quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

POS ESCOLA- BIOGRAFICO


TERMINADO O PERIODO DE ESCOLA E NÃO HAVENDO CONDIÇÕES PARA CONTINUAR A ESTUDAR, TERIA QUE ENCONTRAR FORMA DE OCUPAR O TEMPO, AJUDANDO O TI MIGUEL NA AGRICULTURA, REBUSCAR DURANTE A APANHA DA AMENDOA E DA AZEITONA E O MAIS QUE VIESSE; A GUERRA DA COREIA DEU-ME TRABALHO! ASSIM:


TEMPO POST ESCOLA


                  I


Para quem não conhecesse o meio, a léguas de distância da “evolução” e do “desenvolvimento” seria levado a pensar que minha Mãe, naquele tempo, devia ter já o pomposo cargo de Encarregada de Educação, pela forma desenvolta como decidiu, pela positiva, a proposta da dona Graça, professora dos rapazes, de eu repetir a terceira classe!
Não para facilitar a vida da professora, mas para, como ela bem frisou, para eu me livrar, durante mais um ano, de ir para as ladeiras a cavar e a roçar! Não era profecia, por muitos dons e qualidades que tivesse, profeta não era; era o encarar de uma realidade que era regra. A exceção eram os filhos de duas ou três famílias com tangencial capacidade para os filhos irem além da instrução primária. Por isso eram os colégios ligados à igreja católica, todos bem longe, como o eram os liceus públicos em que o mais próximo era o da Guarda, capital do distrito.
Os resultados obtidos por esses casos excecionais eram quase sempre fracos e, assim, se chegara aquela situação de não haver um único licenciado. Esta era uma tão sentida realidade que muita gente brincava com os pais dos estudantes, quando estes vinham de férias e sem resultados.
O mais ousado dos críticos era, como em quase tudo, o meu amigo ti Vilela, com a sua cáustica e explicita forma de abordar os assuntos: “só os burros e os filhos dos burros é que vão para os estudos” e “os que deviam ir não podem!”.
Este amigo, da idade do meu pai ou um pouco mais velho, era a figura que, nos dias de hoje, sobretudo nas grandes cidades, caracteriza os sem- abrigo na civilização. Para mim era mais o emancipado-dependente: não tinha casa, dormia onde calhava, arrastando consigo a inseparável guitarra, mais presente do que a esposa que, pacientemente, deambulava com ele, quase sempre contrariada e que não foi ainda beatificada, como tantas outras ou outros, não estarão na graça do Senhor!
Trabalhar, só mesmo quando não podia deixar de ser, por conta deste ou daquele, mas sobretudo do senhor Cassiano de Albuquerque, meu padrinho e alvo preferido das suas “farpas envenenadas” a que já não ligavam muito, conhecido como era de todos.
Quando estava livre dos vapores do álcool revelava-se um teórico doutrinário nas mais diversas áreas do saber.
Durante uma das campanhas para a Presidência da República, em que um dos candidatos foi o general Norton de Matos, talvez em quarenta e oito, o velho Vilela, de guitarra abraçada e emblema do perfil do general ao peito, descendo a Rua Larga sentado, em pé seria improvável, cantava hinos de louvor ao candidato e quando passava frente às janelas da casa grande do senhor Cassiano, lá vinha a provocação destinada ao senhor Cassianinho de Albuquerque, diminutivo que ele sempre usava quando a “seta” era disparada: “em quem eu vou votar senhor Cassianinho?” Ele sabia que o meu padrinho, presidente da Junta era quem decidia pela maior parte dos votantes, ou porque estes não queriam saber ou por que entendiam que o presidente da Junta, enfermeiro, empregador e cidadão exemplar devia saber melhor que eles e o que decidisse estava bem.
Um dos espaços habitados pelo casal Vilela, nómada permanente, durante algum tempo, foi o galinheiro, devoluto (as galinhas tinham espaço mais que suficiente nos diversos espaços da casa grande), que existia na tapada da fonte, terreno murado, com horta, pomar e que entretanto fora dividido, mas que era todo da senhora Amélia Caçote, irmã do avô Joaquim, proveniente de uma das duas heranças dos viúvos com quem casou.
O palácio então ocupado pelo casal ficava mesmo em frente do chafariz, obra da autoria da população, com projeto de um estudante de engenharia e que será tratado em trabalho próprio.
Numa noite de vinho a mais e no cumprimento de uma aposta de taberna, comprometeu-se a ir dormir, nessa mesma noite, no cemitério, no único jazigo existente, da família da senhora Amélia Caçote. Só parte da aposta foi cumprida; quando a meio da noite os vapores do álcool se atenuaram e uma fresta de lucidez entrou pelo jazigo, que só aos mortos estava destinado e o ti Vilela se apercebe do sítio onde estava, fugiu esbaforido, praguejando rua abaixo, até ao local onde tinha destinado dormir antes de ter decidido fazer uma ocupação que não era bem o galinheiro! Nos tempos que correm o que ele fez foi uma ocupação “selvagem” embora aquele fosse um espaço onde a selva não existe e a paz reina em todo o território.
Já as doze badaladas, ou melhor, marteladas, uma vez que é martelo que bate no sino e o badalo apenas estremece, foram ouvidas há um bom pedaço de tempo quando o “ressuscitado” Vilela se atreveu a ir visitar o taberneiro para ver se o tinto ainda lhe sabia bem e levava, já prontinha, a desculpa, para o caso de o fornecedor se divertir, a forma de manter a fama que não tinha, a de ser destemido! Mal entrou e viu o sorriso da testemunha, fingiu-se ele muito zangado e acusou os intervenientes na aposta de “criminosos” e de o quererem enterrar vivo!  
A certa altura o velho Vilela achou que eu devia aprender a tocar guitarra e ao fim do dia lá me encontrava com ele, em frente ao chafariz, sentados no muro que delimitava o caminho e a tapada do meu padrinho, caminho que, atravessando várias propriedades, vai para as hortas, sendo uma delas cultivada por nós, quando os Prados já começavam aficar longe demais e grandes demais as leiras para uma família reduzida a três pessoas! Era propriedade do senhor José Maria Patrício, que casou com uma das duas filhas da senhora Amélia Caçote, pais do Álvaro e Reinaldo. Os Prados eram indivisos, couberam na partilha, por morte do segundo marido da senhora Amélia, às filhas Mariquinhas, antes referida e senhor Patrício e à outra filha, Cecília, por sua vez casada com o senhor Cassiano de Albuquerque, madrinha e padrinho do meu baptismo e ídolo, pela negativa, do então meu professor de guitarra.
Esforçava-se este amigo para que as notas musicais me entrassem no ouvido e fossem plasmar-se na pauta que todos trazemos de nascença, uns mais definida que outros e pela conclusão que hoje posso tirar é a de que a minha é a dos outros! E talvez não, já me questionei várias vezes do porquê desta dificuldade e as causas e conclusão estão desenvolvidas em capítulo separado.
Na falta de gaita de beiço que serve, ou tem servido, para os professores de música iniciarem os alunos nos sons das notas musicais, o meu ilustre professor ilustrava a aula com uma toada que depois acompanhou da respetiva letra e que era:
    “Mija gato e caga cão, já cagaste ainda não” !   
Sempre me convenci de que ali estariam contidas as notas musicais básicas para a aprendizagem da guitarra.
Não aprendi por incapacidade minha e não por inaptidão do professor; e não apenas para as cordas, outros ensaiei e em nenhum deles me senti bem, com mágoa o confesso!


