TERMINADO O PERIODO DE ESCOLA E NÃO HAVENDO CONDIÇÕES PARA CONTINUAR A ESTUDAR, TERIA QUE ENCONTRAR FORMA DE OCUPAR O TEMPO, AJUDANDO O TI MIGUEL NA AGRICULTURA, REBUSCAR DURANTE A APANHA DA AMENDOA E DA AZEITONA E O MAIS QUE VIESSE; A GUERRA DA COREIA DEU-ME TRABALHO! ASSIM:
TEMPO
POST ESCOLA
I
Para quem não conhecesse o meio, a léguas de distância da
“evolução” e do “desenvolvimento” seria levado a pensar que minha Mãe, naquele
tempo, devia ter já o pomposo cargo de Encarregada de Educação, pela forma
desenvolta como decidiu, pela positiva, a proposta da dona Graça, professora
dos rapazes, de eu repetir a terceira classe!
Não para facilitar a vida da professora, mas para, como ela
bem frisou, para eu me livrar, durante mais um ano, de ir para as ladeiras a
cavar e a roçar! Não era profecia, por muitos dons e qualidades que tivesse,
profeta não era; era o encarar de uma realidade que era regra. A exceção eram
os filhos de duas ou três famílias com tangencial capacidade para os filhos
irem além da instrução primária. Por isso eram os colégios ligados à igreja católica,
todos bem longe, como o eram os liceus públicos em que o mais próximo era o da
Guarda, capital do distrito.
Os resultados obtidos por esses casos excecionais eram
quase sempre fracos e, assim, se chegara aquela situação de não haver um único
licenciado. Esta era uma tão sentida realidade que muita gente brincava com os
pais dos estudantes, quando estes vinham de férias e sem resultados.
O mais ousado dos críticos era, como em quase tudo, o meu
amigo ti Vilela, com a sua cáustica e explicita forma de abordar os assuntos:
“só os burros e os filhos dos burros é que vão para os estudos” e “os que
deviam ir não podem!”.
Este amigo, da idade do meu pai ou um pouco mais velho, era
a figura que, nos dias de hoje, sobretudo nas grandes cidades, caracteriza os
sem- abrigo na civilização. Para mim era mais o emancipado-dependente: não
tinha casa, dormia onde calhava, arrastando consigo a inseparável guitarra,
mais presente do que a esposa que, pacientemente, deambulava com ele, quase
sempre contrariada e que não foi ainda beatificada, como tantas outras ou
outros, não estarão na graça do Senhor!
Trabalhar, só mesmo quando não podia deixar de ser, por
conta deste ou daquele, mas sobretudo do senhor Cassiano de Albuquerque, meu
padrinho e alvo preferido das suas “farpas envenenadas” a que já não ligavam
muito, conhecido como era de todos.
Quando estava livre dos vapores do álcool revelava-se um
teórico doutrinário nas mais diversas áreas do saber.
Durante uma das campanhas para a Presidência da República,
em que um dos candidatos foi o general Norton de Matos, talvez em quarenta e
oito, o velho Vilela, de guitarra abraçada e emblema do perfil do general ao
peito, descendo a Rua Larga sentado, em pé seria improvável, cantava hinos de
louvor ao candidato e quando passava frente às janelas da casa grande do senhor
Cassiano, lá vinha a provocação destinada ao senhor Cassianinho de Albuquerque,
diminutivo que ele sempre usava quando a “seta” era disparada: “em quem eu vou
votar senhor Cassianinho?” Ele sabia que o meu padrinho, presidente da Junta
era quem decidia pela maior parte dos votantes, ou porque estes não queriam
saber ou por que entendiam que o presidente da Junta, enfermeiro, empregador e
cidadão exemplar devia saber melhor que eles e o que decidisse estava bem.
Um dos espaços habitados pelo casal Vilela, nómada
permanente, durante algum tempo, foi o galinheiro, devoluto (as galinhas tinham
espaço mais que suficiente nos diversos espaços da casa grande), que existia na
tapada da fonte, terreno murado, com horta, pomar e que entretanto fora
dividido, mas que era todo da senhora Amélia Caçote, irmã do avô Joaquim,
proveniente de uma das duas heranças dos viúvos com quem casou.
O palácio então ocupado pelo casal ficava mesmo em frente
do chafariz, obra da autoria da população, com projeto de um estudante de
engenharia e que será tratado em trabalho próprio.
Numa noite de vinho a mais e no cumprimento de uma aposta
de taberna, comprometeu-se a ir dormir, nessa mesma noite, no cemitério, no único
jazigo existente, da família da senhora Amélia Caçote. Só parte da aposta foi
cumprida; quando a meio da noite os vapores do álcool se atenuaram e uma fresta
de lucidez entrou pelo jazigo, que só aos mortos estava destinado e o ti Vilela
se apercebe do sítio onde estava, fugiu esbaforido, praguejando rua abaixo, até
ao local onde tinha destinado dormir antes de ter decidido fazer uma ocupação
que não era bem o galinheiro! Nos tempos que correm o que ele fez foi uma
ocupação “selvagem” embora aquele fosse um espaço onde a selva não existe e a
paz reina em todo o território.
Já as doze badaladas, ou melhor, marteladas, uma vez que é
martelo que bate no sino e o badalo apenas estremece, foram ouvidas há um bom
pedaço de tempo quando o “ressuscitado” Vilela se atreveu a ir visitar o
taberneiro para ver se o tinto ainda lhe sabia bem e levava, já prontinha, a
desculpa, para o caso de o fornecedor se divertir, a forma de manter a fama que
não tinha, a de ser destemido! Mal entrou e viu o sorriso da testemunha,
fingiu-se ele muito zangado e acusou os intervenientes na aposta de
“criminosos” e de o quererem enterrar vivo!
A certa altura o velho Vilela achou que eu devia aprender a
tocar guitarra e ao fim do dia lá me encontrava com ele, em frente ao chafariz,
sentados no muro que delimitava o caminho e a tapada do meu padrinho, caminho
que, atravessando várias propriedades, vai para as hortas, sendo uma delas
cultivada por nós, quando os Prados já começavam aficar longe demais e grandes
demais as leiras para uma família reduzida a três pessoas! Era propriedade do
senhor José Maria Patrício, que casou com uma das duas filhas da senhora Amélia
Caçote, pais do Álvaro e Reinaldo. Os Prados eram indivisos, couberam na
partilha, por morte do segundo marido da senhora Amélia, às filhas Mariquinhas,
antes referida e senhor Patrício e à outra filha, Cecília, por sua vez casada
com o senhor Cassiano de Albuquerque, madrinha e padrinho do meu baptismo e
ídolo, pela negativa, do então meu professor de guitarra.
Esforçava-se este amigo para que as notas musicais me
entrassem no ouvido e fossem plasmar-se na pauta que todos trazemos de
nascença, uns mais definida que outros e pela conclusão que hoje posso tirar é
a de que a minha é a dos outros! E talvez não, já me questionei várias vezes do
porquê desta dificuldade e as causas e conclusão estão desenvolvidas em
capítulo separado.
Na falta de gaita de beiço que serve, ou tem servido, para
os professores de música iniciarem os alunos nos sons das notas musicais, o meu
ilustre professor ilustrava a aula com uma toada que depois acompanhou da respetiva
letra e que era:
“Mija gato e caga cão, já cagaste ainda
não” !
Sempre me convenci de que ali estariam contidas as notas
musicais básicas para a aprendizagem da guitarra.
Não aprendi por incapacidade minha e não por inaptidão do
professor; e não apenas para as cordas, outros ensaiei e em nenhum deles me
senti bem, com mágoa o confesso!
II
Retomando o início do capítulo anterior.
Ao terminar com êxito a quarta classe, em Junho de
cinquenta, o caminho seguido, tal como bem sabia a tia Amélia ao dar a sua
aprovação à proposta da dona Graça para que eu repetisse a terceira classe,
quando estava tão bem ou até melhor preparado que os que passaram para a quarta,
o caminho seguido, disse eu, foi o acompanhar o ti Miguel, meu Pai e professor,
hoje seria formador nas artes de agricultar, por meios “analógicos” e calejar as
mãos em vez de apenas as papilas de dois, três ou mais dedos. As aulas eram
essencialmente práticas, a teoria era mais para tornar mais fácil cada uma das
várias tarefas.
As ceifas estavam em curso, ainda algumas cevadas em pé e a
foice passou a ser manejada, de início com pouca destreza e algum receio, mas
ainda as cevadas não tinham terminado e já era manejada com descontraída à
vontade, contornando as pedras, os cardos e ervas daninhas, para que só os
colmos fossem enchendo a mão esquerda, protegida com dedeiras. Uma vez cheia a
esquerda, a direita puxava um ou dois caules, ainda não ressequidos e com eles
dava volta à manada, dobrava as pontas em ângulo agudo e pelo vértice enfiava-as
por debaixo da atadura e poisar a manada no restolho, sempre na mesma posição
para quem virá juntar as manadas em braçado, atando este grupo de manadas com
uma “nagalha” feita com palha de centeio, antecipadamente e humedecida para não
partir ao atar, num jeito parecido com o da manada, mas agora com ajuda do
joelho para que o molho fique atado com a segurança suficiente para que se não
desate nas operações seguintes até chegar à eira: formar os rolheiros e
carregar os animais!
A garroba, como lá se chamava e pelos vistos bem, mas
também garreba e gameta, é uma leguminosa da família da lentilha, inicialmente
cultivada no planalto mirandês, alastrou para regiões a sul do rio Douro.
Adaptava-se bem terrenos muito pobres, onde não cresceriam os trigos ou
cevadas, era usada na alimentação de gado, sobretudo bovino e em situações de
grande escassez alimentar, como sucedeu durante algum tempo no final e pós II
Guerra Mundial. Lá em casa, que me lembre, foi usada uma só vez e do que
recordo não era de todo desagradável. A pequena produção que se fazia era
vendida ao senhor José Madeira, quase único comerciante por grosso, que
comprava a produção de cereais e amêndoa e fazia chegar ao circuito comercial
mais alargado. Havia um mais antigo, o senhor José Índio, mas conforme o senhor
Madeira crescia o senhor Índio definhava. Da produção, quando a havia, ficava
só a quantidade para uma sementeira, calculada pelo ti Miguel Monteiro.
Quando a ceifa dos trigos chegava, mais para Julho,
repetia-se a mesma cena das cevadas, em Junho. Os colmos do trigo eram menos
ocos e mais pesados, implicando um dispêndio de energia, tanto a ceifar, como
movimentar e em Julho o sol “grelhava” os corpos, dobrados pela cintura, um pé
mais à frente para manter o equilíbrio, nas encostas soalheiras do “calvário”.
A hora da merenda coincidia com o pico do Sol e a sala do repasto era, quando
existia, a sombra de uma oliveira ou amendoeira.
