós adiantar-nos-íamos até
o pneu aguentar, esperávamos por ele, enchíamos o pneu, devolvíamos a bomba e
andávamos mais uns quilómetros e em três paragens de “oração” chegámos ao
destino: O simpático senhor ainda foi connosco a um vendedor de pneus que se
comprometeu a remendar o furo, não cobrava nada “vocês andam sempre tesos!”,
disse o comerciante e ainda nos facilitou a visita ao dizer “vão descansados
que eu deixo a moto além” apontando um telheiro onde guardava os pneus velhos!
Agradecemos ao motociclista e ao comerciante de pneus e cada um foi à sua vida!
Havia muita
gente nas ruas a deambular, vendo o pouco que havia para ver naquela época. A
noite estava amena, as ruas muito iluminadas, era o primeiro dia das
celebrações anuais, o dia da primeira epifania!
Numa das
ruas bem iluminadas e com gente a cruzar-se sem pressas, vi a uns metros à
frente, de costas, uma senhora, aparentemente jovem, vestindo uma saia muito
travada, era esta a forma como era designada, num tecido verde, todo aos
“borbotos” e que se meneava duma forma que seria normalíssima, mas que me
pareceu um pouco fora do comum, estava farto de ver aquelas saias em Lisboa,
bem incómodas nalgumas situações! Apenas a que mais me suscitou essa ideia de
incomodidade: estava, com outras pessoas, a esperar a chegado do autocarro para
a Praça do Chile! Entraram duas pessoas, sem problemas, mas uma terceira
contorcia-se para chegar com o pé direito ao estribo para depois se elevar com
a ajuda do pequeno corrimão da porta! Não conseguia de maneira nenhuma chegar
ao estribo e não tomava a iniciativa de subir a saia acima dos joelhos, talvez
por saber que só passaria descosida! Como não atava nem desatava, peguei-lhe
pelas axilas e com ela a ajudar, entrou e a seguir todos os que esperavam! Não
me recordo se agradeceu ou refilou, era coisa em que não pensava nem penso
hoje! Mas voltemos a Fátima…!
Recordado da
cena do autocarro, em Lisboa, dei um pequeno toque com o cotovelo no braço do
Niki e comentei: de certeza que aquela agitação verde que ali vai não veio
cumprir promessa nenhuma! “É verdade!” , acrescentou ele! E nesta atitude
descontraída, quando passávamos pela saia azul, eu pela esquerda e o Niki pela
direita, dei uma peque palmada e de imediato a modelo de saia verde, em plena
passerelle, rodou para a direita e deu uma valente estalada na cara do Niki e
continuou! Nós é que parámos, com o Niki com a mão a cobrir face esquerda e eu
a rir da cena e ele a dizer, fingindo uma zanga que não tinha: “quer dizer, tu
palpas o cú à mulher e quem leva uma estalada a sério, sou eu!”
Nunca pensei
que tivesse esta reacção, no meio de tanta gente, alguns de boca aberta e um
deles, juiz de primeira instância, perguntou, olhando para mim e para o Niki: “mas
que raio se passou? Pergunta o curioso. Nada de importante, respondi, apenas uma
pequena confusão Já sanada!
Cumprida a
promessa de ir a Fátima na sua moto e espreitar a multidão, de vela na mão e a
orar à Virgem, cada um por seu motivo, outros sem motivo algum, no ar pairava
um forte cheiro a cera e uma zoada como se ao longe estivesse a ser executada
uma sinfonia em que só os baixos entravam. A primeira vez que estive na Cova da
Iria foi em missão de apoio aos peregrinos, através da Bateria de
Referenciação, eleito pala escola de Meteorologia, juntamente com outros, um de
cada especialidade e sempre gostei do ambiente místico que enchia todo o
recinto e transbordava para fora dele.