                                                 II


Retomando o início do capítulo anterior.
Ao terminar com êxito a quarta classe, em Junho de cinquenta, o caminho seguido, tal como bem sabia a tia Amélia ao dar a sua aprovação à proposta da dona Graça para que eu repetisse a terceira classe, quando estava tão bem ou até melhor preparado que os que passaram para a quarta, o caminho seguido, disse eu, foi o acompanhar o ti Miguel, meu Pai e professor, hoje seria formador nas artes de agricultar, por meios “analógicos” e calejar as mãos em vez de apenas as papilas de dois, três ou mais dedos. As aulas eram essencialmente práticas, a teoria era mais para tornar mais fácil cada uma das várias tarefas.
As ceifas estavam em curso, ainda algumas cevadas em pé e a foice passou a ser manejada, de início com pouca destreza e algum receio, mas ainda as cevadas não tinham terminado e já era manejada com descontraída à vontade, contornando as pedras, os cardos e ervas daninhas, para que só os colmos fossem enchendo a mão esquerda, protegida com dedeiras. Uma vez cheia a esquerda, a direita puxava um ou dois caules, ainda não ressequidos e com eles dava volta à manada, dobrava as pontas em ângulo agudo e pelo vértice enfiava-as por debaixo da atadura e poisar a manada no restolho, sempre na mesma posição para quem virá juntar as manadas em braçado, atando este grupo de manadas com uma “nagalha” feita com palha de centeio, antecipadamente e humedecida para não partir ao atar, num jeito parecido com o da manada, mas agora com ajuda do joelho para que o molho fique atado com a segurança suficiente para que se não desate nas operações seguintes até chegar à eira: formar os rolheiros e carregar os animais!
A garroba, como lá se chamava e pelos vistos bem, mas também garreba e gameta, é uma leguminosa da família da lentilha, inicialmente cultivada no planalto mirandês, alastrou para regiões a sul do rio Douro. Adaptava-se bem terrenos muito pobres, onde não cresceriam os trigos ou cevadas, era usada na alimentação de gado, sobretudo bovino e em situações de grande escassez alimentar, como sucedeu durante algum tempo no final e pós II Guerra Mundial. Lá em casa, que me lembre, foi usada uma só vez e do que recordo não era de todo desagradável. A pequena produção que se fazia era vendida ao senhor José Madeira, quase único comerciante por grosso, que comprava a produção de cereais e amêndoa e fazia chegar ao circuito comercial mais alargado. Havia um mais antigo, o senhor José Índio, mas conforme o senhor Madeira crescia o senhor Índio definhava. Da produção, quando a havia, ficava só a quantidade para uma sementeira, calculada pelo ti Miguel Monteiro.
Quando a ceifa dos trigos chegava, mais para Julho, repetia-se a mesma cena das cevadas, em Junho. Os colmos do trigo eram menos ocos e mais pesados, implicando um dispêndio de energia, tanto a ceifar, como movimentar e em Julho o sol “grelhava” os corpos, dobrados pela cintura, um pé mais à frente para manter o equilíbrio, nas encostas soalheiras do “calvário”. A hora da merenda coincidia com o pico do Sol e a sala do repasto era, quando existia, a sombra de uma oliveira ou amendoeira.
Navalha na mão direita, fatia de pão da semana na esquerda, em cima desta um naco de toucinho salgado, um corno de boi com azeitonas e em alguns casos, para os adultos, uma botelha ou cabaça com vinho, intragável, quando não se encontrava uma poça de água e uma sombra para o manter abaixo da temperatura ambiente, que rondava quase sempre mais de trinta graus Celsius. Era a merenda quase igual para todos os que faziam a ceifa.
O chapéu de palha era indispensável ainda apoiado por um grande lenço vermelho que teria uma dupla função: de filtro, juntamente com o chapéu e, como absorvia a transpiração, era também térmico; a parte sobrante da cabeça ficava a cobrir o pescoço e a nuca, do sol e do suor que sempre escorria. Mesmo assim, tanto homens como mulheres, de tempos-a-tempos aliviavam o chapéu para que a pequena camada de ar fosse ventilada, muito difícil no meio daquela fornalha inclemente onde só o ruído das cigarras e uma zoada que parecia emanar das entranhas da terra se ouviam e os corpos trespassava.
Havia sempre alguém, quando o rancho era maior, que tinha como missão procurar até encontrar, uma nascente e aí encher de água o cântaro ou outra vasilha em barro, que depois ia distribuindo pelos sequiosos, todos bebendo pelo mesmo púcaro, também de barro.
No inverno e para não voltar ao assunto, durante a apanha da azeitona, o elemento que procurava manter frescas as gargantas no Verão, era agora encarregado de ir acendendo fogueiras, sempre à frente do rancho, para que pudessem desentorpecer os dedos, frequentemente congelados e inúteis para a simples tarefa de apanhar as azeitonas que saiam dos toldos de lona ou estopa.
Tudo isto me era já familiar, mesmo antes de entrar na escola   e também quando já a frequentava; vamos fixar-nos neste período.
Como as aulas terminavam às três da tarde, os mais novos, ou tratavam do gado, os que tinham gado, outros iam regar as hortas, os que tinham horta e quase todos tinham, uns de sua família e outros as arrendavam ou cultivavam sem qualquer renda, por conveniência dos proprietários, como era o meu caso; com alguma frequência, nos tempos da apanha da amêndoa e da azeitona, tanto a minha mãe como minha irmã e meu pai, iam à jorna para os amendoais ou olivais da família abastada, assim como outras pessoas; os homens, munidos das suas varas, campinos sem cavalo nem campo apropriado, eram mais para varejar, juntar os frutos e ensacá-los, deixando-os no terreno, em pé, para rapidamente serem avistados e carregados nos animais que cada um levava para se deslocar para ir e regressar ao fim do dia.
As mulheres, como disse, eram mais para o penoso trabalho de apanhar os frutos que, teimosamente, insistiam em sair dos toldos e se não fossem apanhados apenas alimentariam um ou outro cliente residente, ave ou mamífero! Em vez de varas como os homens, cada uma levava uma cesta de verga que era a medida para definir o que iriam receber no final da semana ou da safra.
Alguns miúdos, poucos, sempre que podiam e tinham alguém de família a fazer essas safras, acompanhavam os familiares e dedicavam-se ao rebusco, ou rabisco como também é designado, ou seja, andar atrás do rancho de mulheres, catando os frutos que elas não viam e metendo-os num pequena saco que transportava ao ombro e quando estava a ficar pesado ia despejá-lo num saco maior que ficava junto do animal de carga.
Não sei até que ponto poderei pensar que não estava a prejudicar a fauna autóctone, mas era garantido que naquela época nada disso alguma vez pensara! Quem pensava que podia desequilibrar o eco sistema, roubando azeitonas aos ratos e estorninhos ou outros! E aqui para nós, mesmo hoje, uma boa parte dos defensores “encartados” dos animais, muitas vezes é mais teatro ou panfleto do que uma cultura estruturada de defesa dos animais! Não irei por aí, o que me propus foi registar memórias, com um ou outro naco de ficção e nunca uma coisa que nem como se faz sei, um tratado sobre relações humanas e desumanas, quando muitas vezes não sei quais são umas ou outras! Andando…
Os Prados, assim chamavam a uma olga de terreno, de forma ovalizada, com cerca de cem metros no eixo maior e uns trinta, ou menos, no outro, ficava entalada entre um terreno do ti Ari e a Quinta da Cascalheira, propriedade enorme, partindo dos Prados, alongando-se até ao ponto mais alto da montanha e descendo até ao rio Côa, bem abaixo, na fraga do Ceno! Deve ter sido, em tempos passados, uma quinta habitada a tempo inteiro, a habitação ampla de dois pisos, com terreno para a horta e algumas árvores de fruto e uma frondosa amoreira, bem adaptada e produtiva; a eira existente, tanto podia ser usada para a sua função habitual de debulha dos cereais e não só como espaço para secagem de amêndoa, como agora era. Durante alguns anos foi habitada por uma família de pastores, com dois filhos, se não estou errado, sendo o rebanho de um dos dois herdeiros, o senhor Patrício! Deve ter sido de curta duração, não sei porquê, mas era dedutível que viver ali, longe do pouco que havia na aldeia e com filhos pequenos, só mesmo por castigo!
Ainda devem ter convencido o meu pai a semear um pedaço de terreno mais plano, perto da casa, mas logo no primeiro ano foi só trabalho e a cevada mal cresceu. Quando deixei a aldeia apenas era explorado o que restava do amendoal e olival, com as árvores não tratadas e cada ano produziam menos, chegando bem para lhe dedicarem alguma atenção, o que não sucedia!
Soube alguns anos depois, penso que quando adoeci e o médico aconselhou que devia “mudar de ares” e estive cerca de três meses na aldeia, aos cuidados da tia Amélia, como o doutor Caldeira decretou: “Amélia, o rapaz não tem nada nos pulmões, mas tens aqui muito que tratar! Alimentar-se bem e repousar muito é o que precisa”, que a Quinta foi aumentar o património da senhora Amélia Caçote duma forma não muito limpa!...
Os proprietários da fundação ou os herdeiros a seguir, devem ter-se metido numa daquelas querelas feudais, em defesa do bom nome, acabando por ficar com o nome, mas sem património; ou ficando os advogados com as propriedades ou acabando por serem penhoradas para o estado ser ressarcido das dívidas por custas e impostos em atraso. Foi o que sucedeu e foi à hasta pública, em Figueira de Castelo Rodrigo, sede da comarca, pelo valor de quinhentos escudos.
O pai do meu padrinho era o mais antigo membro da família nobre dos Albuquerque Andrade Saraiva Vasconcelos, daquela região e a residir em Castelo Melhor, desconhecendo se, além do património agrícola, teria outra ou outras fontes de rendimento.
Deviam dar-se bem, o representante da família nobre e um dos dois ou ambos os maridos com quem casou a senhora Amélia Caçote, irmã do meu avô Joaquim dos Reis Caçote! O pai do meu padrinho soube por alguém que a Quinta ia a leilão, coincidindo com a deslocação a Figueira do marido da minha tia-avó para tratar de assunto seu e o amigo pediu-lhe que se o valor do leilão não fosse além dos quinhentos escudos, a arrematasse para ele, entregando-lhe a referida quantia. Tudo bem, a palavra-dada era muito respeitada naqueles tempos e ainda muitos anos do seculo XX, não é como passou a ser, palavra de honra, produto que vale até alguém oferecer mais! É bonito, é fino, é inteligente e ainda acaba por fazer escola e ser regulada por Lei do Estado “democrático”. Mas não houve, no caso em apreço, a palavra dada, mas tão só um pedido feito e aceite a sua execução.
Tudo na perfeição até ao momento de assinar a escritura e aí alterou-se o combinado, ou seja, a Quinta foi registada em seu nome e não no do amigo que lhe fez o pedido e paga com os quinhentos do amigo! Pode não ter havido ilegalidade, mas bonito, bonito,…eu não acho. O património do nobre terá ficado tal qual, caso o amigo “da onça” lhe tenha devolvido os quinhentos escudos, mas o do casal ficou mais inchado com uma Quinta!
Nunca me atrevi a perguntar o que terá pensado o meu avô Joaquim, uma vez que a emigração dele para o Brasil nunca foi compreendida e muito menos aceite! É que zarpar para o outro lado do mar deixando quatro filhos, três raparigas e um rapaz, tudo leva a crer que de menor idade, nos braços da avó Zefa…! Adoptei-o como um ídolo, mas sempre gostei muito da mina avó!
A Quinta e a olga dos Prados acabaram por ficar na posse das duas famílias, porque a filha da senhora Amélia e sobrinha do avô Joaquim, Cecília, veio a casar com o filho do nobre, o meu padrinho Cassiano de Albuquerque e quando o esposo da senhora Amélia Caçote faleceu tiveram que ser feitas as partilhas entre ela e as duas filhas, dando esta salada de bens que devem estar hoje entregues à livre iniciativa de tudo o que é natural, o Sol, a Chuva, o Vento e depois os vivos do Reino Animal!
E foi na horta dos Prados que eu aprendi a arte de agricultar: cavar, limpar, semear, plantar, estrumar e enxertar. E se vier um dia ou uma noite, é indiferente, a defender a tese de doutoramento, vai ser sobre a disciplina da enxertia! Porque gostei dela, pratiquei-a em quase todos os Prados e arredores! Bastava topar com uma amendoeira brava e ficava logo marcada para ser transformada em pessegueiro ou ameixieira, ou até as duas coisas!
A maioria dos enxertos morria entre a Primavera e o Verão, bastando para tanto que o tempo fosse excessivamente quente ou seco! Mas quando venciam a batalha daqueles meses, ou porque correu a favor o tempo ou o lugar onde deviam crescer tinha melhores condições de humidade e proteção aos ventos do Norte, pouco ou muito davam frutos, bem apreciados quando os que passavam para o trabalho ou dele voltando e até os caçadores, quando abria a caça às rolas! Os que estranhavam o achado perguntavam e algum dos companheiros que já sabia o porquê do achado informava: é o Zé Cassiano que anda sempre nas enxertias!
Mal eles sabiam as vezes que eu era “enxertado”!