Navalha na mão direita, fatia de pão da semana na esquerda,
em cima desta um naco de toucinho salgado, um corno de boi com azeitonas e em
alguns casos, para os adultos, uma botelha ou cabaça com vinho, intragável,
quando não se encontrava uma poça de água e uma sombra para o manter abaixo da
temperatura ambiente, que rondava quase sempre mais de trinta graus Celsius.
Era a merenda quase igual para todos os que faziam a ceifa.
O chapéu de palha era indispensável ainda apoiado por um
grande lenço vermelho que teria uma dupla função: de filtro, juntamente com o
chapéu e, como absorvia a transpiração, era também térmico; a parte sobrante da
cabeça ficava a cobrir o pescoço e a nuca, do sol e do suor que sempre
escorria. Mesmo assim, tanto homens como mulheres, de tempos-a-tempos aliviavam
o chapéu para que a pequena camada de ar fosse ventilada, muito difícil no meio
daquela fornalha inclemente onde só o ruído das cigarras e uma zoada que
parecia emanar das entranhas da terra se ouviam e os corpos trespassava.
Havia sempre alguém, quando o rancho era maior, que tinha
como missão procurar até encontrar, uma nascente e aí encher de água o cântaro
ou outra vasilha em barro, que depois ia distribuindo pelos sequiosos, todos
bebendo pelo mesmo púcaro, também de barro.
No inverno e para não voltar ao assunto, durante a apanha
da azeitona, o elemento que procurava manter frescas as gargantas no Verão, era
agora encarregado de ir acendendo fogueiras, sempre à frente do rancho, para
que pudessem desentorpecer os dedos, frequentemente congelados e inúteis para a
simples tarefa de apanhar as azeitonas que saiam dos toldos de lona ou estopa.
Tudo isto me era já familiar, mesmo antes de entrar na
escola e também quando já a frequentava;
vamos fixar-nos neste período.
Como as aulas terminavam às três da tarde, os mais novos,
ou tratavam do gado, os que tinham gado, outros iam regar as hortas, os que
tinham horta e quase todos tinham, uns de sua família e outros as arrendavam ou
cultivavam sem qualquer renda, por conveniência dos proprietários, como era o
meu caso; com alguma frequência, nos tempos da apanha da amêndoa e da azeitona,
tanto a minha mãe como minha irmã e meu pai, iam à jorna para os amendoais ou
olivais da família abastada, assim como outras pessoas; os homens, munidos das
suas varas, campinos sem cavalo nem campo apropriado, eram mais para varejar,
juntar os frutos e ensacá-los, deixando-os no terreno, em pé, para rapidamente
serem avistados e carregados nos animais que cada um levava para se deslocar
para ir e regressar ao fim do dia.
As mulheres, como disse, eram mais para o penoso trabalho
de apanhar os frutos que, teimosamente, insistiam em sair dos toldos e se não
fossem apanhados apenas alimentariam um ou outro cliente residente, ave ou
mamífero! Em vez de varas como os homens, cada uma levava uma cesta de verga
que era a medida para definir o que iriam receber no final da semana ou da
safra.
Alguns miúdos, poucos, sempre que podiam e tinham alguém de
família a fazer essas safras, acompanhavam os familiares e dedicavam-se ao
rebusco, ou rabisco como também é designado, ou seja, andar atrás do rancho de
mulheres, catando os frutos que elas não viam e metendo-os num pequena saco que
transportava ao ombro e quando estava a ficar pesado ia despejá-lo num saco
maior que ficava junto do animal de carga.
Não sei até que ponto poderei pensar que não estava a
prejudicar a fauna autóctone, mas era garantido que naquela época nada disso
alguma vez pensara! Quem pensava que podia desequilibrar o eco sistema,
roubando azeitonas aos ratos e estorninhos ou outros! E aqui para nós, mesmo
hoje, uma boa parte dos defensores “encartados” dos animais, muitas vezes é
mais teatro ou panfleto do que uma cultura estruturada de defesa dos animais!
Não irei por aí, o que me propus foi registar memórias, com um ou outro naco de
ficção e nunca uma coisa que nem como se faz sei, um tratado sobre relações
humanas e desumanas, quando muitas vezes não sei quais são umas ou outras!
Andando…
Os Prados, assim chamavam a uma olga de terreno, de forma
ovalizada, com cerca de cem metros no eixo maior e uns trinta, ou menos, no
outro, ficava entalada entre um terreno do ti Ari e a Quinta da Cascalheira,
propriedade enorme, partindo dos Prados, alongando-se até ao ponto mais alto da
montanha e descendo até ao rio Côa, bem abaixo, na fraga do Ceno! Deve ter
sido, em tempos passados, uma quinta habitada a tempo inteiro, a habitação
ampla de dois pisos, com terreno para a horta e algumas árvores de fruto e uma
frondosa amoreira, bem adaptada e produtiva; a eira existente, tanto podia ser
usada para a sua função habitual de debulha dos cereais e não só como espaço
para secagem de amêndoa, como agora era. Durante alguns anos foi habitada por
uma família de pastores, com dois filhos, se não estou errado, sendo o rebanho
de um dos dois herdeiros, o senhor Patrício! Deve ter sido de curta duração,
não sei porquê, mas era dedutível que viver ali, longe do pouco que havia na
aldeia e com filhos pequenos, só mesmo por castigo!
Ainda devem ter convencido o meu pai a semear um pedaço de
terreno mais plano, perto da casa, mas logo no primeiro ano foi só trabalho e a
cevada mal cresceu. Quando deixei a aldeia apenas era explorado o que restava
do amendoal e olival, com as árvores não tratadas e cada ano produziam menos,
chegando bem para lhe dedicarem alguma atenção, o que não sucedia!
Soube alguns anos depois, penso que quando adoeci e o
médico aconselhou que devia “mudar de ares” e estive cerca de três meses na
aldeia, aos cuidados da tia Amélia, como o doutor Caldeira decretou: “Amélia, o
rapaz não tem nada nos pulmões, mas tens aqui muito que tratar! Alimentar-se
bem e repousar muito é o que precisa”, que a Quinta foi aumentar o património
da senhora Amélia Caçote duma forma não muito limpa!...
Os proprietários da fundação ou os herdeiros a seguir,
devem ter-se metido numa daquelas querelas feudais, em defesa do bom nome,
acabando por ficar com o nome, mas sem património; ou ficando os advogados com
as propriedades ou acabando por serem penhoradas para o estado ser ressarcido
das dívidas por custas e impostos em atraso. Foi o que sucedeu e foi à hasta
pública, em Figueira de Castelo Rodrigo, sede da comarca, pelo valor de
quinhentos escudos.
O pai do meu padrinho era o mais antigo membro da família
nobre dos Albuquerque Andrade Saraiva Vasconcelos, daquela região e a residir
em Castelo Melhor, desconhecendo se, além do património agrícola, teria outra
ou outras fontes de rendimento.
Deviam dar-se bem, o representante da família nobre e um
dos dois ou ambos os maridos com quem casou a senhora Amélia Caçote, irmã do
meu avô Joaquim dos Reis Caçote! O pai do meu padrinho soube por alguém que a
Quinta ia a leilão, coincidindo com a deslocação a Figueira do marido da minha
tia-avó para tratar de assunto seu e o amigo pediu-lhe que se o valor do leilão
não fosse além dos quinhentos escudos, a arrematasse para ele, entregando-lhe a
referida quantia. Tudo bem, a palavra-dada era muito respeitada naqueles tempos
e ainda muitos anos do seculo XX, não é como passou a ser, palavra de honra,
produto que vale até alguém oferecer mais! É bonito, é fino, é inteligente e
ainda acaba por fazer escola e ser regulada por Lei do Estado “democrático”.
Mas não houve, no caso em apreço, a palavra dada, mas tão só um pedido feito e
aceite a sua execução.
Tudo na perfeição até ao momento de assinar a escritura e
aí alterou-se o combinado, ou seja, a Quinta foi registada em seu nome e não no
do amigo que lhe fez o pedido e paga com os quinhentos do amigo! Pode não ter
havido ilegalidade, mas bonito, bonito,…eu não acho. O património do nobre terá
ficado tal qual, caso o amigo “da onça” lhe tenha devolvido os quinhentos
escudos, mas o do casal ficou mais inchado com uma Quinta!
Nunca me atrevi a perguntar o que terá pensado o meu avô
Joaquim, uma vez que a emigração dele para o Brasil nunca foi compreendida e
muito menos aceite! É que zarpar para o outro lado do mar deixando quatro
filhos, três raparigas e um rapaz, tudo leva a crer que de menor idade, nos
braços da avó Zefa…! Adoptei-o como um ídolo, mas sempre gostei muito da mina
avó!
A Quinta e a olga dos Prados acabaram por ficar na posse
das duas famílias, porque a filha da senhora Amélia e sobrinha do avô Joaquim, Cecília,
veio a casar com o filho do nobre, o meu padrinho Cassiano de Albuquerque e
quando o esposo da senhora Amélia Caçote faleceu tiveram que ser feitas as
partilhas entre ela e as duas filhas, dando esta salada de bens que devem estar
hoje entregues à livre iniciativa de tudo o que é natural, o Sol, a Chuva, o
Vento e depois os vivos do Reino Animal!
E foi na horta dos Prados que eu aprendi a arte de
agricultar: cavar, limpar, semear, plantar, estrumar e enxertar. E se vier um
dia ou uma noite, é indiferente, a defender a tese de doutoramento, vai ser
sobre a disciplina da enxertia! Porque gostei dela, pratiquei-a em quase todos
os Prados e arredores! Bastava topar com uma amendoeira brava e ficava logo
marcada para ser transformada em pessegueiro ou ameixieira, ou até as duas
coisas!
A maioria dos enxertos morria entre a Primavera e o Verão,
bastando para tanto que o tempo fosse excessivamente quente ou seco! Mas quando
venciam a batalha daqueles meses, ou porque correu a favor o tempo ou o lugar
onde deviam crescer tinha melhores condições de humidade e proteção aos ventos
do Norte, pouco ou muito davam frutos, bem apreciados quando os que passavam
para o trabalho ou dele voltando e até os caçadores, quando abria a caça às
rolas! Os que estranhavam o achado perguntavam e algum dos companheiros que já
sabia o porquê do achado informava: é o Zé Cassiano que anda sempre nas
enxertias!
Mal eles sabiam as vezes que eu era “enxertado”!
III
No final da apanha da amêndoa vinha o tempo da roça.
Consistia em limpar os terrenos que estiveram em repouso
nesse ano, cortando silvas, giestas, cardos ainda com flor para não ficar o
terreno infestado de sementes. As piorneiras eram as que mais admirava! Saídas
de cepas que mal se viam entre as fragas, agarravam-se à vida com uma
tenacidade impressionante! Por mais fundo que fossem cortadas e arrancadas, no
ano seguinte lá estavam a crescer, saídas de qualquer resquício de raiz, por
vezes pareciam sair do nada.