Quando
achámos que estava na hora de regressar fomos buscar a moto, viu se estava tudo
bem com os pneus e mal entrámos na estrada e ligou os faróis, nada sucedeu,
repetiu a operação e o resultado foi o mesmo! E agora, camarada?!
- Temos de a
levar para Leiria e como luz não temos, vamos à boleia! respondeu.
Á boleia?!
De quem? perguntei.
- Já vais
ver! Respondeu, naquele tom de voz calmo e de acentuado sotaque do Alentejo.
Mal apareceu
o primeiro carro arrancou e tentou manter-se a uma distância que permitia
alguma visibilidade e assim percebi o que era ir à boleia.
O
automobilista, deve ter pensado que íamos a persegui-lo e acelerou, depressa
ficámos sem boleia; mas logo veio outro, que nos ultrapassou depois de fazer os
respetivos sinais e continuou, connosco atrás, mas em cada curva ficávamos sem
luz e tínhamos de parar, perdendo a boleia. Assim percorremos uns dez
quilómetros ou mais, até que aparece um terceiro, ultrapassou-nos e parou logo
à frente e saindo do carro veio ter connosco e perguntara, mesmo antes de
chegar junto a nós:
- Há algum
problema, amigos?
Estamos sem
luz, somos militares, viemos de Fátima e vamos para Leiria.
- E como
chegaram até aqui? Pergunta, com ar de espanto.
Viemos à
boleia, atrás dos automóveis, até perdermos a proximidade e termos de parar.
- Mas que
temeridade! exclamou. Vamos fazer o seguinte: eu vou à frente, modero a
velocidade e nas curvas abrando para não ficarem sem luz! Moro nos lugar dos Cardosos,
a uns quilómetros de Leiria, e como não é tarde, vou convosco até à entrada de
Leiria!
Isso é uma
grande maçada, nós nos desenrascamos! Para Fátima foi um furo do pneu traseiro,
tivemos que ír à boleia de um motociclista que nos emprestava a bomba para
meter o ar indispensável, andávamos mais uns quilómetros e esperávamos por ele,
sempre assim, até Fátima!
- Foram
cumprir alguma promessa? perguntou, a sorrir!
Não. Como em
Leiria não havia nada para fazer e o camarada alentejano nunca tinha ido a
Fátima, resolvemos ir, aproveitando a data e assim ele veria como é aquela
terra em dia de Celebração!
- Então foi
castigo! Disse o nosso salvador, rindo!
E retomámos
a marcha atrás do automóvel, até ao centro da cidade, onde nos despedimos do
anjo que devia estar em Fátima e nos seguiu!
II
O senhor
Alfredo, meu último patrão em Lisboa, comprou, de sociedade com um dos irmãos,
comerciante do mesmo ramo, com a intenção de economizar, no transporte diário
dos produtos adquiridos no mercado da Ribeira e no Mercado Abastecedor das
Frutas, um carro antigo, deixando de estarem dependentes da empresa que o
transporte e entrega no domicilio, a partir daqueles mercados.
Foi uma
calamidade! Nenhum deles tinha carta de condução quando se decidiram pela
compra, devendo tê-la conseguido, como tantos o terão feito, subornando alguém.
Não que eles o tenham dito, mas quando alguns encartados viam as aselhices que
ambos faziam, comentavam, em linguagem chocarreira: "foi comprada,
hein?!" e eles riam.
Mas ao cabo
de uns meses de asneiras e muitos treinos à noite, quando havia menos trânsito,
lá foram acertando com a condução e diminuindo o perigo que no representavam.
Os danos provocados a terceiros não foram muitos nem graves, mas o "chaço"
em que foram aprendendo foi de tal modo mal tratado que certo dia deixou pura e
simplesmente de andar! Encostou à box e por ali ficou.