                                                 III


No final da apanha da amêndoa vinha o tempo da roça.
Consistia em limpar os terrenos que estiveram em repouso nesse ano, cortando silvas, giestas, cardos ainda com flor para não ficar o terreno infestado de sementes. As piorneiras eram as que mais admirava! Saídas de cepas que mal se viam entre as fragas, agarravam-se à vida com uma tenacidade impressionante! Por mais fundo que fossem cortadas e arrancadas, no ano seguinte lá estavam a crescer, saídas de qualquer resquício de raiz, por vezes pareciam sair do nada.
Eram as maiores, agrupadas em feixes que ficavam no campo a secar ou eram logo levadas para a aldeia para atear fogueira e lareira.
Destas aprendizagens a que mais rigor exigiu foi a da sementeira. Mas a certa altura peguei no saco de algodão, tecido no tear pela Mariquinhas, e com uma fita de pano, atada num dos cantos da cozedura, onde se juntavam uma pequena quantidade de sementes, formando um “mamilo” para não se desprender e a outra ponta do pano atado no canto da boca do saco, para servir de bandoleira; botei-o ao ombro esquerdo e a mão desse lado segurou a borda do saco de forma a mantê-la sempre aberta. Voltado no sentido do rego que há-de ser feito, meto a mão direita pela abertura do saco, retiro-a já cheia de trigo ou cevada e olhando em frente, num movimento sincronizado, faço o lançamento, esticando o dedo indicador para abrir a porta e servir de rampa de lançamento para a semente sair espalhada em arco; de três em três passos, se não estou errado, ficando sempre à frente o pé esquerdo, no momento de lançar.
Chegado ao limite repetia-se tudo até criar uma faixa de semeadura que iria ser coberta com a terra movimentada pela relha ao abrir o sulco com o ti Miguel Monteiro, ou eu, agarrado à rabiça na extremidade do arado e bem atrás do gado que era o motor, sempre a ser comandado e incitado com a voz sempre calma: “castanho, vamos lá” ou “preto, tem-te ao rego”, “ isso mesmo” a relha a ficar presa, ou num calhau do maciço ou numa raiz de piorneira e ter de fazer a parelha recuar para à costa de força ser desenterrada e continuar.
Aquele monólogo era mais para quebrar a monotonia que a rotina provocava e sentirem-se todos acompanhados, do que para corrigir e incitar! O dia terminava, os apetrechos ficavam no terreno e os animais e lavrador regressavam a casa, a pé ou montado num dos animais.
Era assim, semanas e semanas, sempre igual, apenas o que ia mudando era o terreno, a sua localização e consistência; e o tempo, esse mudava mesmo, por vezes demasiado!
No final da primeira semana já eu tinha ensaiado todas as operações da sementeira. Já a caminho de casa, ao fim do dia, sem qualquer mostra de entusiasmo, virando-se para mim, disse o ti Miguel:
- Aprendeste depressa a parte mais cuidadosa, a semear e pareceu-me que está bem!
O pai acha, mas eu tenho a certeza!
- Tens a certeza porquê?
Porque comparei com a sua! E expliquei que, disfarçadamente, enquanto ele tinha ido “arrear as calças”, num dia contando as sementes em um metro quadrado semeado por si e no dia seguinte as por mim semeadas.
- Afinal quem és tu? Todos os teus irmãos aprenderam, uns mais depressa, outro mais devagar, mas irem confirmar se…estava bem, nunca sucedeu.
Sou o seu filho mais novo e procuro certificar-me de que o que faço me satisfaz!
- Então toda aquela confusão da escola!? Foi …
Teve alguma coisa a ver, mas sempre diferente do que semear!


                                                 IV


Do que mais gostava, talvez por ter começado a ir para lá antes de saber andar, era da horta dos Prados! Semear viveiros de couves, alfaces, cenouras, e outras, menos pimentos e tomates que tinham de ser semeados em tabuleiros, em casa, por não aguentarem o frio da noite, sendo levados para a lareira, onde pernoitavam.
A transplantação, a rega, o desbaste, vê-las crescer, apanhar folhas e frutos quando chegava a época, era criar vida.
O ti Miguel gostava de ter um pouco de tudo na horta, mesmo sabendo que alguns produtos não tinham consumo lá em casa! O caso que melhor recordo é o da beringela; eram meia dúzia de pés de um dos lados da leira dos pimentos, mas os belos frutos, grandes, roxos e brilhantes! A minha madrinha Noémia, filha única da madrinha Cecília e do padrinho Cassiano de Albuquerque, era a consumidora exclusiva das belas beringelas!
Tudo se dava bem nas terras que altos muros seguravam; mas com a ajuda dos cuidados do ti Miguel. A olga de cima, com três calços, não contando com o mais alto e que além de servir de suporte das terras, definia o caminho que dividia a meio as duas partes, serventia única de acesso às terras da Quinta, porque da quinta todos eram, como já ficou dito antes. Tinha uma meia dúzia de fiadas de videiras, uns fracotes pessegueiros, uma ameixieira brava a cujos frutos chamavam “ameixa cagoiça” a quantidade que produzia, velha e a cair para o caminho, não dava para honrar o epiteto! E duas figueiras brancas que dava os lampos, por volta do São João e depois, lá para Setembro, os vindimos que eram mais pequenos e seguros à mãe figueira, só quando muito maduros, já a ficar enrugados, é que dela se despediam em quedas suicidárias, embatendo em tudo o que se atravessasse no trajeto, fossem folhas ou ramos, até se acomodarem no chão! Um ou outro, talvez protegido por algum anjo protetor do figo, ficava entalado num galho, mas era pouco seguro o abrigo e mal vinha um ventinho mais forte, acabava no chão também.
Eram postos a secar sobre umas ervas secas a que chamávamos “passeira” de certeza por ser ali que eles acabavam de secar e serem apalpados para lhes retirar espaço que pudesse ganhar humidade e apodrecessem! E lá iam novamente para os campos, servindo de manjar de inverno nas merendas de quem os tinha.
Para arrumar os figos falta um pormenor que só mais tarde percebi: aos figos lampos, grandes e sumarentos, quem comunicasse ao dono das figueiras podia comer e levar para casa, os vindimos só podia comer! A explicação tem uma raiz histórica e civilizacional que remonta ao tempo do feudalismo e outra mais funcional, como não podiam ser secos, não resistiam a quase nada, mal caiam, maduros e pesados, mal chegavam ao chão rebentavam e apodreciam.
Retomando a olga de cima e passando ao segundo calço onde era cultivado o meloal, uns pessegueiros, uma pereira de frutos pequenos e fraca qualidade. Havia uma novidade que só há pouco tempo devo ter entendido: era um pessegueiro raquítico desde que o conheci, plantado num dos melhores bocados de terreno desta olga, o do meloal, que nunca terá dado mais que uma dúzia de frutos, espalmados em vez de redondos ou oblongos, a que meu pai chamava de “coimbrês”. Enxertei-o em mais que uma espécie de base, mas nunca vingou! Mal começava o Verão, morria! Há uns anos, poucos, conforme foram sendo abertos novos mercados de importação, apareceram novos frutos e entre eles o tal pêssego que mal o vi quis logo saber noticias sobre ele e mais não soube do que o nome: paraguaias!
No muro que segurava as terras do último espaço foi construído um tanque que depois foi coberto que se destinaria à rega do meloal ou do que ali fosse plantado ou semeado, mas que pouco mais era do que o meloal.
No último talhão, onde só havia uma figueira, uma fonte por onde se libertavam as águas que faziam o percurso desde o alto da montanha, esgueirando-se pelos mínimos intervalos e ali se apresentavam com uma pujança e pureza, depositando-se num tanque construído para a receber e armazenar, mas que já conheci inactivo!
Quem ali fez ou mandou fazer aquelas construções, terá sido o proprietário da Quinta e deve ter feito uma exploração intensiva dum espaço de terras ricas e fê-lo com muito saber! As águas abundantes que faziam o seu percurso dos vários pontos da montanha, só os subterrâneos porque os das chuvas faziam o seu caminho livre pelo exterior do espaço todo murado, e brotavam ou fizeram brotar lá no ponto mais cimeiro do oásis que era no meio de um quase deserto terreno em volta!
Não vou pormenorizar muito mais, seria difícil narrar tanto o que de bom e belo tinha aquele enorme pedaço de paraíso!
A horta onde eram cultivados os legumes era só metade aproveitada para este efeito, só a parte da entrada, com latada de uva de mesa logo a seguir, do lado direito e que cobria o tanque enorme para permitir a rega por alagamento, tendo para tal sido abertos regos junto dos muros que iam da entrada até se perderem do lado oposto, por onde o excedente de água ia descendo para a olga de baixo!