Eram as maiores, agrupadas em feixes que ficavam no campo a
secar ou eram logo levadas para a aldeia para atear fogueira e lareira.
Destas aprendizagens a que mais rigor exigiu foi a da
sementeira. Mas a certa altura peguei no saco de algodão, tecido no tear pela
Mariquinhas, e com uma fita de pano, atada num dos cantos da cozedura, onde se
juntavam uma pequena quantidade de sementes, formando um “mamilo” para não se
desprender e a outra ponta do pano atado no canto da boca do saco, para servir
de bandoleira; botei-o ao ombro esquerdo e a mão desse lado segurou a borda do
saco de forma a mantê-la sempre aberta. Voltado no sentido do rego que há-de
ser feito, meto a mão direita pela abertura do saco, retiro-a já cheia de trigo
ou cevada e olhando em frente, num movimento sincronizado, faço o lançamento,
esticando o dedo indicador para abrir a porta e servir de rampa de lançamento
para a semente sair espalhada em arco; de três em três passos, se não estou
errado, ficando sempre à frente o pé esquerdo, no momento de lançar.
Chegado ao limite repetia-se tudo até criar uma faixa de
semeadura que iria ser coberta com a terra movimentada pela relha ao abrir o
sulco com o ti Miguel Monteiro, ou eu, agarrado à rabiça na extremidade do
arado e bem atrás do gado que era o motor, sempre a ser comandado e incitado com
a voz sempre calma: “castanho, vamos lá” ou “preto, tem-te ao rego”, “ isso
mesmo” a relha a ficar presa, ou num calhau do maciço ou numa raiz de piorneira
e ter de fazer a parelha recuar para à costa de força ser desenterrada e
continuar.
Aquele monólogo era mais para quebrar a monotonia que a
rotina provocava e sentirem-se todos acompanhados, do que para corrigir e incitar!
O dia terminava, os apetrechos ficavam no terreno e os animais e lavrador
regressavam a casa, a pé ou montado num dos animais.
Era assim, semanas e semanas, sempre igual, apenas o que ia
mudando era o terreno, a sua localização e consistência; e o tempo, esse mudava
mesmo, por vezes demasiado!
No final da primeira semana já eu tinha ensaiado todas as
operações da sementeira. Já a caminho de casa, ao fim do dia, sem qualquer
mostra de entusiasmo, virando-se para mim, disse o ti Miguel:
- Aprendeste depressa a parte mais cuidadosa, a semear e
pareceu-me que está bem!
O pai acha, mas eu tenho a certeza!
- Tens a certeza porquê?
Porque comparei com a sua! E expliquei que,
disfarçadamente, enquanto ele tinha ido “arrear as calças”, num dia contando as
sementes em um metro quadrado semeado por si e no dia seguinte as por mim
semeadas.
- Afinal quem és tu? Todos os teus irmãos aprenderam, uns mais
depressa, outro mais devagar, mas irem confirmar se…estava bem, nunca sucedeu.
Sou o seu filho mais novo e procuro certificar-me de que o
que faço me satisfaz!
- Então toda aquela confusão da escola!? Foi …
Teve alguma coisa a ver, mas sempre diferente do que
semear!
IV
Do que mais gostava, talvez por ter começado a ir para lá
antes de saber andar, era da horta dos Prados! Semear viveiros de couves,
alfaces, cenouras, e outras, menos pimentos e tomates que tinham de ser
semeados em tabuleiros, em casa, por não aguentarem o frio da noite, sendo
levados para a lareira, onde pernoitavam.
A transplantação, a rega, o desbaste, vê-las crescer,
apanhar folhas e frutos quando chegava a época, era criar vida.
O ti Miguel gostava de ter um pouco de tudo na horta, mesmo
sabendo que alguns produtos não tinham consumo lá em casa! O caso que melhor
recordo é o da beringela; eram meia dúzia de pés de um dos lados da leira dos
pimentos, mas os belos frutos, grandes, roxos e brilhantes! A minha madrinha
Noémia, filha única da madrinha Cecília e do padrinho Cassiano de Albuquerque,
era a consumidora exclusiva das belas beringelas!
Tudo se dava bem nas terras que altos muros seguravam; mas
com a ajuda dos cuidados do ti Miguel. A olga de cima, com três calços, não
contando com o mais alto e que além de servir de suporte das terras, definia o
caminho que dividia a meio as duas partes, serventia única de acesso às terras
da Quinta, porque da quinta todos eram, como já ficou dito antes. Tinha uma
meia dúzia de fiadas de videiras, uns fracotes pessegueiros, uma ameixieira
brava a cujos frutos chamavam “ameixa cagoiça” a quantidade que produzia, velha
e a cair para o caminho, não dava para honrar o epiteto! E duas figueiras
brancas que dava os lampos, por volta do São João e depois, lá para Setembro,
os vindimos que eram mais pequenos e seguros à mãe figueira, só quando muito
maduros, já a ficar enrugados, é que dela se despediam em quedas suicidárias,
embatendo em tudo o que se atravessasse no trajeto, fossem folhas ou ramos, até
se acomodarem no chão! Um ou outro, talvez protegido por algum anjo protetor do
figo, ficava entalado num galho, mas era pouco seguro o abrigo e mal vinha um
ventinho mais forte, acabava no chão também.
Eram postos a secar sobre umas ervas secas a que chamávamos
“passeira” de certeza por ser ali que eles acabavam de secar e serem apalpados
para lhes retirar espaço que pudesse ganhar humidade e apodrecessem! E lá iam
novamente para os campos, servindo de manjar de inverno nas merendas de quem os
tinha.
Para arrumar os figos falta um pormenor que só mais tarde
percebi: aos figos lampos, grandes e sumarentos, quem comunicasse ao dono das
figueiras podia comer e levar para casa, os vindimos só podia comer! A explicação
tem uma raiz histórica e civilizacional que remonta ao tempo do feudalismo e outra
mais funcional, como não podiam ser secos, não resistiam a quase nada, mal
caiam, maduros e pesados, mal chegavam ao chão rebentavam e apodreciam.
Retomando a olga de cima e passando ao segundo calço onde
era cultivado o meloal, uns pessegueiros, uma pereira de frutos pequenos e
fraca qualidade. Havia uma novidade que só há pouco tempo devo ter entendido:
era um pessegueiro raquítico desde que o conheci, plantado num dos melhores
bocados de terreno desta olga, o do meloal, que nunca terá dado mais que uma
dúzia de frutos, espalmados em vez de redondos ou oblongos, a que meu pai
chamava de “coimbrês”. Enxertei-o em mais que uma espécie de base, mas nunca
vingou! Mal começava o Verão, morria! Há uns anos, poucos, conforme foram sendo
abertos novos mercados de importação, apareceram novos frutos e entre eles o
tal pêssego que mal o vi quis logo saber noticias sobre ele e mais não soube do
que o nome: paraguaias!
No muro que segurava as terras do último espaço foi
construído um tanque que depois foi coberto que se destinaria à rega do meloal
ou do que ali fosse plantado ou semeado, mas que pouco mais era do que o
meloal.
No último talhão, onde só havia uma figueira, uma fonte por
onde se libertavam as águas que faziam o percurso desde o alto da montanha,
esgueirando-se pelos mínimos intervalos e ali se apresentavam com uma pujança e
pureza, depositando-se num tanque construído para a receber e armazenar, mas
que já conheci inactivo!
Quem ali fez ou mandou fazer aquelas construções, terá sido
o proprietário da Quinta e deve ter feito uma exploração intensiva dum espaço
de terras ricas e fê-lo com muito saber! As águas abundantes que faziam o seu
percurso dos vários pontos da montanha, só os subterrâneos porque os das chuvas
faziam o seu caminho livre pelo exterior do espaço todo murado, e brotavam ou
fizeram brotar lá no ponto mais cimeiro do oásis que era no meio de um quase
deserto terreno em volta!
Não vou pormenorizar muito mais, seria difícil narrar tanto
o que de bom e belo tinha aquele enorme pedaço de paraíso!
A horta onde eram cultivados os legumes era só metade
aproveitada para este efeito, só a parte da entrada, com latada de uva de mesa
logo a seguir, do lado direito e que cobria o tanque enorme para permitir a
rega por alagamento, tendo para tal sido abertos regos junto dos muros que iam
da entrada até se perderem do lado oposto, por onde o excedente de água ia
descendo para a olga de baixo!
Além da latada havia uma figueira de figos brancos e uma
bebereira de frutos negros por fora mas vermelhos como sangue por dentro!
Cresceram no espaço criado para separar a horta das árvores de fruto, senão não
haveria horta, porque a sombra a não deixaria criar nada e menos ainda amadurecer
ou crescer os hortícolas!
Sem qualquer intenção eu acabei por deixar a minha marca no
centro da horta: um pessegueiro maracotão que ali nasceu, como nasciam noutros
pontos para onde fosse atirado um caroço! Pedi ao ti Miguel se podia deixar crescer
a árvore? Concordou e foi um regalo ver crescer, em terra abundante e adubada,
até ser o mais frondoso de todos! Os pêssegos eram grandes, sumarentos até
pareciam ter melhor sabor!
Antes do pessegueiro era área dos legumes, para lá do
pessegueiro era destinado às favas e ervilhas.
De realçar a gigantesca nogueira da olga de baixo e uma
variedade grande de árvores de fruto, marmeleiros, damasqueiros, cerejeira e a
nogueira que o Ernesto terá transplantado e era já enorme, competindo com as
ameixieiras “Rainha Cláudia” que todos anos nasciam novas filhas das raízes que
ficavam mais à superfície. O espaço plano criado com mais um calço era onde era
semeado o nabal e depois uma cevada só para pasto para o gado!
A água puríssima que que atravessava a serra e a olga de
cima foi artificialmente conduzida para uma conduta em forma de mina, ou túnel
sem luz ao fundo e que já fora do muro corria por um grande bloco de granito, onde
o canteiro abriu um canal, depois uma poça circular para quem quisesse poder
beber, a que se seguiam mais cerca de vinte centímetros de canal que de dia e
de noite, de Verão ou de Inverno, levava e despejava a água para dentro do
tanque, onde muitas vezes fingi que nadava!
A árvore preferida da tia Amélia era a dos abrunhos de
larga caroço, assim lhes chamavam, mas que em Lisboa tomavam o nome de “Rainha
Cláudia!
Muitas vezes era nos Prados que lavava a roupa e quando ao
fim da tarde regressava, sentada de lado na albarda do burro e ao colo uma
cestada de abrunhos, quando chegava a cada mais de metade tinham sido comidos!