Resolveram
comprar outro veículo e a escolha recaiu numa carrinha Peugeot 203, de caixa
aberta, que ainda sofreu a bom sofrer. Por vezes eu transitava ao lado do
condutor, isto sucedendo depois de o senhor Alfredo deixar o irmão e os produtos
no Bairro Azul e nós seguíamos para a Rodrigo da Fonseca. Foi assim que, com
ele a gerir os pedais e a caixa de velocidades, eu aprendi a manobrar o volante
e ganhei alguma noção de conduzir.
No ano
seguinte veio a tropa e em Angola, sem carta de condução, guiei jipes dentro do
quartel e uma vez fora dele, quando fomos levantar seis jipes novos, munido de
uma folha de papel tamanho A cinco e apenas o carimbo da Unidade, ao Deposito
de Material e Manutenção! Como um dos condutores estava em estado de não poder
conduzir, peguei eu no volante, com o
condutor ao lado e de lado tombado, percorrendo cerca de um quilómetro,
distância entre o Depósito de Material e o GACL. Como não houve tempo para
aprender a usar a caixa de velocidades, o percurso foi feito sempre com a
primeira engatada!...
Mas no carro
do furriel Carvalho, colega do RACL, um Cônsul de três velocidades, com
alavanca no volante, conduzi só ou acompanhados, várias centenas de quilómetros,
sem carta de condução, também por que o policiamento ser quase nulo, sobretudo
à noite e mesmo de dia não abordavam muito os militares. Só em caso de acidente
é que acorriam, mas logo passavam a pasta mal outro militar aparecia e assumia
a responsabilidade. Era uma balbúrdia bem organizada! E eu tão inapto era que,
com centenas várias de quilómetros percorridos, não conseguia meter a terceira
velocidade sem arranhar.
Para evitar
algum percalço a mim ou ao Carvalho, dono do Cônsul, decidi aprender para fazer
exame de condução; dei a entrada então exigida, mil e quinhentos angolares, mas
à quarta lição o proprietário da escola e dos carros, naturalmente, foi detido,
acusado de estar a exercer uma sem que estivesse legalizado. Lá se foi o sinal
e a carta de condução.
A passagem
pelo Tribunal Judicial e pela Instrução Preparatória, logo após o meu regresso
de Angola, onde se investigavam a maior parte dos crimes, exceto uma meia dúzia
deles, ou nem tanto, que eram da exclusiva competência da Policia Judiciária, a
grande maioria dos investigados eram devidos a acidentes de trânsito, de que
resultassem ferimentos ou a morte.
Foi tal o
número de estropiados que foram ouvidos,
ou no Tribunal, no Hospital ou no domicilio, foram tantas as autópsias a que
tive de assistir que, se já era pouco o entusiasmo pela condução, este passou a
ser quase nulo.
E de tal
forma foi o trauma que só no ano de noventa e três, quando a empresa faliu e a
eminência de desemprego era real é que decidi obter a carta de condução, por poder
vir a ser útil num novo trabalho.
Inscrevi-me
numa das Escolas de Condução e fiz o exame de Código sem dificuldade, mas
quando passei à fase da condução os problemas logo vieram ao de cima: o
instrutor que teve de ser trocado por outro; no exame o carro que nos foi
distribuído tinha problemas de embraiagem de tal ordem que teve de ser levado à
oficina antes de os exames terem começado, acabando por chumbar, tal como o que
se seguiu a mim e no mesmo carro.
Fui
aconselhado, pelo segundo instrutor, a mudar de escola por me terem
"tomado de ponta" e seria muito difícil eu passar enquanto o ambiente
estivesse como estava.
Mudei, fiz o
exame sem grandes problemas, mas sempre tive pouco prazer quando conduzi. A viagem
mais longa que fiz foi à Costa Vicentina e regresso, não tendo ao todo
conduzido mais que dois mil quilómetros.
Dez anos
depois de obtida teria de a renovar, o que não fiz e assim terminou a minha
aventura no caso dos transportes.
Reis Caçote
2002/dig.11/14
Sem comentários:
Enviar um comentário