Além da latada havia uma figueira de figos brancos e uma bebereira de frutos negros por fora mas vermelhos como sangue por dentro! Cresceram no espaço criado para separar a horta das árvores de fruto, senão não haveria horta, porque a sombra a não deixaria criar nada e menos ainda amadurecer ou crescer os hortícolas!
Sem qualquer intenção eu acabei por deixar a minha marca no centro da horta: um pessegueiro maracotão que ali nasceu, como nasciam noutros pontos para onde fosse atirado um caroço! Pedi ao ti Miguel se podia deixar crescer a árvore? Concordou e foi um regalo ver crescer, em terra abundante e adubada, até ser o mais frondoso de todos! Os pêssegos eram grandes, sumarentos até pareciam ter melhor sabor!
Antes do pessegueiro era área dos legumes, para lá do pessegueiro era destinado às favas e ervilhas.
De realçar a gigantesca nogueira da olga de baixo e uma variedade grande de árvores de fruto, marmeleiros, damasqueiros, cerejeira e a nogueira que o Ernesto terá transplantado e era já enorme, competindo com as ameixieiras “Rainha Cláudia” que todos anos nasciam novas filhas das raízes que ficavam mais à superfície. O espaço plano criado com mais um calço era onde era semeado o nabal e depois uma cevada só para pasto para o gado!
A água puríssima que que atravessava a serra e a olga de cima foi artificialmente conduzida para uma conduta em forma de mina, ou túnel sem luz ao fundo e que já fora do muro corria por um grande bloco de granito, onde o canteiro abriu um canal, depois uma poça circular para quem quisesse poder beber, a que se seguiam mais cerca de vinte centímetros de canal que de dia e de noite, de Verão ou de Inverno, levava e despejava a água para dentro do tanque, onde muitas vezes fingi que nadava!
A árvore preferida da tia Amélia era a dos abrunhos de larga caroço, assim lhes chamavam, mas que em Lisboa tomavam o nome de “Rainha Cláudia!
Muitas vezes era nos Prados que lavava a roupa e quando ao fim da tarde regressava, sentada de lado na albarda do burro e ao colo uma cestada de abrunhos, quando chegava a cada mais de metade tinham sido comidos!
E tinha problemas todos os dias: dores no ventre e diarreias “ terei que deixar de comer abrunhos quentes” dizia, mas logo se esquecia. Os abrunhos, ao contrário das ameixas, que também havia, brancas e pretas, o caroço separa-se facilmente da polpa e sumo só escorria quando estavam muito maduros.
Quando algum dos filhos ou o ti Miguel chamava a atenção da tia Amélia para o exagero dos abrunhos, invariavelmente respondia: “deixem lá, sabem tão bem!”
Pior do que os abrunhos só mesmo as bolas de sardinha que, de tempo a tempo, fazia e que todos temiam, nomeadamente a Mariquinhas, por ser quem tinha a maior parte do trabalho, nas crises de vesícula que sempre advinham quase de imediato, com vómitos esverdeados – as corlas, assim era conhecido aquele desagradável liquido que vinha do mais fundo das entranhas – com dores gritadas e lá tinha que ir para Almendra ouvir o ralhete do doutor Caldeira quando as dores não amainavam com as mezinhas que sempre havia lá por casa.
O doutor, mal a via chegar, logo dizia: “outra vez, Amélia! Qualquer dia, ou já na próxima, não te atendo! Sabes bem que não podes comer aquela bola com as sardinhas! Tenho que ser eu a aturar-te e antes de mim é a família! Pareces uma garota é o que pareces!”
Já com menos dores, sorrindo, “oh, senhor doutor, não gosta dum naco…? “ “Gosto, mas eu não tenho esse problema que tu tens!” e voltava ela a sorrir, “oh, senhor doutor, sempre tenho que morrer, não é? Ao menos morro satisfeita! Olhe, doutor, prometo que quando morrer me calo”
“Olha, vai p’ró inferno e não voltes a aparecer por cá tão cedo!” E num monólogo, virando-lhe as costas, ia murmurando: “ como é que alguém pode morrer satisfeito a gritar com dores?!”
Bastava que a sardinheira aparecesse no dia da fornada, com a sua caixa ainda a meio e que parecia ser sempre a mesma e do mesmo fornecedor “MANUEL ROCHA, Matozinhos” e logo a tia Amélia começava a espalmar um pedaço de massa, arredondado e esconder lá dentro três ou quatro sardinhas que as abas da massa encobriam.
E mal saía do forno, ainda a escaldar, os olhos de gula a brilhar, soprando o primeiro bocado para de seguida o comer. As vizinhas que, como a tia Amélia, aguardavam que a fornada saísse, metiam-se com ela” oh, tia Amélia, logo à noite vamos ter festa lá em casa?!” “Pode ser que não, Deus me valha!” Não valia! Devia estar farto, como o doutor Caldeira!
Voltando aos Prados da horta, dos pêssegos e dos abrunhos…
Do que mais gostava era do meloal! Terreno preparado há algum tempo, cavado e estrumado, era tempo de semear. As pevides selecionadas eram dos frutos de melhor qualidade, da última produção. Abriam-se, mesmo à mão, pequenas e pouco profundas poças, onde enterravam três ou quatro sementes, apenas usando os dedos, polegar e indicador, alisando de seguida a terra. Na mesma altura eram abertos os regos para a rega por alagamento.
E vinha a festa da colheita, não como a de outros frutos que amadureciam todos ao mesmo tempo! Hoje aparecia um que o ti Miguel me ensinou a conhecer se estava ou não maduro, depois outro e, uma semana passada, já eram dez e mais por dia, durante mais de um mês! Nem foi preciso perguntar do porquê de serem semeados, pelo menos três espécies diferentes: casca de carvalho, pele de lagarto e um outro de cujo nome não recordo, cada um amadurecendo em tempo diferente, embora pequena a diferença.
As melancias eram semeadas no perímetro da área dos melões, sempre poucas, o pessoal preferia os melões.                                                    
Quando chegávamos a casa, o ti Miguel escolhia um ou dois lá para casa, uns quantos para meu padrinho, dono da horta e os restantes era colocados no balcão e dados a quem não tinha meloal e que eram a maioria das famílias. O ti Miguel apenas dava opinião se lhe perguntavam sobre qual seria melhor ou sobre o estado de maturação e notava-se a sua alegria quando as pessoas procuravam os frutos. Ao fim do dia, os que sobravam eram dados aos animais, ao porco, aos machos e até as galinhas se regalavam e bulhavam quando eram as pevides.
Eram estes os tempos e tipos de lavoura todos os anos. Não tínhamos terras nossas, a não ser uma pequena faixa de terreno lá para os lados do Douro e que tinha a designação de Penácio, uns trinta metros de largura e uns cento e cinquenta de comprimento. De fraca qualidade tanto os cinquenta metros mais planos, como os cem de encosta, de má exposição ao Sol, nunca produziram alguma coisa com jeito.
O ti Miguel não se poupou a esforços para tornar produtivo aquele único terreno mesmo seu. Na encosta ensaiou amendoal e no ponto em que terminava a encosta ensaiou o olival que lhe pareceu ser adequado para aquele pedaço. O Ernesto e o ti Miguel iniciaram o empolamento das mãos para abrir poças onde foram plantadas as primeiras e como pareciam ir dar-se bem, ainda iniciou, comigo, o trabalho de abertura de mais umas covas, mas naquele ponto do terreno o xisto era de tal forma duro, que só com dinamite o fosso se abriria, vencendo a natural oposição do solo. Parámos o trabalho e chegámos a acordo de que era trabalho demais para um projecto que o não justificava. E das doze que tinha projectado, só seis ficaram transplantadas.
A decisão veio a mostrar-se acertada, soube mais tarde, já em Lisboa, que raramente conseguiam apanhar alguma azeitona por que alguém se antecipava e a recolhia; alguns dos habitantes do Orgal, quando regressavam a casa, ou vindos do trabalho ou da estação dos caminhos-de -ferro, como tinham que atravessar o nosso terreno, por ser um caminho público desde tempos longínquos, era só andarem meia dúzia de metros e estavam junto das oliveiras.
O Orgal, antes citado, era o único lugar pertencente à freguesia de Castelo Melhor e situado a escassos quilómetros, pelo caminho, hoje estrada, que liga a freguesia a Foz Côa.
Para além do Penáceo havia também duas porções de terreno, indivisas, uma maior que fazia parte da herança dos meus avós paternos e outra, mais pequena, que ficou por morte da tia Josefa e do ti Joaquim dos Reis Caçote, meus avós maternos, este que foi para o Brasil e lá ficou.
Todas as terras que o incansável, ti Miguel Monteiro, amanhava para sementeira de trigo e cevada, eram de pessoas da aldeia que as não exploravam, ou por não terem condições familiares para o fazerem, ou porque tinham uma outra fonte de rendimento que lhes ocupava o tempo.
Não conheci nenhum mitómano que pensasse fazer fortuna naquelas terras de fraca capacidade para produzirem.
As grandes propriedades eram dos meus citados parentes, o meu padrinho e o cunhado, mas quase só tinham amendoal e olival, chegando a sua posse pela morte dos pais!