E tinha problemas todos os dias: dores no ventre e
diarreias “ terei que deixar de comer abrunhos quentes” dizia, mas logo se
esquecia. Os abrunhos, ao contrário das ameixas, que também havia, brancas e
pretas, o caroço separa-se facilmente da polpa e sumo só escorria quando
estavam muito maduros.
Quando algum dos filhos ou o ti Miguel chamava a atenção da
tia Amélia para o exagero dos abrunhos, invariavelmente respondia: “deixem lá,
sabem tão bem!”
Pior do que os abrunhos só mesmo as bolas de sardinha que,
de tempo a tempo, fazia e que todos temiam, nomeadamente a Mariquinhas, por ser
quem tinha a maior parte do trabalho, nas crises de vesícula que sempre
advinham quase de imediato, com vómitos esverdeados – as corlas, assim era
conhecido aquele desagradável liquido que vinha do mais fundo das entranhas –
com dores gritadas e lá tinha que ir para Almendra ouvir o ralhete do doutor
Caldeira quando as dores não amainavam com as mezinhas que sempre havia lá por
casa.
O doutor, mal a via chegar, logo dizia: “outra vez, Amélia!
Qualquer dia, ou já na próxima, não te atendo! Sabes bem que não podes comer
aquela bola com as sardinhas! Tenho que ser eu a aturar-te e antes de mim é a
família! Pareces uma garota é o que pareces!”
Já com menos dores, sorrindo, “oh, senhor doutor, não gosta
dum naco…? “ “Gosto, mas eu não tenho esse problema que tu tens!” e voltava ela
a sorrir, “oh, senhor doutor, sempre tenho que morrer, não é? Ao menos morro
satisfeita! Olhe, doutor, prometo que quando morrer me calo”
“Olha, vai p’ró inferno e não voltes a aparecer por cá tão
cedo!” E num monólogo, virando-lhe as costas, ia murmurando: “ como é que
alguém pode morrer satisfeito a gritar com dores?!”
Bastava que a sardinheira aparecesse no dia da fornada, com
a sua caixa ainda a meio e que parecia ser sempre a mesma e do mesmo fornecedor
“MANUEL ROCHA, Matozinhos” e logo a tia Amélia começava a espalmar um pedaço de
massa, arredondado e esconder lá dentro três ou quatro sardinhas que as abas da
massa encobriam.
E mal saía do forno, ainda a escaldar, os olhos de gula a
brilhar, soprando o primeiro bocado para de seguida o comer. As vizinhas que,
como a tia Amélia, aguardavam que a fornada saísse, metiam-se com ela” oh, tia
Amélia, logo à noite vamos ter festa lá em casa?!” “Pode ser que não, Deus me
valha!” Não valia! Devia estar farto, como o doutor Caldeira!
Voltando aos Prados da horta, dos pêssegos e dos abrunhos…
Do que mais gostava era do meloal! Terreno preparado há
algum tempo, cavado e estrumado, era tempo de semear. As pevides selecionadas
eram dos frutos de melhor qualidade, da última produção. Abriam-se, mesmo à
mão, pequenas e pouco profundas poças, onde enterravam três ou quatro sementes,
apenas usando os dedos, polegar e indicador, alisando de seguida a terra. Na
mesma altura eram abertos os regos para a rega por alagamento.
E vinha a festa da colheita, não como a de outros frutos
que amadureciam todos ao mesmo tempo! Hoje aparecia um que o ti Miguel me
ensinou a conhecer se estava ou não maduro, depois outro e, uma semana passada,
já eram dez e mais por dia, durante mais de um mês! Nem foi preciso perguntar
do porquê de serem semeados, pelo menos três espécies diferentes: casca de
carvalho, pele de lagarto e um outro de cujo nome não recordo, cada um
amadurecendo em tempo diferente, embora pequena a diferença.
As melancias eram semeadas no perímetro da área dos melões,
sempre poucas, o pessoal preferia os melões.
Quando chegávamos a casa, o ti Miguel escolhia um ou dois
lá para casa, uns quantos para meu padrinho, dono da horta e os restantes era
colocados no balcão e dados a quem não tinha meloal e que eram a maioria das
famílias. O ti Miguel apenas dava opinião se lhe perguntavam sobre qual seria
melhor ou sobre o estado de maturação e notava-se a sua alegria quando as
pessoas procuravam os frutos. Ao fim do dia, os que sobravam eram dados aos
animais, ao porco, aos machos e até as galinhas se regalavam e bulhavam quando
eram as pevides.
Eram estes os tempos e tipos de lavoura todos os anos. Não
tínhamos terras nossas, a não ser uma pequena faixa de terreno lá para os lados
do Douro e que tinha a designação de Penácio, uns trinta metros de largura e
uns cento e cinquenta de comprimento. De fraca qualidade tanto os cinquenta
metros mais planos, como os cem de encosta, de má exposição ao Sol, nunca
produziram alguma coisa com jeito.
O ti Miguel não se poupou a esforços para tornar produtivo
aquele único terreno mesmo seu. Na encosta ensaiou amendoal e no ponto em que
terminava a encosta ensaiou o olival que lhe pareceu ser adequado para aquele
pedaço. O Ernesto e o ti Miguel iniciaram o empolamento das mãos para abrir
poças onde foram plantadas as primeiras e como pareciam ir dar-se bem, ainda
iniciou, comigo, o trabalho de abertura de mais umas covas, mas naquele ponto
do terreno o xisto era de tal forma duro, que só com dinamite o fosso se
abriria, vencendo a natural oposição do solo. Parámos o trabalho e chegámos a
acordo de que era trabalho demais para um projecto que o não justificava. E das
doze que tinha projectado, só seis ficaram transplantadas.
A decisão veio a mostrar-se acertada, soube mais tarde, já
em Lisboa, que raramente conseguiam apanhar alguma azeitona por que alguém se
antecipava e a recolhia; alguns dos habitantes do Orgal, quando regressavam a
casa, ou vindos do trabalho ou da estação dos caminhos-de -ferro, como tinham
que atravessar o nosso terreno, por ser um caminho público desde tempos
longínquos, era só andarem meia dúzia de metros e estavam junto das oliveiras.
O Orgal, antes citado, era o único lugar pertencente à
freguesia de Castelo Melhor e situado a escassos quilómetros, pelo caminho,
hoje estrada, que liga a freguesia a Foz Côa.
Para além do Penáceo havia também duas porções de terreno,
indivisas, uma maior que fazia parte da herança dos meus avós paternos e outra,
mais pequena, que ficou por morte da tia Josefa e do ti Joaquim dos Reis
Caçote, meus avós maternos, este que foi para o Brasil e lá ficou.
Todas as terras que o incansável, ti Miguel Monteiro,
amanhava para sementeira de trigo e cevada, eram de pessoas da aldeia que as
não exploravam, ou por não terem condições familiares para o fazerem, ou porque
tinham uma outra fonte de rendimento que lhes ocupava o tempo.
Não conheci nenhum mitómano que pensasse fazer fortuna
naquelas terras de fraca capacidade para produzirem.
As grandes propriedades eram dos meus citados parentes, o
meu padrinho e o cunhado, mas quase só tinham amendoal e olival, chegando a sua
posse pela morte dos pais!
V
Pela curiosidade e singularidade das situações, pareceu-me
mais curial trata-las em separado, mas nunca fugindo à magia daquele espaço de
diversidade, um mundo para uma criança que a aventura ainda não tinha
significado nem sequer nome: o microcosmo dos Prados!
As aboboreiras eram sempre semeadas no final da área da
horta, a um metro do calço mais alto para que o seu crescimento fosse orientado
no sentido de descer, sem pressões, os cerca de três metros de muro e ainda
avançavam uns metros para a zona de passagem de acesso ao nabal e às macieiras.
Aí sim, tinham de ser reorientadas para crescerem ao lado do muro e não de
“costas” voltadas para ele. Enquanto cresciam, mesmo que junto ao chão, iam
enfeitando o seu caminho com flores grandes, amarelas, em feitio de um funil ou
gramofone, não dando fruto maior parte
delas, mas eram um regalo para as abelhas que as brindavam com seu concerto se
violinos; as que viriam a transformar-se em fruto traziam já na sua base aquilo
que viria a transformar-se num fruto, por vezes gigantesco. Aquilo que
compramos no supermercado, a granel ou ensacado, as pevides, secas e salgadas
são sementes de abóbora para, regalo dos amigos da cerveja.
Todos os anos, uns mais e outros menos, se produziram
abóboras, quase sempre maiores nos anos de menos produção; teria a ver com o
clima, porque a montante tudo era feito do mesmo modo: estrume, água preparação
da terra.
Por vezes as abóboras nasciam a meia altura do paredão
obrigando a planta a ir esticando, mas ou acabavam por cair ou o crescimento
era em função do alimento que chegava.
A aboboreira é uma rastejante, como o são o meloeiro e a
melancia e que me lembre não via melões armados em equilibristas, pendurados
nas paredes e melancias muito menos, crescem mais que os melões e sua forma
esférica era mais que certo que nos dias de vento, as melancias se cansassem do
baloiço e sem se despedirem…aterravam!
Por mim conhecidas eram três a variedade das abóboras: a
menina, de cor alaranjada quando adulta, com a forma de melão; a galega, de cor
indefinida entre o creme e o acastanhado, do feitio de maçã; e a de guisar,
esverdeada até ao fim da do crescimento e depois ia caminhando para o amarelo;
desde o principio eram diferentes, os ramos, mal nasciam o caule era facetado e
com pequenos esporos que picavam e as folhas eram salpicadas de um branco
prateado, mais pequenas que as das outras espécies. Em toda a freguesia era
comida pelos humanos, enquanto pequena e normalmente guisada, uma vez adulta
era só para os porcos e talvez daí o lhe chamarem, nalgumas zonas do país,
abobora porqueira e que é usada nas filhós de Natal, por ser a única que se
aguentava sadia e sem alterações até à festividade de Natal. Quando era
guisada, em idade juvenil, que comi muitas vezes, em forma de ensopado era
cortada em fatias muito finas, esticadas numa terrina, que tinha já no fundo
fatias de pão caseiro, cortadas igualmente finas, sobre as quais era despejado,
ainda a escaldar, a água com os temperos e depois tapada para que a abobora
ficasse cozida e pronta a servir.
Houve um ano em que, talvez devido a condições atmosféricas
especiais e as plantas terem dado poucas abóboras, começou a crescer uma
abóbora-menina, já no fundo do calço, que cresceu de tal modo que parecia
querer compensar a fraca produção desse ano.
Vista pelos meus olhos de miúdo, teria perto de metro e
meio de comprimento e de envergadura só dois homens a conseguiriam abraçar.
Todos os que passavam para trabalhar na Quinta a olhavam,
chegando mesmo a parar para ver bem aquele exemplar de tamanho nunca visto.