                                                 V


Pela curiosidade e singularidade das situações, pareceu-me mais curial trata-las em separado, mas nunca fugindo à magia daquele espaço de diversidade, um mundo para uma criança que a aventura ainda não tinha significado nem sequer nome: o microcosmo dos Prados!
As aboboreiras eram sempre semeadas no final da área da horta, a um metro do calço mais alto para que o seu crescimento fosse orientado no sentido de descer, sem pressões, os cerca de três metros de muro e ainda avançavam uns metros para a zona de passagem de acesso ao nabal e às macieiras. Aí sim, tinham de ser reorientadas para crescerem ao lado do muro e não de “costas” voltadas para ele. Enquanto cresciam, mesmo que junto ao chão, iam enfeitando o seu caminho com flores grandes, amarelas, em feitio de um funil ou gramofone, não dando fruto  maior parte delas, mas eram um regalo para as abelhas que as brindavam com seu concerto se violinos; as que viriam a transformar-se em fruto traziam já na sua base aquilo que viria a transformar-se num fruto, por vezes gigantesco. Aquilo que compramos no supermercado, a granel ou ensacado, as pevides, secas e salgadas são sementes de abóbora para, regalo dos amigos da cerveja.
Todos os anos, uns mais e outros menos, se produziram abóboras, quase sempre maiores nos anos de menos produção; teria a ver com o clima, porque a montante tudo era feito do mesmo modo: estrume, água preparação da terra.
Por vezes as abóboras nasciam a meia altura do paredão obrigando a planta a ir esticando, mas ou acabavam por cair ou o crescimento era em função do alimento que chegava.
A aboboreira é uma rastejante, como o são o meloeiro e a melancia e que me lembre não via melões armados em equilibristas, pendurados nas paredes e melancias muito menos, crescem mais que os melões e sua forma esférica era mais que certo que nos dias de vento, as melancias se cansassem do baloiço e sem se despedirem…aterravam!
Por mim conhecidas eram três a variedade das abóboras: a menina, de cor alaranjada quando adulta, com a forma de melão; a galega, de cor indefinida entre o creme e o acastanhado, do feitio de maçã; e a de guisar, esverdeada até ao fim da do crescimento e depois ia caminhando para o amarelo; desde o principio eram diferentes, os ramos, mal nasciam o caule era facetado e com pequenos esporos que picavam e as folhas eram salpicadas de um branco prateado, mais pequenas que as das outras espécies. Em toda a freguesia era comida pelos humanos, enquanto pequena e normalmente guisada, uma vez adulta era só para os porcos e talvez daí o lhe chamarem, nalgumas zonas do país, abobora porqueira e que é usada nas filhós de Natal, por ser a única que se aguentava sadia e sem alterações até à festividade de Natal. Quando era guisada, em idade juvenil, que comi muitas vezes, em forma de ensopado era cortada em fatias muito finas, esticadas numa terrina, que tinha já no fundo fatias de pão caseiro, cortadas igualmente finas, sobre as quais era despejado, ainda a escaldar, a água com os temperos e depois tapada para que a abobora ficasse cozida e pronta a servir.
Houve um ano em que, talvez devido a condições atmosféricas especiais e as plantas terem dado poucas abóboras, começou a crescer uma abóbora-menina, já no fundo do calço, que cresceu de tal modo que parecia querer compensar a fraca produção desse ano.
Vista pelos meus olhos de miúdo, teria perto de metro e meio de comprimento e de envergadura só dois homens a conseguiriam abraçar.
Todos os que passavam para trabalhar na Quinta a olhavam, chegando mesmo a parar para ver bem aquele exemplar de tamanho nunca visto. Talvez pela curiosidade despertada e pela religiosidade que estruturava sua maneira de estar na vida, o ti Miguel decidiu que a abóbora iria ser oferecida para o “Ramo de Nossa Senhora” que tinha a sua festa anual no dia vinte e dois de Setembro e era a mais rija das duas; a outra, a festa do Anjo era sempre na segunda-feira de Pascoela, uma semana depois do domingo de Páscoa.
A imagem da Senhora do Rosário era aquela que uns anos antes tinha sido desrespeitada pelo senhor bispo da Guarda, ao dizer que aquela imagem já se não usava, o que levantou o Povo em peso e o correu à pedrada, parecendo a antiga Roma ou a Meretriz que Jesus terá salvado do apedrejamento. Acho que não mais voltou, aquele ou outro bispo!
O que chamamos Ramo de Nossa Senhora pouco ou nada tem a ver com fé! É um tronco de um olmo, pinheiros não há, limpo dos pequenos ramos, que é enfiado num furo circular aberto numa laje de granito embutido na calçada para servir todos os anos, onde são pregadas tábuas, a primeira com cerca de dois metros a todas as outras mais pequenas e distanciadas umas das outras meio metro, formando uma pirâmide, onde são pregados pregos destinados a pendurar o que cada um vai dando, normalmente fumeiro, frutos, animais poucos, mas lá aparece um ou outro galo; no chão ou sobre a espécie de mesa, umas tábuas equilibradas em volta de um dos lados do tal tronco, eram depositados as oferendas maiores: as batatas, cebolas, alhos, galinhas de pernas atadas, que de vez em quando, certamente devido às dores, ao calor, a fanfarra e foguetes, tentavam a sua fuga, mas não iam longe, um magote de garotos e outros de mais idade, logo as agarravam, a galinha a “ralhar”, davam à festa o colorido que por vezes lhe faltava.
Os cabritos, um ou dois, eram poucos os cabreiros e as cabras também, dormiam como se a festa fosse doutra espécie, a festa deles era no fraguedo, correndo uns atrás dos outros, fazendo piruetas e exercícios de equilibrismo que fazia medo e inveja aos garotos da aldeia.
O ti Miguel, como prometera e as promessas eram como palavra dada, eram para cumprir, carregou dois feixes de palha no burro, domingo ainda de manhã, e aí vamos nós para os Prados buscar o fenómeno. Meu pai, na véspera, tinha combinado com o pastor das ovelhas do senhor José Maria Patrício, para andar com o gado ali por perto para nos poder dar uma ajuda a carregar a “coisa”. E quando chegámos lá estava ele, do lado de lá dos Prados, vara na mão, a ouvir a música dos chocalhos, das duas ou três badanas que eram as mais capazes de conduzir o rebanho e obedecer aos sinais sonoros do assobiado pelo pastor e os latidos de seu cão!
- Bom dia ti Miguel e companhia, companhia era eu, tirando o boné em sinal de saudação! Fizeram boa viagem? Perguntou no mesmo tom de voz!
- Graças a deus, correu bem, respondeu o ti Miguel!
- Então é hoje que a nossa menina grande mos vai deixar? Vou sentir saudades…  Prêta, p’ráli, e a preta recuou…quando quiser diga, para me despedir com um abraço, mesmo que ela não ligasse a ninguém, só queria era crescer, crescer…!
- Vou só apanhar umas alfaces e uns pêssegos para o pessoal e ver se algum melão já esta na conta e já te chamo!
- Ontem apanhei uma mão cheia de pêssegos do pessegueiro do Zé Cassiano – era o da horta – para levar para a patroa! Os de lá já acabaram! Comi um, madurinho, maior que este punho fechado, que me regalei!
- Fizeste só bem, é bem melhor que se comam do que caiam de maduros e seja a bicharada a regalar-se!
Apanhámos três alfaces e enquanto subi ao pessegueiro para apanhar os maracotões, o ti Miguel foi à olga de cima colher os melões.
- Vamos a ela, ti António? Disse meu pai de forma que o pastor ouvisse!
- É p’ra já, mas ainda vou ter saudades dela! P’ra onde vou olhar logo sabendo que já lá não está?! Vamos lá! P’ró ano vamos ter mais e podem até ser maiores! Se deus quiser…
Eu segurei na rédea do burro, para ele não se espantar, caso olhasse para o monstro e se manter quieto, até terminar a operação de colocar sua majestade, a abóbora –menina, entre os feixes de palha e bem firme para resistir aos solavancos, sobretudo no Canado das Abebereiras e a descida para a Grixeira.
- Vamos a ela, ti António? Pergunta, que é mais ordem, o meu Pai.
- Vamos lá, ti Miguel! Responde e avança para uma das pontas da abóbora.
Um de cada lado do fenómeno, o burro paralelo e seguro e a voz do ti Miguel
- Um, dois, três…upa p’ra cima, ai que me escorrega das mãos!...
- Heaaaaaaaa, está quaseeeeeeee, gemia o ti António…heumm… já está!...
- C’um catano, ti António, estava a ver que ela não queria deixar o lugar onde nasceu e cresceu! Desabafava o ti Miguel, ainda a respirar às pressas.
- É verdade, ti Miguel, a menina, agora é mais que mulher, não só cresceu e engordou, também encheu! Nunca pensei que pesasse tanto!
- Nem eu! Pensei que fosse mais oca do que é! Acrescentou o ti Miguel.
Coberta com um covijão (mais conhecida por manta de trapos!), dobrado e atada com duas voltas de corda distanciadas cerca de meio metro uma da outra.
Despedimo-nos e meu Pai agradeceu a ajuda ao ti pastor e lá partimos, a passo de burro, para Castelo Melhor.
Alguém nos deve ter visto aproximar e logo começaram a aparecer os miúdos, uns rindo, outros riam e iam dizendo: c’um catano, grande bóbra!
Os adultos só olhavam e ruminavam qualquer ditote que não se percebia; outros comparavam: é maior que uma vitela!
Dois deles ajudaram meu pai a apear a “menina” e um deles, mais divertido, acrescentou, depois de a poisar:
- P’ra menina é pesada demais! Pesa mais do que eu, de certeza! Temos de a pesar aí na balança do senhor Zé Indio! Depois do leilão, claro.
Ouvia-se dizer: “que coisa grande!”, “aquela horta dá tudo” comentava outro, e várias outras apreciações.
Sem garantia absoluta, quem arrematou a abóbora foi a Benvinda Xareta e penso que foi pesada em casa do senhor Zé Madeira e não no senhos Zé Índio como sugeriu o conterrâneo: setenta e dois quilos!
- Setenta e dois quilos, é obra! Comentou o dono da balança.
- É obra, não! É abobra, emendava outro a rir!


                                                 VI


Foi a última abóbora que nos Prados cresceu!
No ano seguinte, como sempre se fez, as aboboreiras foram semeadas e deixadas no mesmo local. As abóboras, nunca eram oferecidas a alguém, porque até nem as acetaria, devido à sua fraca aplicação, só a quem tivesse gado ou porcos para alimentar dariam jeito.
Cresceram, enfeitaram-se de belas flores amarelas por fora e por dentro laranja, a sobressair de entre as enormes folhas verdes, o habitual. Mal uma outra, também como sempre, indicava que dali sairia um fruto maior ou menor, e dava, só que era abóbora condenada! Assim que atingiam o meio quilo, mais ou menos, começavam a mirrar até caírem, como ave morta a cair do ramo. E não era só à abóbora-menina que sucedia, todas se conluiaram, galegas, meninas e de guisar. Não me constou que nos Prados voltassem a crescer abóboras.
Um ou dois anos depois, o Ernesto enxertou, no pequeno tronco de um zambulho, uma variedade de pereira que não havia. Cresceu, o zambulho, por que nasceu no rebordo do canado por onde escorriam, por vezes corriam e com força, as águas da chuva que caiam acima da olga, desde o ponto mais alto da serra; se tivesse nascido do lado de dentro do muro o ti Miguel dava-lhe logo umas podoadas ou roçadoiradas e era uma vez um zambulho.
Logo no primeiro ano, o que não era costume arvore enxertada dar fruto, a pereira do Ernesto deu peras, ou melhor, três dos quatro ramos deram, mas de tamanho normal; o quarto braço (a ordem dos braços é minha e nada tem a ver com ordenamento), encheu-se de brio, deu sete peras que, como a abóbora de que se tem falado, desataram a crescer, a crescer, até ficarem dum tamanho invulgarmente grande, até se comparadas com as suas irmãs dos outros ramos.
Foi o autor do enxerto quem tomou a iniciativa de oferecer o ramo das sete pêras para o ramo de Nossa Senhora do Rosário, como forma de agradecer as boas graças, concedidas pelo deus das peras, se o houver, à nova árvore e que a Senhora do Rosário não deixaria de dar o recado. Foram leiloadas junto ao ramo de Nossa Senhora, não recordando por quem, nem por quanto.
Estamos todos a lembrar-nos de quê? Das abóboras que devia haver e não houve mais no calço alto da horta dos Prados?! Acertámos! A pereira, nos anos seguintes, florescia no tempo das flores e recusava-se, ano após ano, em dar um único fruto, mesmo pequeno que fosse! A pereira foi crescendo, o Ernesto deixou de ligar e a arvore acabou por ser abafada pelas silvas que à sua volta deixaram de ser cortadas,
Anos mais tarde, já eu estava em Lisboa, numa das conversas sobre os Prados, com o meu “Tutor”, o Licínio e a minha cunhada Hermínia, onde se falou dos estranhos casos das peras e das abóboras e suas estranhas sequências, o Licínio me contou um outro fenómeno:
“Lembras-te da latada que cobria uma parte do tanque da bica? Dava uvas lindas todos os anos, cachos grandes que eram aos olhos e de sabor refinado, um regalo! E o que dá agora? Meia dúzia de cachos, quase só engaços e bagos quase não têm! É que também houve um ano em que uma das parreiras deu quatro cachos num só ramo e de tamanho fora do normal! Resolveram oferecer o ramo dos quatro cachos, ao ramo da Senhora do Rosário! A partir desse ano nunca mais as parreiras da latada deram cachos, nem sequer como nos anos normais!”
Esta, eu não conhecia, mas foi junta às outras duas mensagens, de que fui testemunha, e tirei a conclusão de que, ou a Senhora do Rosário não andava de bem connosco e não agradecia as oferendas, antes nos punia por as ofertarmos ou então pensa que as demos de má vontade, o que eu não acredito, por não fazer parte dos princípios da família dar algo de má vontade, antes pelo contrário, só não davam a camisa…!
Então a conclusão deve ser outra, mesmo assim demasiado severa por parte da divindade: a Senhora do Rosário sabia que a família não vivia em plena abundância e tudo o que produzia não era demais para prover às necessidades e queria, através de exemplos, chamar a atenção para a realidade! Também esta explicação me não satisfez nem satisfaz, porque do pouco passou a ser nada, pelo menos nos casos das abóboras, das peras e das uvas, porque estas, as uvas, nem eram para consumo da casa, por serem sempre divididas pelas duas famílias nossas parentes e donas dos Prados. Ou seja, se foi castigo divino acho-o injusto, mesmo que o céu tenha da justiça uma formulação diferente da dos da Terra.
Não me espantaria muito, mas ainda hoje não sei o que se passou, lá continuando no segredo dos deuses e que só o divino entenderá.


                                                 VII


No ano em que saí da escola – mil novecentos e cinquenta – andei no rebusco da amêndoa e das uvas e a safra do lagar e no ano seguinte também. Alguém terá metido uma “cunha” ao meu padrinho, o senhor Cassiano de Albuquerque ou terá sido este a tomar a iniciativa e lá fui fazer as safras de cinquenta e cinquenta e um.
O trabalho foi, em ambos os anos, na última fase da moedura e prensagem. A azeitona era trazida em sacas pelos animais, despejadas nas tulhas do armazém construído para o efeito, do qual saía em vagoneta sobre carris, para descarregar directamente num depósito no espaço interior do lagar, mas fora da área da produção, entrando nesta pelo método do sem-fim de um transportador que a levava até ao depósito do primeiro moinho, onde era moída e de seguida metida em grandes seirões de cairo ou juta, como boinas ampliadas, com cerca de um metro de diâmetro, colocadas a braço por dois homens no estrado da prensa que espremia aquela massa feita de casca, polpa e caroço da azeitona que ia escorrendo para a calha que levava aquele liquido, composto de água e azeite, para o primeiro tanque de depuração pelo mais rudimentar, mas eficaz método de depuração: a água, por ser mais densa que o azeite, procurava o fundo do tanque e o azeite, ainda em bruto, seguia para outro tanque para nova operação de purificação e penso que ainda havia um terceiro. O líquido, aquoso e pigmentado com o corante natural contido na casca da azeitona, também tinha uma operação de depuração e depois, por uma calha subterrânea, escorria para o ribeiro e seguia, sozinho ou acompanhado com água da chuva, quando chovia e continuava, quando a chuva parava porque o excesso que as terras não absorviam, procuravam o ponto mais abaixo como manda a lei da gravidade! Antes de haver lei, já havia gravidade e já chovia e a água, teimosa, podia muito bem ficar em suspensão, como esteve na nuvem, esperando que o nascesse alguém com a curiosidade suficiente e o saber necessário para saber como é que estas coisas se passavam e as passar a Lei que a chuva nunca leu, nem lá no alto, quando era vapor de água, muito menos depois de cair: por andar sempre com pressa, muitas vezes passando por cima da mais lenta, como podia parar para ler a Lei! E, pelo que me consta, a água nunca aprendeu a ler, quer quando escorria pelas ladeiras e quando era muita nem olhava, cega como sempre foi, atirava-se contra tudo o que aparecesse pela frente, acabando não poucas vezes, levar arvores, casas e pessoas! Não devia ser assim?! Pois não, mas quem não aprende em novo dificilmente o fará em velho e a chuva nasceu quando?! Ninguém sabe nem precisa saber! Para quê, ela está aí, não a estraguem, porque faz falta e não é só no lagar, pois não? É como os senhores que andam a tentar descobrir a idade do Planeta! Mas para quê, ele já nasceu, de parto natural ou cesariana, está aí, cuidem dele antes que ele morra! O que podiam fazer era combinar com os outros e mudarem a designação! Se é planeta devia ser plano, mas uma vez que não é, chamem-lhe…o que soar melhor ao ouvido, embora continue a pensar que nada mudava se lhe chamassem… esfereta, por exemplo! Ou boleta que está mais na moda, não a boleta ou bolota, mas a bola! Ui, ui, se está! Mas isto já é uma conversa da treta que a nada leva também, por isso voltemos ao lagar e ao que nele eu fazia!
Aqueles seirões, com as cascas e os caroços, triturados e espremidos, eram levados para um espaço junto do segundo moinho, onde eram despejadas e batidas para descolar os resíduos mais teimosos, por uma equipa de mulheres, ara regressarem ao outro espaço do primeiro moinho, reentrando no circuito. O segundo moinho, um pouco mais pequeno, dava uma segunda moedura naqueles resíduos de casca e caroço que chegava até ele à pazada, em quantidade definida. Se fosse superior as grandes rodas de granito bloqueavam.
Na base do “grande alguidar” foi feita uma abertura, para o bagaço sair quando estivesse moído. Um sistema de alavancas levantava as grandes rodas, baixava uma lâmina e abria a janela da base do tanque, por debaixo da qual estava um depósito metálico, com cerca de meio metro cúbico. Toda esta manobra era feita com o moinho em movimento! Esperava que o conjunto desse a volta e ao passar era baixada e travada a haste da alavanca. A tal lâmina que servia de rodo ia arrastando o bagaço que ao passar na abertura ia caindo aos poucos. Em três ou quatro passagens o tanque ficava limpo! Destrancava a alavanca e a engrenagem fazia toda a operação inversa: baixava as mós, levantava a lâmina e fechava a janela, descia as mós e tudo recomeçava.
O bagaço contido no tanque era levado pelos dois homens e deixavam outro vazio. Estes dois homens, tinham de trocar os depósitos junto aos cinchos em aço inoxidável e uma base com rodas e já sobre os carris para se deslocar ao longo do lagar e nos ramais que iam até à prensa.
Os cinchos, com a altura de uns dez ou quinze centímetros, eram perfurados em todo o seu perímetro por onde sairia o azeite, ao ser comprimido pela prensa accionada, tal como a primeira, por um sistema hidráulico com comandos individualizados.
Além dos cinchos, que encaixavam uns nos outros, tinham uma pilha de tapetes circulares, com diâmetro um pouco inferior ao do interior do cincho, feitos do mesmo material das grandes boinas, os seirões, que eram cheias da azeitona acabada de moer. Era colocado o primeiro tapete pelo homem que estava junto à pilha, do outro lado o outro que de seguida, com uma pá de cabo curto, ia despejando pazadas que o outro colega espalhava até conter uma camada previamente calculada em espessura e entrava novo tapete, sempre assim até estar completado o número de cinchos que seguia para a prensa, de onde saíra o anteriormente colocado e estava já prensado.
O que acabava de sair da prensa ia pelo carril atá a outro espaço onde uma equipa de mulheres, munida das tais espadanas em madeira, batia nos tapetes até que ficassem novamente limpos para entrarem no circuito e o brulho era ensacado e arrumado sobre um carreta só com estrado, que transportava o material ensacado para o corredor de entrada, onde as tulhas e o sem-fim estavam montados e era feita a descarga da azeitona que vinha dos olivais em sacas que os animais transportavam, duas sacas de cada vez.
O circuito completo e sem pormenores, do azeite, era este:
Varejada ou apanhada à mão para aliviar a oliveira, recebida no chão por toldos em lona os outro material e a que saltava para fora dos toldes era apanhada por mulheres e homens, ensacada, e levada por animais para o lagar;
No lagar era levada, tal como vinha do olival, pelo sem-fim até ao primeiro moinho, metida nos seirões-boina, prensada e levada para junto do segundo moinho, voltando a ser moído o bagaço e a seguir prensado pela segunda vez e os tapetes sacudidos, por mulheres com seus espadas de madeira, ensacado e pesado o brulho, quase só caroço triturado;
O azeite era embalado em bidões de duzentos litros, em chapa bem resistente e com dois anéis em ferro para derem deslocados por força braçal se outra não houvesse e defender o bidão! Saía pela porta Sul do agar; o brulho ensacado saía pela porta principal, a Norte do lagar.
O azeite era levado para empresas de refinação e o brulho ia directo ara os animais da aldeia ou para fábricas onde iria ser tratado e integrado na mistura das rações para animais.
Ainda a minha idade não seria superior a quatro anos já ouvia esta adivinha:
     “Verde foi meu nascimento e de luto me vesti, para dar a luz ao Mundo mil tormentos padeci!” O que é?
Tal como a escola, antes de para lá entrar, já a conhecia em parte, o lagar já não era de todo escuro, pelo menos a parte da trituração e prensagem.
A safra variava conforme a colheita, alguns anos laborava dois e até três meses, iniciando-se perto do fim de Novembro. Era neste período que a curiosidade era maior para os juvenis, sobretudo os que moravam mais perto do lagar e eu era um deles. Os dias eram pequenos naquela época do ano e a noite aparecia como um desafio para os miúdos! Para os que trabalhavam não era tanto, pois como corpo cansado quer descanso e frio pede cama, era o que faziam, uma horita depois do caldo à volta da lareira, “ala, que se faz tarde” e lá se enfiavam na cama, com a telha bem quente ou a garrafa da genebra cheia de água a escaldar e assim se fazia frente à invernia! Mas a tia Amélia aquecia psicologicamente, divertindo-se com o dito, devia ser geral, mas foi dela que o ouvi e de mais ninguém:  
-Está frio? “ Pum eu e pum tu, aquecemos a cama com os bafos do cú!”
Nada havia na aldeia para distrair alguém, começando pela básica falta de energia eléctrica. Como as janelas não eram altas e duma delas via-se uma boa parte do interior, era a mais disputada e de tal forma que rara era a noite em que não havia uma troca de murraças e de biqueiradas. Mas eram zangas de pouca duração e que eram resolvidas com a ameaça, dos mais fracos, “quando passares à minha porta, vais ver o que acontece!” Não acontecia nada, era só bazófia da fraqueza e fingir valentia! Tudo ficava resolvido naquele instante.
Através das janelas, sempre embaciadas pelo lado de fora, íamo-nos amontoando, limpávamos um bocado da condensação e lá ficávamos a ver o movimento dos moinhos, das prensas que pareciam não ter movimento, mas na das seiras escorria um líquido bem escuro e abundante, era a primeira fase e da outra, pelos pequenos furos dos cinchos escorria uma baba que desenhava regatos que de seguida apagava e sempre da mesma cor, a do azeite antes de passar pelos tanques de decantação. Nesta zona, separada do grande gerador por uma parede, não se via nada; as janelas eram mais altas e os aros e vidraças ficavam ao nível da parede exterior, sem parapeito para nos apoiarmos.
O gerador e transformador eram accionados por um grande motor cujo combustível seria o carvão que fazia girar uma roda em ferro fundido, com mais de metro e meio de diâmetro que, devido ao peso, para sair da inércia era com a ajuda de dois homens! Um veio ligava à engrenagem do gerador e o transformador fazia o doseamento para alimentar toda a área de produção, aquecer as águas para funcionarem as prensas e os tanques de depuração.
Os gases libertados pelo funcionamento do motor faziam um percurso subterrâneo até ao ribeiro, que passava pelo meio da aldeia, de que já falámos várias vezes, sempre por motivos diferentes, naturalmente, onde no paredão foi aberta uma boca de escape e mal atingiam a liberdade ouvia-se um ruido que traduzido em caracteres ortográficos, seria pan, pan, pan, durante todas as horas de laboração e por cada pan, saía um anel de fumo que, nos dias sem vento os anéis eram tão bem feitos como aqueles que os fumadores-artistas fazem com o fumo, só que os do ribeiro era maiores! Em dias de muito frio os miúdos regalavam-se a aquecer as mãos com o calor que acompanhava os gases e que, por falta de informação, nós inalávamos sem pensar no mal que nos faria!
Noites havia, talvez por tudo estar a correr bem no lagar, em que o meu padrinho, talvez com pena de ver os garotos ao frio, fazia-nos sinal para entrarmos e o grupo, nunca mais de seis, com o “rabo entre as pernas” lá entrava para o centro do “Verão” à custa de duas calandras que iam quase até ao tecto, cilíndricas, com cerca de sessenta centímetros de diâmetro, alimentadas com brulho ou outro material que ardesse bem.
Ficávamos todos alinhados, encostados à parede de azulejos, que separa a área do lagar do corredor frio onde era descarregada a azeitona e pelo sem-fim era levada até ao primeiro moinho.
Não foram muitas as vezes em que nos mandava entrar e nem o “lugar tínhamos aquecido” e já a verdasca do senhor Cassiano de Albuquerque funcionava e à verdascada punha na rua a garotada convidada!
Para mim ele era de birras, mas o que devia mesmo suceder era que algum dos miúdos, provocado pelas mulheres e raparigas que à custa da espadela e da força dos braços libertava o bagaço dos seirões, umas e outras dos tapetes da segunda prensagem, saía do lugar onde tinha ficado, violando as recomendações que o meu padrinho as defendia como leis. Muitas das vezes a transgressão passava em claro, ou porque ele não via ou porque estaria mais magnânimo nessa noite.
Comigo sucedeu uma só vez e nunca mais troquei o frio pelo calor! Ele, numa das vezes que mandou entrar e me não viu, perguntou por que eu não tinha entrado e os garotos responderam o que sabiam: “ele disse que não voltava a entrar, porque não quer levar com a verdasca!”. Ao virar costas ainda comentou: “é mais teimoso que nem um burro…sai à Mãe!”
Uns anos depois, depois de sair da escola, recebi indicações da tia Amélia de que iria para o lagar, fazer a safra da produção de mil novecentos e cinquenta! Apresentei-me ao serviço e o senhor Cassiano explicou qual seria o meu trabalho! Obrigado, meu padrinho, mas eu já tinha aprendido!
- Como aprendeste se nunca cá trabalhaste? Quase a ralhar!
Nas vezes que estive aqui por o padrinho nos mandar entrar, até levar a primeira verdascada!
Sorriu e virou-me as costas! E mal a laboração começou e enquanto não chegou a primeira prensagem e as mulheres libertavam das seiras o bagaço, eu estive a ensaiar a alavanca, ainda com o moinho parado, mas não houve problema algumas, nem me preocupava muito, o moinho trabalhava sozinho e se desse mais uma volta ou meia dúzia para além do estabelecido só o bagaço ficava mais moído.
Na safra de cinquenta e um tive um pequeno acidente, só nele falando porque me parece ter deixado marcas para sempre! Ao baixar-me para encher a pá de bagaço, como a proximidade era grande, fui atingido pela espadela da minha prima Julieta. Eu baixava-me e ao mesmo tempo ela levantava a sua ferramenta, esta encontrando o meu olho esquerdo. Tive que ir, no dia seguinte ao doutor Caldeira, mas em casa a tia Amélia preparou uma das suas mezinhas e fiz pachos com água de rosas!
No mesmo olho, no Verão de cinquenta e um, fui bater uma soneca debaixo do meu pessegueiro bem enfeitado de maracotões maduros e bem grandes. Acordei com uma bruta pancada dada por um pêssego que se desprendeu da árvore, talvez cansado de estar para ali pendurado e já bem maduro, precisamente no mesmo olho da pancada no lagar! Seria mais grave se o pêssego não estivesse tão maduro e fosse mais pequeno!
Não voltei ao doutor, embora tivesse surgido um pequeno derrame. Se no primeiro podia ser considerado acidente de trabalho, o do pessegueiro seria um acidente de repouso, figura jurídica que gostaria de ver apreciada pelos mestres do direito.
Ficará para depois ser analisado!
Só para não ficar sem uma explicação a relação minério, lagar!
No Inverno os charcos congelam e até o ribeiro, aqui no Seixo já quase sem muros, chega a congelar também e torna penoso um trabalho que era mais o tempo gasto na lavagem da terra e pedras do que encher o alguidar, suspendia-se o trabalho de garimpeiro, se fosse usada a linguagem abrasileirada.
Reis Caçote
2007/dig.09/14