Talvez pela curiosidade despertada e pela religiosidade que estruturava sua
maneira de estar na vida, o ti Miguel decidiu que a abóbora iria ser oferecida
para o “Ramo de Nossa Senhora” que tinha a sua festa anual no dia vinte e dois
de Setembro e era a mais rija das duas; a outra, a festa do Anjo era sempre na
segunda-feira de Pascoela, uma semana depois do domingo de Páscoa.
A imagem da Senhora do Rosário era aquela que uns anos
antes tinha sido desrespeitada pelo senhor bispo da Guarda, ao dizer que aquela
imagem já se não usava, o que levantou o Povo em peso e o correu à pedrada, parecendo
a antiga Roma ou a Meretriz que Jesus terá salvado do apedrejamento. Acho que
não mais voltou, aquele ou outro bispo!
O que chamamos Ramo de Nossa Senhora pouco ou nada tem a
ver com fé! É um tronco de um olmo, pinheiros não há, limpo dos pequenos ramos,
que é enfiado num furo circular aberto numa laje de granito embutido na calçada
para servir todos os anos, onde são pregadas tábuas, a primeira com cerca de
dois metros a todas as outras mais pequenas e distanciadas umas das outras meio
metro, formando uma pirâmide, onde são pregados pregos destinados a pendurar o
que cada um vai dando, normalmente fumeiro, frutos, animais poucos, mas lá
aparece um ou outro galo; no chão ou sobre a espécie de mesa, umas tábuas
equilibradas em volta de um dos lados do tal tronco, eram depositados as
oferendas maiores: as batatas, cebolas, alhos, galinhas de pernas atadas, que
de vez em quando, certamente devido às dores, ao calor, a fanfarra e foguetes,
tentavam a sua fuga, mas não iam longe, um magote de garotos e outros de mais
idade, logo as agarravam, a galinha a “ralhar”, davam à festa o colorido que por
vezes lhe faltava.
Os cabritos, um ou dois, eram poucos os cabreiros e as
cabras também, dormiam como se a festa fosse doutra espécie, a festa deles era
no fraguedo, correndo uns atrás dos outros, fazendo piruetas e exercícios de
equilibrismo que fazia medo e inveja aos garotos da aldeia.
O ti Miguel, como prometera e as promessas eram como
palavra dada, eram para cumprir, carregou dois feixes de palha no burro,
domingo ainda de manhã, e aí vamos nós para os Prados buscar o fenómeno. Meu
pai, na véspera, tinha combinado com o pastor das ovelhas do senhor José Maria
Patrício, para andar com o gado ali por perto para nos poder dar uma ajuda a
carregar a “coisa”. E quando chegámos lá estava ele, do lado de lá dos Prados,
vara na mão, a ouvir a música dos chocalhos, das duas ou três badanas que eram
as mais capazes de conduzir o rebanho e obedecer aos sinais sonoros do
assobiado pelo pastor e os latidos de seu cão!
- Bom dia ti Miguel e companhia, companhia era eu, tirando
o boné em sinal de saudação! Fizeram boa viagem? Perguntou no mesmo tom de voz!
- Graças a deus, correu bem, respondeu o ti Miguel!
- Então é hoje que a nossa menina grande mos vai deixar?
Vou sentir saudades… Prêta, p’ráli, e a
preta recuou…quando quiser diga, para me despedir com um abraço, mesmo que ela
não ligasse a ninguém, só queria era crescer, crescer…!
- Vou só apanhar umas alfaces e uns pêssegos para o pessoal
e ver se algum melão já esta na conta e já te chamo!
- Ontem apanhei uma mão cheia de pêssegos do pessegueiro do
Zé Cassiano – era o da horta – para levar para a patroa! Os de lá já acabaram!
Comi um, madurinho, maior que este punho fechado, que me regalei!
- Fizeste só bem, é bem melhor que se comam do que caiam de
maduros e seja a bicharada a regalar-se!
Apanhámos três alfaces e enquanto subi ao pessegueiro para
apanhar os maracotões, o ti Miguel foi à olga de cima colher os melões.
- Vamos a ela, ti António? Disse meu pai de forma que o
pastor ouvisse!
- É p’ra já, mas ainda vou ter saudades dela! P’ra onde vou
olhar logo sabendo que já lá não está?! Vamos lá! P’ró ano vamos ter mais e
podem até ser maiores! Se deus quiser…
Eu segurei na rédea do burro, para ele não se espantar,
caso olhasse para o monstro e se manter quieto, até terminar a operação de
colocar sua majestade, a abóbora –menina, entre os feixes de palha e bem firme
para resistir aos solavancos, sobretudo no Canado das Abebereiras e a descida
para a Grixeira.
- Vamos a ela, ti António? Pergunta, que é mais ordem, o
meu Pai.
- Vamos lá, ti Miguel! Responde e avança para uma das
pontas da abóbora.
Um de cada lado do fenómeno, o burro paralelo e seguro e a
voz do ti Miguel
- Um, dois, três…upa p’ra cima, ai que me escorrega das
mãos!...
- Heaaaaaaaa, está quaseeeeeeee, gemia o ti António…heumm…
já está!...
- C’um catano, ti António, estava a ver que ela não queria
deixar o lugar onde nasceu e cresceu! Desabafava o ti Miguel, ainda a respirar
às pressas.
- É verdade, ti Miguel, a menina, agora é mais que mulher,
não só cresceu e engordou, também encheu! Nunca pensei que pesasse tanto!
- Nem eu! Pensei que fosse mais oca do que é! Acrescentou o
ti Miguel.
Coberta com um covijão (mais conhecida por manta de
trapos!), dobrado e atada com duas voltas de corda distanciadas cerca de meio
metro uma da outra.
Despedimo-nos e meu Pai agradeceu a ajuda ao ti pastor e lá
partimos, a passo de burro, para Castelo Melhor.
Alguém nos deve ter visto aproximar e logo começaram a
aparecer os miúdos, uns rindo, outros riam e iam dizendo: c’um catano, grande
bóbra!
Os adultos só olhavam e ruminavam qualquer ditote que não
se percebia; outros comparavam: é maior que uma vitela!
Dois deles ajudaram meu pai a apear a “menina” e um deles,
mais divertido, acrescentou, depois de a poisar:
- P’ra menina é pesada demais! Pesa mais do que eu, de
certeza! Temos de a pesar aí na balança do senhor Zé Indio! Depois do leilão,
claro.
Ouvia-se dizer: “que coisa grande!”, “aquela horta dá tudo”
comentava outro, e várias outras apreciações.
Sem garantia absoluta, quem arrematou a abóbora foi a
Benvinda Xareta e penso que foi pesada em casa do senhor Zé Madeira e não no
senhos Zé Índio como sugeriu o conterrâneo: setenta e dois quilos!
- Setenta e dois quilos, é obra! Comentou o dono da
balança.
- É obra, não! É abobra, emendava outro a rir!
VI
Foi a última abóbora que nos Prados cresceu!
No ano seguinte, como sempre se fez, as aboboreiras foram
semeadas e deixadas no mesmo local. As abóboras, nunca eram oferecidas a
alguém, porque até nem as acetaria, devido à sua fraca aplicação, só a quem
tivesse gado ou porcos para alimentar dariam jeito.
Cresceram, enfeitaram-se de belas flores amarelas por fora
e por dentro laranja, a sobressair de entre as enormes folhas verdes, o
habitual. Mal uma outra, também como sempre, indicava que dali sairia um fruto
maior ou menor, e dava, só que era abóbora condenada! Assim que atingiam o meio
quilo, mais ou menos, começavam a mirrar até caírem, como ave morta a cair do
ramo. E não era só à abóbora-menina que sucedia, todas se conluiaram, galegas,
meninas e de guisar. Não me constou que nos Prados voltassem a crescer
abóboras.
Um ou dois anos depois, o Ernesto enxertou, no pequeno
tronco de um zambulho, uma variedade de pereira que não havia. Cresceu, o
zambulho, por que nasceu no rebordo do canado por onde escorriam, por vezes
corriam e com força, as águas da chuva que caiam acima da olga, desde o ponto
mais alto da serra; se tivesse nascido do lado de dentro do muro o ti Miguel
dava-lhe logo umas podoadas ou roçadoiradas e era uma vez um zambulho.
Logo no primeiro ano, o que não era costume arvore
enxertada dar fruto, a pereira do Ernesto deu peras, ou melhor, três dos quatro
ramos deram, mas de tamanho normal; o quarto braço (a ordem dos braços é minha
e nada tem a ver com ordenamento), encheu-se de brio, deu sete peras que, como
a abóbora de que se tem falado, desataram a crescer, a crescer, até ficarem dum
tamanho invulgarmente grande, até se comparadas com as suas irmãs dos outros
ramos.
Foi o autor do enxerto quem tomou a iniciativa de oferecer
o ramo das sete pêras para o ramo de Nossa Senhora do Rosário, como forma de
agradecer as boas graças, concedidas pelo deus das peras, se o houver, à nova
árvore e que a Senhora do Rosário não deixaria de dar o recado. Foram leiloadas
junto ao ramo de Nossa Senhora, não recordando por quem, nem por quanto.
Estamos todos a lembrar-nos de quê? Das abóboras que devia
haver e não houve mais no calço alto da horta dos Prados?! Acertámos! A
pereira, nos anos seguintes, florescia no tempo das flores e recusava-se, ano após
ano, em dar um único fruto, mesmo pequeno que fosse! A pereira foi crescendo, o
Ernesto deixou de ligar e a arvore acabou por ser abafada pelas silvas que à
sua volta deixaram de ser cortadas,
Anos mais tarde, já eu estava em Lisboa, numa das conversas
sobre os Prados, com o meu “Tutor”, o Licínio e a minha cunhada Hermínia, onde
se falou dos estranhos casos das peras e das abóboras e suas estranhas
sequências, o Licínio me contou um outro fenómeno:
“Lembras-te da latada que cobria uma parte do tanque da
bica? Dava uvas lindas todos os anos, cachos grandes que eram aos olhos e de sabor
refinado, um regalo! E o que dá agora? Meia dúzia de cachos, quase só engaços e
bagos quase não têm! É que também houve um ano em que uma das parreiras deu
quatro cachos num só ramo e de tamanho fora do normal! Resolveram oferecer o
ramo dos quatro cachos, ao ramo da Senhora do Rosário! A partir desse ano nunca
mais as parreiras da latada deram cachos, nem sequer como nos anos normais!”
Esta, eu não conhecia, mas foi junta às outras duas
mensagens, de que fui testemunha, e tirei a conclusão de que, ou a Senhora do
Rosário não andava de bem connosco e não agradecia as oferendas, antes nos
punia por as ofertarmos ou então pensa que as demos de má vontade, o que eu não
acredito, por não fazer parte dos princípios da família dar algo de má vontade,
antes pelo contrário, só não davam a camisa…!