                                  TEMPO POST ESCOLA

                                            II PARTE


                                                 VIII


Como a notícia chegou, não soube  e agora menos possibilidades teria, se tivesse grande curiosidade e, de facto, não tenho. Soube eu e muitas outras pessoas da aldeia, que tinha começado a guerra na Coreia.
Jornais não havia, nem local, nem regional. Só o senhor Aleixo recebia, com vários dias de atraso, uma ou duas vezes por semana, um dos diários do Porto, ou o Primeiro de Janeiro ou o Comércio do Porto, ou seriam os dois, alternadamente, mas não constou que tivesse sido ele ou através dos jornais que a notícia chegou.
Era mais que certo ter a mensagem chegado via rádio e só podia ser o do senhor Aleixo ou o do senhor Cassiano, ninguém mais tinha. E qualquer deles era bem capaz de o ter feito, porque a dependência do senhor Aleixo do gerador do meu padrinho para recarregar as baterias, não me constava que a dependência fosse até às notícias, a menos que coincidisse com a recarga, o que seria demasiada coincidência.
Fosse quem fosse, a verdade é que a notícia chegou e depressa se espalhou e por tudo o que era conversa tinha por tema a Coreia e os comentários, não muito lúcidos, mas com alguma pertinência, eram: “então ainda há tão pouco tempo acabou uma e, do que consta, com grande mortandade, e está já outra a começar?” Mas não se ia além disto, os pormenores eram poucos, mas o espanto era grande.
Penso que da Coreia a maioria das pessoas nunca ouvira falar e na escola era só a geografia de Portugal e das Colónias se falava. E a história desta guerra, anos mais tarde, eufemisticamente designada por conflito, não passaria da notícia se ela não tivesse estado na origem de outra, essa sim bem mais interessante, a do minério que voltaria a ser explorado nas terras onde o havia, como sucedera na anterior, a II Guerra Mundial.
Tal minério, existia em alguns pontos do grande filão de seixo que, vindo dos lados da Meda, na margem esquerda do rio Côa, atravessava o rio, todo o território de Castelo Melhor, algum de Almendra, descia em direcção ao Douro e subia pela ladeira até se esconder lá no alto, já em terras de Trás-os-Montes, mas ao certo onde começa e acaba não sei e para o efeito não tem grande importância.
Em alguns pontos do filão aparece o estanho e o Volfrâmio, este sim, na II Guerra Mundial deu para alguns fazerem bons negócios, fortunas nunca ouvi falar, o mais natural é não terem formado, por serem mínimas as quantidades, uma vez que o volfrâmio é explorado, não sei desde que ano do seculo XX, por uma empresa estrangeira, mas desde o seculo XIX que está registada a existência do filão no Distrito de Castelo Branco.
Os dados recolhidos do Google afirmam tratar-se da maior jazida deste minério conhecida na Europa e a maior do Mundo em túneis e galerias, referindo mesmo que atingirão os doze mil quilómetros! Parecem-me muitos quilómetros, mas se consta, com vídeos anexos, é capaz de ser verdade! Só estranho mais porque o meio de transporte é uma vagoneta que não anda a grandes velocidades, mas se de avião, que anda pelo ar e a velocidades, são mais de três horas para chegar à Alemanha e de barco, mesmo depressa como mandava o grande chefe das guerras coloniais, de Lisboa a Luanda eram oito dias, não sei como fazem para render os mineiros, Eu verei isso depois, uma vez que o bichinho da curiosidade está cá dentro a roer.
As minas da Panasqueira, há uns anos, ora fechavam ora abriam, mas nunca foi por avaria das fechaduras, era quando os mineiros pediam uma melhoria das condições de vida, através do salário ou de trabalho, mudando alguns dos modelos aplicados no interior da mina. Sempre apresentaram propostas concretas, exequíveis, muitas vezes até o custo da operação. Pelos altifalantes das televisões e dos jornais e da rádio, ameaçavam fechar a mina, que já não podiam mais viver naquelas condições, com os pulmões atascados de sílica, nas barracas onde não tinham o ar rarefeito da mina, não podiam parar de correr mundo, em suma, era tanta a miséria dos accionistas que nada podiam fazer! Então fechavam. Os donos da guerra lá decidiam fazer mais uma guerra e a mina reabria, nas mesmas ou piores condições. Os gabinetes continuavam com aquela humidade e ar carregado de ameaças de mais uns tantos de pulmões
O tal minério, designado por Cheelite, que faz parte dos componentes do volfrâmio, sendo também conhecido por “pedra-pesada”, tem diversas aplicações, devido à sua dureza e elevado ponto de fusão; como isto são dados técnicos, que não adiantam nada às minhas recordações, apenas ficariam a constar como curiosidade e têm a ver com o interesse suscitado durante as guerras, é porque às guerras servem e a aplicação mais conhecida é como endurecedor dos metais. Faz parte do mesmo grupo mineralógico o estanho e o volfrâmio.
Em Castelo Melhor também houve quem andou a esburacar toda a encosta Nascente do Seixo, e a tia Ana do Ferreiro terá ganho bom dinheiro e os negociantes, quase todos de fora, também. De Castelo Melhor só um ou dois intermediários, que guardavam o minério extraído durante o dia, terão ganho alguma coisa nesta qualidade.
Mal constou que o minério iria voltar a valer alguns cobres, logo os aventureiros do costume, quais heróis do oeste americano ou garimpeiros de todos os Brasis, partiram para as terras do Seixo, sem caravana porque era logo além, de pá, enxada, ferro e picareta, ranhete e alguidar, em busca das pedrinhas luzidias, soltas ou ainda agarradas no seixo ou nos pedaços de xisto, que podiam valer uma fortuna; na guerra anterior chegou a ser paga a mais de trezentos escudos o quilograma e bastava meio litro das pedrinhas para pesarem quilo e meio, sendo esta a forma de aferir do grau de pureza exigida pelos negociantes; se pesasse menos, menos valia.
Não sei bem como tudo se passou, mas a verdade é que num dia qualquer, não sei a que talhe de foice, talvez por eu reclamar trabalho, sem cartaz nem manifestação, a tia Amélia, sem grande convicção, me responde, por que é que não vais para o minério? Dinheiro não estaria contido na sugestão e muito menos a mim, quando a levei a sério. Se coisas há que nunca tive, ou pelo menos não recordo de alguma vez ter, foi dinheiro, a não ser na festa do Anjo e de Nossa Senhora, em que meu padrinho me dava para beber uma limonada e comer uma gulodice que sempre havia, alguém de longe os vendia; o mesmo se passava com todos os da minha idade; o dinheiro não circulava nem nas nossas mãos nem dos mais velhos, uma vez que na nossa utopia da pobreza tudo era por avença e seria pago em género, um alqueire de trigo para o barbeiro, dois para a mercearia, mais um para o sapateiro e para o ferreiro e para o ferrador. Embora a avença variasse conforme os membros da família, não recordo que lá em casa houvesse avença de uma fanega de trigo ou cevada, ou sejam quatro alqueires.
Retomando: ir para o minério seria uma forma de ocupação para todos os que não tinham que fazer em certas épocas do ano.
Sabia que ao minério andavam só homens e sozinho não me agradava. Fui desafiar o Antoninho, meu companheiro na escola e que fez os exames nos mesmos dias que eu, o da terceira classe, em Almendra, fomos só os dois e o da quarta, em Foz Côa, foi mais um, o filho do senhor Júlio da Estação.
O Antoninho perguntou se podia ir mais um connosco e eu disse logo que sim, até era bom, porque os adultos gostavam de se divertir às custas dos miúdos ou rapazes, até se regalavam de ver os garotos a fugir quando ameaçavam que lhe iam dar uma cresta, que era segurar o garoto, a espernear no chão, abrirem-lhe a carcela e meter terra lá para dentro.
E, certo dia, lá fomos os três, munidos das ferramentas de um rebuscador de minério: um alguidar e um ranhete; o alguidar, todos sabem o que é, as fábricas de plásticos passaram a fazê-los de tamanhos e feitios diferentes; o ranhete é que não devem saber: é um cabo de uma concha de cozinha, mas sem concha, aguçado numa das pontas e a outra dobrada em ângulo recto; a ponta aguçada servia para servir de alavanca ou escavar algumas pedras para vermos o que estava por debaixo dela, a parte dobrada era sobretudo para escavar e raspar a terra que iria para dentro do alguidar, apanhada ou raspada à mão.