Então a conclusão deve ser outra, mesmo assim demasiado
severa por parte da divindade: a Senhora do Rosário sabia que a família não
vivia em plena abundância e tudo o que produzia não era demais para prover às
necessidades e queria, através de exemplos, chamar a atenção para a realidade!
Também esta explicação me não satisfez nem satisfaz, porque do pouco passou a
ser nada, pelo menos nos casos das abóboras, das peras e das uvas, porque
estas, as uvas, nem eram para consumo da casa, por serem sempre divididas pelas
duas famílias nossas parentes e donas dos Prados. Ou seja, se foi castigo
divino acho-o injusto, mesmo que o céu tenha da justiça uma formulação
diferente da dos da Terra.
Não me espantaria muito, mas ainda hoje não sei o que se
passou, lá continuando no segredo dos deuses e que só o divino entenderá.
VII
No ano em que saí da escola – mil novecentos e cinquenta –
andei no rebusco da amêndoa e das uvas e a safra do lagar e no ano seguinte
também. Alguém terá metido uma “cunha” ao meu padrinho, o senhor Cassiano de
Albuquerque ou terá sido este a tomar a iniciativa e lá fui fazer as safras de
cinquenta e cinquenta e um.
O trabalho foi, em ambos os anos, na última fase da moedura
e prensagem. A azeitona era trazida em sacas pelos animais, despejadas nas
tulhas do armazém construído para o efeito, do qual saía em vagoneta sobre
carris, para descarregar directamente num depósito no espaço interior do lagar,
mas fora da área da produção, entrando nesta pelo método do sem-fim de um
transportador que a levava até ao depósito do primeiro moinho, onde era moída e
de seguida metida em grandes seirões de cairo ou juta, como boinas ampliadas,
com cerca de um metro de diâmetro, colocadas a braço por dois homens no estrado
da prensa que espremia aquela massa feita de casca, polpa e caroço da azeitona
que ia escorrendo para a calha que levava aquele liquido, composto de água e
azeite, para o primeiro tanque de depuração pelo mais rudimentar, mas eficaz
método de depuração: a água, por ser mais densa que o azeite, procurava o fundo
do tanque e o azeite, ainda em bruto, seguia para outro tanque para nova operação
de purificação e penso que ainda havia um terceiro. O líquido, aquoso e
pigmentado com o corante natural contido na casca da azeitona, também tinha uma
operação de depuração e depois, por uma calha subterrânea, escorria para o
ribeiro e seguia, sozinho ou acompanhado com água da chuva, quando chovia e
continuava, quando a chuva parava porque o excesso que as terras não absorviam,
procuravam o ponto mais abaixo como manda a lei da gravidade! Antes de haver lei,
já havia gravidade e já chovia e a água, teimosa, podia muito bem ficar em
suspensão, como esteve na nuvem, esperando que o nascesse alguém com a
curiosidade suficiente e o saber necessário para saber como é que estas coisas
se passavam e as passar a Lei que a chuva nunca leu, nem lá no alto, quando era
vapor de água, muito menos depois de cair: por andar sempre com pressa, muitas
vezes passando por cima da mais lenta, como podia parar para ler a Lei! E, pelo
que me consta, a água nunca aprendeu a ler, quer quando escorria pelas ladeiras
e quando era muita nem olhava, cega como sempre foi, atirava-se contra tudo o
que aparecesse pela frente, acabando não poucas vezes, levar arvores, casas e
pessoas! Não devia ser assim?! Pois não, mas quem não aprende em novo
dificilmente o fará em velho e a chuva nasceu quando?! Ninguém sabe nem precisa
saber! Para quê, ela está aí, não a estraguem, porque faz falta e não é só no
lagar, pois não? É como os senhores que andam a tentar descobrir a idade do
Planeta! Mas para quê, ele já nasceu, de parto natural ou cesariana, está aí,
cuidem dele antes que ele morra! O que podiam fazer era combinar com os outros
e mudarem a designação! Se é planeta devia ser plano, mas uma vez que não é,
chamem-lhe…o que soar melhor ao ouvido, embora continue a pensar que nada
mudava se lhe chamassem… esfereta, por exemplo! Ou boleta que está mais na moda,
não a boleta ou bolota, mas a bola! Ui, ui, se está! Mas isto já é uma conversa
da treta que a nada leva também, por isso voltemos ao lagar e ao que nele eu
fazia!
Aqueles seirões, com as cascas e os caroços, triturados e
espremidos, eram levados para um espaço junto do segundo moinho, onde eram
despejadas e batidas para descolar os resíduos mais teimosos, por uma equipa de
mulheres, ara regressarem ao outro espaço do primeiro moinho, reentrando no circuito.
O segundo moinho, um pouco mais pequeno, dava uma segunda moedura naqueles
resíduos de casca e caroço que chegava até ele à pazada, em quantidade definida.
Se fosse superior as grandes rodas de granito bloqueavam.
Na base do “grande alguidar” foi feita uma abertura, para o
bagaço sair quando estivesse moído. Um sistema de alavancas levantava as
grandes rodas, baixava uma lâmina e abria a janela da base do tanque, por
debaixo da qual estava um depósito metálico, com cerca de meio metro cúbico. Toda
esta manobra era feita com o moinho em movimento! Esperava que o conjunto desse
a volta e ao passar era baixada e travada a haste da alavanca. A tal lâmina que
servia de rodo ia arrastando o bagaço que ao passar na abertura ia caindo aos
poucos. Em três ou quatro passagens o tanque ficava limpo! Destrancava a
alavanca e a engrenagem fazia toda a operação inversa: baixava as mós,
levantava a lâmina e fechava a janela, descia as mós e tudo recomeçava.
O bagaço contido no tanque era levado pelos dois homens e
deixavam outro vazio. Estes dois homens, tinham de trocar os depósitos junto
aos cinchos em aço inoxidável e uma base com rodas e já sobre os carris para se
deslocar ao longo do lagar e nos ramais que iam até à prensa.
Os cinchos, com a altura de uns dez ou quinze centímetros,
eram perfurados em todo o seu perímetro por onde sairia o azeite, ao ser
comprimido pela prensa accionada, tal como a primeira, por um sistema
hidráulico com comandos individualizados.
Além dos cinchos, que encaixavam uns nos outros, tinham uma
pilha de tapetes circulares, com diâmetro um pouco inferior ao do interior do
cincho, feitos do mesmo material das grandes boinas, os seirões, que eram
cheias da azeitona acabada de moer. Era colocado o primeiro tapete pelo homem
que estava junto à pilha, do outro lado o outro que de seguida, com uma pá de
cabo curto, ia despejando pazadas que o outro colega espalhava até conter uma
camada previamente calculada em espessura e entrava novo tapete, sempre assim
até estar completado o número de cinchos que seguia para a prensa, de onde
saíra o anteriormente colocado e estava já prensado.
O que acabava de sair da prensa ia pelo carril atá a outro espaço
onde uma equipa de mulheres, munida das tais espadanas em madeira, batia nos
tapetes até que ficassem novamente limpos para entrarem no circuito e o brulho
era ensacado e arrumado sobre um carreta só com estrado, que transportava o
material ensacado para o corredor de entrada, onde as tulhas e o sem-fim
estavam montados e era feita a descarga da azeitona que vinha dos olivais em
sacas que os animais transportavam, duas sacas de cada vez.
O circuito completo e sem pormenores, do azeite, era este:
Varejada ou apanhada à mão para aliviar a oliveira,
recebida no chão por toldos em lona os outro material e a que saltava para fora
dos toldes era apanhada por mulheres e homens, ensacada, e levada por animais
para o lagar;
No lagar era levada, tal como vinha do olival, pelo sem-fim
até ao primeiro moinho, metida nos seirões-boina, prensada e levada para junto
do segundo moinho, voltando a ser moído o bagaço e a seguir prensado pela
segunda vez e os tapetes sacudidos, por mulheres com seus espadas de madeira, ensacado
e pesado o brulho, quase só caroço triturado;
O azeite era embalado em bidões de duzentos litros, em
chapa bem resistente e com dois anéis em ferro para derem deslocados por força
braçal se outra não houvesse e defender o bidão! Saía pela porta Sul do agar; o
brulho ensacado saía pela porta principal, a Norte do lagar.
O azeite era levado para empresas de refinação e o brulho
ia directo ara os animais da aldeia ou para fábricas onde iria ser tratado e
integrado na mistura das rações para animais.
Ainda a minha idade não seria superior a quatro anos já
ouvia esta adivinha:
“Verde foi meu
nascimento e de luto me vesti, para dar a luz ao Mundo mil tormentos padeci!” O
que é?
Tal como a escola, antes de para lá entrar, já a conhecia
em parte, o lagar já não era de todo escuro, pelo menos a parte da trituração e
prensagem.
A safra variava conforme a colheita, alguns anos laborava
dois e até três meses, iniciando-se perto do fim de Novembro. Era neste período
que a curiosidade era maior para os juvenis, sobretudo os que moravam mais
perto do lagar e eu era um deles. Os dias eram pequenos naquela época do ano e
a noite aparecia como um desafio para os miúdos! Para os que trabalhavam não
era tanto, pois como corpo cansado quer descanso e frio pede cama, era o que
faziam, uma horita depois do caldo à volta da lareira, “ala, que se faz tarde”
e lá se enfiavam na cama, com a telha bem quente ou a garrafa da genebra cheia
de água a escaldar e assim se fazia frente à invernia! Mas a tia Amélia aquecia
psicologicamente, divertindo-se com o dito, devia ser geral, mas foi dela que o
ouvi e de mais ninguém:
-Está frio? “ Pum eu e pum tu, aquecemos a cama com os
bafos do cú!”
Nada havia na aldeia para distrair alguém, começando pela
básica falta de energia eléctrica. Como as janelas não eram altas e duma delas
via-se uma boa parte do interior, era a mais disputada e de tal forma que rara
era a noite em que não havia uma troca de murraças e de biqueiradas. Mas eram
zangas de pouca duração e que eram resolvidas com a ameaça, dos mais fracos,
“quando passares à minha porta, vais ver o que acontece!” Não acontecia nada,
era só bazófia da fraqueza e fingir valentia! Tudo ficava resolvido naquele
instante.
Através das janelas, sempre embaciadas pelo lado de fora,
íamo-nos amontoando, limpávamos um bocado da condensação e lá ficávamos a ver o
movimento dos moinhos, das prensas que pareciam não ter movimento, mas na das
seiras escorria um líquido bem escuro e abundante, era a primeira fase e da
outra, pelos pequenos furos dos cinchos escorria uma baba que desenhava regatos
que de seguida apagava e sempre da mesma cor, a do azeite antes de passar pelos
tanques de decantação. Nesta zona, separada do grande gerador por uma parede,
não se via nada; as janelas eram mais altas e os aros e vidraças ficavam ao
nível da parede exterior, sem parapeito para nos apoiarmos.
O gerador e transformador eram accionados por um grande
motor cujo combustível seria o carvão que fazia girar uma roda em ferro
fundido, com mais de metro e meio de diâmetro que, devido ao peso, para sair da
inércia era com a ajuda de dois homens! Um veio ligava à engrenagem do gerador
e o transformador fazia o doseamento para alimentar toda a área de produção,
aquecer as águas para funcionarem as prensas e os tanques de depuração.
Os gases libertados pelo funcionamento do motor faziam um
percurso subterrâneo até ao ribeiro, que passava pelo meio da aldeia, de que já
falámos várias vezes, sempre por motivos diferentes, naturalmente, onde no
paredão foi aberta uma boca de escape e mal atingiam a liberdade ouvia-se um
ruido que traduzido em caracteres ortográficos, seria pan, pan, pan, durante
todas as horas de laboração e por cada pan, saía um anel de fumo que, nos dias
sem vento os anéis eram tão bem feitos como aqueles que os fumadores-artistas
fazem com o fumo, só que os do ribeiro era maiores! Em dias de muito frio os
miúdos regalavam-se a aquecer as mãos com o calor que acompanhava os gases e
que, por falta de informação, nós inalávamos sem pensar no mal que nos faria!
Noites havia, talvez por tudo estar a correr bem no lagar,
em que o meu padrinho, talvez com pena de ver os garotos ao frio, fazia-nos
sinal para entrarmos e o grupo, nunca mais de seis, com o “rabo entre as
pernas” lá entrava para o centro do “Verão” à custa de duas calandras que iam
quase até ao tecto, cilíndricas, com cerca de sessenta centímetros de diâmetro,
alimentadas com brulho ou outro material que ardesse bem.
Ficávamos todos alinhados, encostados à parede de azulejos,
que separa a área do lagar do corredor frio onde era descarregada a azeitona e
pelo sem-fim era levada até ao primeiro moinho.
Não foram muitas as vezes em que nos mandava entrar e nem o
“lugar tínhamos aquecido” e já a verdasca do senhor Cassiano de Albuquerque
funcionava e à verdascada punha na rua a garotada convidada!
Para mim ele era de birras, mas o que devia mesmo suceder
era que algum dos miúdos, provocado pelas mulheres e raparigas que à custa da
espadela e da força dos braços libertava o bagaço dos seirões, umas e outras dos
tapetes da segunda prensagem, saía do lugar onde tinha ficado, violando as
recomendações que o meu padrinho as defendia como leis. Muitas das vezes a
transgressão passava em claro, ou porque ele não via ou porque estaria mais
magnânimo nessa noite.
Comigo sucedeu uma só vez e nunca mais troquei o frio pelo
calor! Ele, numa das vezes que mandou entrar e me não viu, perguntou por que eu
não tinha entrado e os garotos responderam o que sabiam: “ele disse que não
voltava a entrar, porque não quer levar com a verdasca!”. Ao virar costas ainda
comentou: “é mais teimoso que nem um burro…sai à Mãe!”
Uns anos depois, depois de sair da escola, recebi indicações
da tia Amélia de que iria para o lagar, fazer a safra da produção de mil
novecentos e cinquenta! Apresentei-me ao serviço e o senhor Cassiano explicou
qual seria o meu trabalho! Obrigado, meu padrinho, mas eu já tinha aprendido!
- Como aprendeste se nunca cá trabalhaste? Quase a ralhar!
Nas vezes que estive aqui por o padrinho nos mandar entrar,
até levar a primeira verdascada!
Sorriu e virou-me as costas! E mal a laboração começou e
enquanto não chegou a primeira prensagem e as mulheres libertavam das seiras o
bagaço, eu estive a ensaiar a alavanca, ainda com o moinho parado, mas não
houve problema algumas, nem me preocupava muito, o moinho trabalhava sozinho e
se desse mais uma volta ou meia dúzia para além do estabelecido só o bagaço
ficava mais moído.
Na safra de cinquenta e um tive um pequeno acidente, só
nele falando porque me parece ter deixado marcas para sempre! Ao baixar-me para
encher a pá de bagaço, como a proximidade era grande, fui atingido pela
espadela da minha prima Julieta. Eu baixava-me e ao mesmo tempo ela levantava a
sua ferramenta, esta encontrando o meu olho esquerdo. Tive que ir, no dia seguinte
ao doutor Caldeira, mas em casa a tia Amélia preparou uma das suas mezinhas e
fiz pachos com água de rosas!
No mesmo olho, no Verão de cinquenta e um, fui bater uma
soneca debaixo do meu pessegueiro bem enfeitado de maracotões maduros e bem
grandes. Acordei com uma bruta pancada dada por um pêssego que se desprendeu da
árvore, talvez cansado de estar para ali pendurado e já bem maduro,
precisamente no mesmo olho da pancada no lagar! Seria mais grave se o pêssego
não estivesse tão maduro e fosse mais pequeno!
Não voltei ao doutor, embora tivesse surgido um pequeno
derrame. Se no primeiro podia ser considerado acidente de trabalho, o do
pessegueiro seria um acidente de repouso, figura jurídica que gostaria de ver
apreciada pelos mestres do direito.
Ficará para depois ser analisado!
Só para não ficar sem uma explicação a relação minério,
lagar!
No Inverno os charcos congelam e até o ribeiro, aqui no
Seixo já quase sem muros, chega a congelar também e torna penoso um trabalho
que era mais o tempo gasto na lavagem da terra e pedras do que encher o
alguidar, suspendia-se o trabalho de garimpeiro, se fosse usada a linguagem
abrasileirada.
Reis Caçote
2007/dig.09/14
TEMPO POST ESCOLA
II PARTE
II PARTE
VIII
Como a notícia chegou, não soube e agora menos possibilidades teria, se tivesse
grande curiosidade e, de facto, não tenho. Soube eu e muitas outras pessoas da
aldeia, que tinha começado a guerra na Coreia.
Jornais não havia, nem local, nem regional. Só o senhor
Aleixo recebia, com vários dias de atraso, uma ou duas vezes por semana, um dos
diários do Porto, ou o Primeiro de Janeiro ou o Comércio do Porto, ou seriam os
dois, alternadamente, mas não constou que tivesse sido ele ou através dos jornais
que a notícia chegou.
Era mais que certo ter a mensagem chegado via rádio e só
podia ser o do senhor Aleixo ou o do senhor Cassiano, ninguém mais tinha. E
qualquer deles era bem capaz de o ter feito, porque a dependência do senhor
Aleixo do gerador do meu padrinho para recarregar as baterias, não me constava
que a dependência fosse até às notícias, a menos que coincidisse com a recarga,
o que seria demasiada coincidência.
Fosse quem fosse, a verdade é que a notícia chegou e
depressa se espalhou e por tudo o que era conversa tinha por tema a Coreia e os
comentários, não muito lúcidos, mas com alguma pertinência, eram: “então ainda
há tão pouco tempo acabou uma e, do que consta, com grande mortandade, e está
já outra a começar?” Mas não se ia além disto, os pormenores eram poucos, mas o
espanto era grande.
Penso que da Coreia a maioria das pessoas nunca ouvira
falar e na escola era só a geografia de Portugal e das Colónias se falava. E a
história desta guerra, anos mais tarde, eufemisticamente designada por
conflito, não passaria da notícia se ela não tivesse estado na origem de outra,
essa sim bem mais interessante, a do minério que voltaria a ser explorado nas
terras onde o havia, como sucedera na anterior, a II Guerra Mundial.
Tal minério, existia em alguns pontos do grande filão de
seixo que, vindo dos lados da Meda, na margem esquerda do rio Côa, atravessava
o rio, todo o território de Castelo Melhor, algum de Almendra, descia em
direcção ao Douro e subia pela ladeira até se esconder lá no alto, já em terras
de Trás-os-Montes, mas ao certo onde começa e acaba não sei e para o efeito não
tem grande importância.
Em alguns pontos do filão aparece o estanho e o Volfrâmio,
este sim, na II Guerra Mundial deu para alguns fazerem bons negócios, fortunas nunca
ouvi falar, o mais natural é não terem formado, por serem mínimas as
quantidades, uma vez que o volfrâmio é explorado, não sei desde que ano do
seculo XX, por uma empresa estrangeira, mas desde o seculo XIX que está
registada a existência do filão no Distrito de Castelo Branco.
Os dados recolhidos do Google afirmam tratar-se da maior
jazida deste minério conhecida na Europa e a maior do Mundo em túneis e
galerias, referindo mesmo que atingirão os doze mil quilómetros! Parecem-me
muitos quilómetros, mas se consta, com vídeos anexos, é capaz de ser verdade!
Só estranho mais porque o meio de transporte é uma vagoneta que não anda a
grandes velocidades, mas se de avião, que anda pelo ar e a velocidades, são
mais de três horas para chegar à Alemanha e de barco, mesmo depressa como
mandava o grande chefe das guerras coloniais, de Lisboa a Luanda eram oito
dias, não sei como fazem para render os mineiros, Eu verei isso depois, uma vez
que o bichinho da curiosidade está cá dentro a roer.
As minas da Panasqueira, há uns anos, ora fechavam ora
abriam, mas nunca foi por avaria das fechaduras, era quando os mineiros pediam
uma melhoria das condições de vida, através do salário ou de trabalho, mudando
alguns dos modelos aplicados no interior da mina. Sempre apresentaram propostas
concretas, exequíveis, muitas vezes até o custo da operação. Pelos altifalantes
das televisões e dos jornais e da rádio, ameaçavam fechar a mina, que já não
podiam mais viver naquelas condições, com os pulmões atascados de sílica, nas
barracas onde não tinham o ar rarefeito da mina, não podiam parar de correr
mundo, em suma, era tanta a miséria dos accionistas que nada podiam fazer!
Então fechavam. Os donos da guerra lá decidiam fazer mais uma guerra e a mina
reabria, nas mesmas ou piores condições. Os gabinetes continuavam com aquela
humidade e ar carregado de ameaças de mais uns tantos de pulmões
O tal minério, designado por Cheelite, que faz parte dos
componentes do volfrâmio, sendo também conhecido por “pedra-pesada”, tem
diversas aplicações, devido à sua dureza e elevado ponto de fusão; como isto
são dados técnicos, que não adiantam nada às minhas recordações, apenas
ficariam a constar como curiosidade e têm a ver com o interesse suscitado
durante as guerras, é porque às guerras servem e a aplicação mais conhecida é
como endurecedor dos metais. Faz parte do mesmo grupo mineralógico o estanho e
o volfrâmio.