Alguidares cheios ou meios, conforme tínhamos ou não visto pequenas partículas de minério ou com minério parecidas, ao ombro e íamos para o ribeiro fazer a lavagem, de cócoras, uma das mãos segurava o alguidar de um lado e a outra no lado oposto, mergulhávamos o alguidar na água, agitávamos para que tudo o que fosse mais pesado ir para o fundo do alguidar; se estivesse cheio, vazávamos uma parte no chão e então a lavagem começava: a terra era levada nos primeiros movimentos de lavagem, movimentos circulares para que as pedras ficassem libertas e irem sendo removidas à mão; a partir de certa altura o movimento mudava de circular para o de balancé, as mãos formavam um eixo que ora se inclinava para os materiais mais leves irem saindo, seguiam-se uns quantos circulares e o balancé continuava até ficar no fundo o minério, se o houvesse. Se não houvesse não ficávamos irritados e muito menos uns com os outros, quando um tinha e outros não. O pó que ficava no fundo do alguidar, e que seria o minério mais ou menos puro, era arrastado com o dedo indicador e no final o polegar arrastava o resto para um lenço de assoar que de seguida era atado com quase nada lá dentro.
Dias havia em que chegávamos a casa de mãos vazias e um ou outro com uma boa quantidade de minério. Isto sucedia quando os mineiros adultos, por terem pouca prática estarem em cima do veio de seixos já contendo minério e eles o não viam, sendo padejado para o aterro juntamente com as pedras, terra só resíduos provenientes da subida e descida para o buraco escavado, usando picaretas, barra de ferro temperado nas pontas aguçadas e por vezes com rebentamentos de dinamite ou pólvora preta, metidos, um ou outra, no fundo do ou dos furos abertos a uma certa distância do filão, para que não fosse levado pelos ares, juntamente com as partes de rocha que o impacto projetava.
O uso de dinamite, menos frequente por ser mais caro, se bem manuseado, era muito menos perigoso do que a pólvora preta; a dinamite era apenas descida já com o detonador na ponta do pedaço de rastilho e era só chegar o fogo ao rastilho e sair, mais depressa ou mais devagar por saberem quanto tempo demorava a arder o fio de pólvora até chegar ao explosivo. Em termos de eficácia e menor perigo tinha todas as vantagens sobre a pólvora, por a explosão procurava a resistência e quase não libertava pedras e as projetava para longe; a pólvora tinha de ser metido o rastilho até ao fundo do buraco, aberto com escopro e marretas e à custa de força braçal, e atacada com papéis ou bocados de trapo para que a explosão tivesse algum efeito. A força libertada pela explosão procurava os pontos mais fracos para se expandir, na dinamite, como disse já, dirigia-se contra a resistência.
Como havia quase sempre várias equipas de “toupeiras” a esburacar naquele espaço relativamente pequeno, tinham de ser avisados para que se protegessem e para tal um dos mineiros quando chegava à beira do buraco, gritava:
     “ Atenção, sai fogo na mina tal” era dito o nome do chefe da equipa.
Viam-se uns a procurar esconderijo em buracos abandonados, eram os que estavam no começo e ainda à superfície, os outros recolhiam-se bem dentro do buraco até que a explosão ou explosões terminassem. No tempo que lá andei e também me escondia, não foi alguém atingido pelas pedras projetadas.
Como não tínhamos patrões, geríamos o tempo da forma como entendíamos, mas de facto cumpríamos o horário como se fossemos assalariados, com uma só paragem por volta do meio-dia, para comermos a bucha: pão com azeitonas ou figos secos, raramente uma fatia de toucinho da salgadeira, reserva alimentar que não durava o ano inteiro, e num dia que era quase de festa, tinha uma isca de bacalhau seco e cru.
Com a experiência que fomos ganhando e alguma intuição a ajudar, dias houve em que nós rebuscávamos mais minério do que algumas equipas de adultos que perseguiam os filões. À custa de muito esforço, muito perigo, mais pelos desabamentos de pedras ou quedas, sobretudo quando chovia, do que com os explosivos.
Na esperança de que, escavando meio metro mais abaixo, aparecesse a tal bolsa de minério que compensasse todo o esforço anterior. Não aparecia e uma semana de esperança se passava e a esperança acabava: o buraco era abandonado e a equipa lá ia encosta abaixo ou encosta acima, ferramenta às costas, à procura de um espaço que não estivesse demarcado e depois, de ferro em punho, iam sondando até sentirem e ouvirem um ruido diferente e era nesse sítio que a enxada entrava para limpar a terra e ver se o que ali estava agora a descoberto valia a pena investir esforço e demarcar, com quatro paus espetados no chão, o terreno de exploração.
Não era raro virem outros tentar a sua sorte nos buracos abandonados, por vezes acertavam, mas a maioria delas o buraco era novamente abandonado.
A minha intuição ganhou alguma fiabilidade e começou a ser comentada entre os adultos que, directamente ou por meias palavras me tentavam aliciar para com eles me associar. E algumas vezes o fiz, numas com melhores resultados outras com menos, mas o abandono do filão era sempre por decisão minha.
Em duas sociedades tivemos que usar explosivos e só anos mais tarde, quando em Sacavém, no RAP 1-Regimento de Artilharia Pesada número um, fiz a especialidade em Munições de Artilharia, é que avaliei os perigos que eu e todos os que os usavam corremos e qua a sorte nos protegeu. Só um ou dois ficaram com marcas de queimaduras, um nas mãos e outro nas mãos e rosto.
Mas do que gostava mesmo era do grupo do rebusco. Dávamo-nos bem a tal ponto que, a certa altura, já armados em garimpeiros, começámos a aceitar dos adultos um cigarrito e algum tempo depois, já os três fumávamos um maço de Definitivos por dia. Tenho a ideia de que o acordo era cada um de nós, de três em três dias, levar um maço de cigarros, mas a dúvida que sempre tive e hoje persiste, é de que nunca tive dinheiro algum, excepto uma vez em que pedi dinheiro para comprar um realejo, instrumento que pouco tempo durou, perdido no regresso de uma festa em Almendra, já bem de noite e quase em Castelo Melhor, no sitio conhecido por Farrão-Barrão e que gozava da fama de ali se encontrar o medo que deu o nome ao local: o medo do Farrão-Barrão.
Ainda hoje persiste a dúvida de ter eu andado a fumar por conta dos outros dois. Mas agora é tarde para prestar contas; só eu e o Antoninho restamos e sempre que vou a Castelo Melhor levo a intenção de lhe perguntar, mas não o encontro ou me não lembro, talvez por há muitos anos ter deixado de fumar.
Tendo durado pouco tempo a tal gaita-de-beiços, ainda aprendi a tocar qualquer coisa, nomeadamente a música daquele, Vira muito conhecido na época: “Tenho um amor em “Biana” e outro em Ponte de Lima”… e um acompanhamento de fado, que ainda há bem pouco tempo ouvi, na televisão, um grupo folclórico não sei de que localidade, a tocar tal música.
O treino e a tal intuição de vive comigo desde não sei quando eram tantos que bastava pegar numa pedra, tomar-lhe o peso e ficar com a certeza de ter ou não ter minério integrado.
A estranheza para alguns familiares de eu distinguir se havia ou não minério que entre as duas guerras, a II Mundial e a da Coreia, indo  para  casa, vi no chão, em frente da casa da tia Idete, uma pedra com um brilho diferente das outras e apanhei-a, ficando muito admirado pelo peso da pedra e foi meu Pai que disse ser minério e devia ser puro. Como curiosidade foi guardada, acabando por ser vendida com um lote de minério, de vários dias ou semanas de rebusco. Pesava mais de cento e cinquenta gramas.
E assim terá terminado esta aventura-experiência do minério. Algum tempo depois de eu ter ido para Lisboa, a exploração foi concessionada a uma empresa que em vez de procurar o filão ou filões, com as retroescavadoras escavava a eito a encosta, outras trituravam as pedras e uma outra lavava tudo, como nós fazíamos com os alguidares, ficando o minério no fundo e as pedras e terra eram vomitadas num aterro que ia já a chegar ao ribeiro, quando a empresa levantou voo para outro local.
A Scheelite terá ido fazer fortuna para outras bandas.

Reis Caçote
2002/dig.09/14
                 
           O CASTELO DA LENDA E TESTEMUNHA SILENCIOSA DA VIDA
                                                                                                                         

                   PALÁCIOS, NÃO HAVIA E MATERNIDADE MUITO MENOS! HAVIA APARADEIRAS
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             TOMATAS E TOMATOS ERAM DIFERENTES! ESTA SERIA A DE MUXAGATA                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

                                     


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