Em Castelo Melhor também houve quem andou a esburacar toda
a encosta Nascente do Seixo, e a tia Ana do Ferreiro terá ganho bom dinheiro e
os negociantes, quase todos de fora, também. De Castelo Melhor só um ou dois
intermediários, que guardavam o minério extraído durante o dia, terão ganho
alguma coisa nesta qualidade.
Mal constou que o minério iria voltar a valer alguns
cobres, logo os aventureiros do costume, quais heróis do oeste americano ou
garimpeiros de todos os Brasis, partiram para as terras do Seixo, sem caravana
porque era logo além, de pá, enxada, ferro e picareta, ranhete e alguidar, em
busca das pedrinhas luzidias, soltas ou ainda agarradas no seixo ou nos pedaços
de xisto, que podiam valer uma fortuna; na guerra anterior chegou a ser paga a
mais de trezentos escudos o quilograma e bastava meio litro das pedrinhas para
pesarem quilo e meio, sendo esta a forma de aferir do grau de pureza exigida
pelos negociantes; se pesasse menos, menos valia.
Não sei bem como tudo se passou, mas a verdade é que num
dia qualquer, não sei a que talhe de foice, talvez por eu reclamar trabalho,
sem cartaz nem manifestação, a tia Amélia, sem grande convicção, me responde,
por que é que não vais para o minério? Dinheiro não estaria contido na sugestão
e muito menos a mim, quando a levei a sério. Se coisas há que nunca tive, ou
pelo menos não recordo de alguma vez ter, foi dinheiro, a não ser na festa do
Anjo e de Nossa Senhora, em que meu padrinho me dava para beber uma limonada e
comer uma gulodice que sempre havia, alguém de longe os vendia; o mesmo se
passava com todos os da minha idade; o dinheiro não circulava nem nas nossas
mãos nem dos mais velhos, uma vez que na nossa utopia da pobreza tudo era por
avença e seria pago em género, um alqueire de trigo para o barbeiro, dois para
a mercearia, mais um para o sapateiro e para o ferreiro e para o ferrador.
Embora a avença variasse conforme os membros da família, não recordo que lá em
casa houvesse avença de uma fanega de trigo ou cevada, ou sejam quatro
alqueires.
Retomando: ir para o minério seria uma forma de ocupação para
todos os que não tinham que fazer em certas épocas do ano.
Sabia que ao minério andavam só homens e sozinho não me
agradava. Fui desafiar o Antoninho, meu companheiro na escola e que fez os
exames nos mesmos dias que eu, o da terceira classe, em Almendra, fomos só os
dois e o da quarta, em Foz Côa, foi mais um, o filho do senhor Júlio da
Estação.
O Antoninho perguntou se podia ir mais um connosco e eu
disse logo que sim, até era bom, porque os adultos gostavam de se divertir às
custas dos miúdos ou rapazes, até se regalavam de ver os garotos a fugir quando
ameaçavam que lhe iam dar uma cresta, que era segurar o garoto, a espernear no
chão, abrirem-lhe a carcela e meter terra lá para dentro.
E, certo dia, lá fomos os três, munidos das ferramentas de
um rebuscador de minério: um alguidar e um ranhete; o alguidar, todos sabem o
que é, as fábricas de plásticos passaram a fazê-los de tamanhos e feitios
diferentes; o ranhete é que não devem saber: é um cabo de uma concha de cozinha,
mas sem concha, aguçado numa das pontas e a outra dobrada em ângulo recto; a
ponta aguçada servia para servir de alavanca ou escavar algumas pedras para
vermos o que estava por debaixo dela, a parte dobrada era sobretudo para
escavar e raspar a terra que iria para dentro do alguidar, apanhada ou raspada
à mão.
Alguidares cheios ou meios, conforme tínhamos ou não visto
pequenas partículas de minério ou com minério parecidas, ao ombro e íamos para
o ribeiro fazer a lavagem, de cócoras, uma das mãos segurava o alguidar de um
lado e a outra no lado oposto, mergulhávamos o alguidar na água, agitávamos
para que tudo o que fosse mais pesado ir para o fundo do alguidar; se estivesse
cheio, vazávamos uma parte no chão e então a lavagem começava: a terra era
levada nos primeiros movimentos de lavagem, movimentos circulares para que as
pedras ficassem libertas e irem sendo removidas à mão; a partir de certa altura
o movimento mudava de circular para o de balancé, as mãos formavam um eixo que
ora se inclinava para os materiais mais leves irem saindo, seguiam-se uns
quantos circulares e o balancé continuava até ficar no fundo o minério, se o
houvesse. Se não houvesse não ficávamos irritados e muito menos uns com os
outros, quando um tinha e outros não. O pó que ficava no fundo do alguidar, e
que seria o minério mais ou menos puro, era arrastado com o dedo indicador e no
final o polegar arrastava o resto para um lenço de assoar que de seguida era
atado com quase nada lá dentro.
Dias havia em que chegávamos a casa de mãos vazias e um ou
outro com uma boa quantidade de minério. Isto sucedia quando os mineiros
adultos, por terem pouca prática estarem em cima do veio de seixos já contendo
minério e eles o não viam, sendo padejado para o aterro juntamente com as
pedras, terra só resíduos provenientes da subida e descida para o buraco
escavado, usando picaretas, barra de ferro temperado nas pontas aguçadas e por
vezes com rebentamentos de dinamite ou pólvora preta, metidos, um ou outra, no
fundo do ou dos furos abertos a uma certa distância do filão, para que não
fosse levado pelos ares, juntamente com as partes de rocha que o impacto projetava.
O uso de dinamite, menos frequente por ser mais caro, se
bem manuseado, era muito menos perigoso do que a pólvora preta; a dinamite era
apenas descida já com o detonador na ponta do pedaço de rastilho e era só
chegar o fogo ao rastilho e sair, mais depressa ou mais devagar por saberem
quanto tempo demorava a arder o fio de pólvora até chegar ao explosivo. Em
termos de eficácia e menor perigo tinha todas as vantagens sobre a pólvora, por
a explosão procurava a resistência e quase não libertava pedras e as projetava
para longe; a pólvora tinha de ser metido o rastilho até ao fundo do buraco,
aberto com escopro e marretas e à custa de força braçal, e atacada com papéis
ou bocados de trapo para que a explosão tivesse algum efeito. A força libertada
pela explosão procurava os pontos mais fracos para se expandir, na dinamite,
como disse já, dirigia-se contra a resistência.
Como havia quase sempre várias equipas de “toupeiras” a
esburacar naquele espaço relativamente pequeno, tinham de ser avisados para que
se protegessem e para tal um dos mineiros quando chegava à beira do buraco,
gritava:
“ Atenção, sai
fogo na mina tal” era dito o nome do chefe da equipa.
Viam-se uns a procurar esconderijo em buracos abandonados,
eram os que estavam no começo e ainda à superfície, os outros recolhiam-se bem
dentro do buraco até que a explosão ou explosões terminassem. No tempo que lá
andei e também me escondia, não foi alguém atingido pelas pedras projetadas.
Como não tínhamos patrões, geríamos o tempo da forma como
entendíamos, mas de facto cumpríamos o horário como se fossemos assalariados,
com uma só paragem por volta do meio-dia, para comermos a bucha: pão com
azeitonas ou figos secos, raramente uma fatia de toucinho da salgadeira,
reserva alimentar que não durava o ano inteiro, e num dia que era quase de
festa, tinha uma isca de bacalhau seco e cru.
Com a experiência que fomos ganhando e alguma intuição a
ajudar, dias houve em que nós rebuscávamos mais minério do que algumas equipas
de adultos que perseguiam os filões. À custa de muito esforço, muito perigo,
mais pelos desabamentos de pedras ou quedas, sobretudo quando chovia, do que
com os explosivos.
Na esperança de que, escavando meio metro mais abaixo,
aparecesse a tal bolsa de minério que compensasse todo o esforço anterior. Não
aparecia e uma semana de esperança se passava e a esperança acabava: o buraco
era abandonado e a equipa lá ia encosta abaixo ou encosta acima, ferramenta às
costas, à procura de um espaço que não estivesse demarcado e depois, de ferro
em punho, iam sondando até sentirem e ouvirem um ruido diferente e era nesse
sítio que a enxada entrava para limpar a terra e ver se o que ali estava agora
a descoberto valia a pena investir esforço e demarcar, com quatro paus
espetados no chão, o terreno de exploração.
Não era raro virem outros tentar a sua sorte nos buracos
abandonados, por vezes acertavam, mas a maioria delas o buraco era novamente
abandonado.
A minha intuição ganhou alguma fiabilidade e começou a ser
comentada entre os adultos que, directamente ou por meias palavras me tentavam
aliciar para com eles me associar. E algumas vezes o fiz, numas com melhores
resultados outras com menos, mas o abandono do filão era sempre por decisão
minha.
Em duas sociedades tivemos que usar explosivos e só anos
mais tarde, quando em Sacavém, no RAP 1-Regimento de Artilharia Pesada número
um, fiz a especialidade em Munições de Artilharia, é que avaliei os perigos que
eu e todos os que os usavam corremos e qua a sorte nos protegeu. Só um ou dois
ficaram com marcas de queimaduras, um nas mãos e outro nas mãos e rosto.
Mas do que gostava mesmo era do grupo do rebusco.
Dávamo-nos bem a tal ponto que, a certa altura, já armados em garimpeiros,
começámos a aceitar dos adultos um cigarrito e algum tempo depois, já os três
fumávamos um maço de Definitivos por dia. Tenho a ideia de que o acordo era
cada um de nós, de três em três dias, levar um maço de cigarros, mas a dúvida
que sempre tive e hoje persiste, é de que nunca tive dinheiro algum, excepto
uma vez em que pedi dinheiro para comprar um realejo, instrumento que pouco
tempo durou, perdido no regresso de uma festa em Almendra, já bem de noite e
quase em Castelo Melhor, no sitio conhecido por Farrão-Barrão e que gozava da
fama de ali se encontrar o medo que deu o nome ao local: o medo do
Farrão-Barrão.
Ainda hoje persiste a dúvida de ter eu andado a fumar por
conta dos outros dois. Mas agora é tarde para prestar contas; só eu e o
Antoninho restamos e sempre que vou a Castelo Melhor levo a intenção de lhe perguntar,
mas não o encontro ou me não lembro, talvez por há muitos anos ter deixado de
fumar.
Tendo durado pouco tempo a tal gaita-de-beiços, ainda
aprendi a tocar qualquer coisa, nomeadamente a música daquele, Vira muito
conhecido na época: “Tenho um amor em “Biana” e outro em Ponte de Lima”… e um
acompanhamento de fado, que ainda há bem pouco tempo ouvi, na televisão, um
grupo folclórico não sei de que localidade, a tocar tal música.
O treino e a tal intuição de vive comigo desde não sei
quando eram tantos que bastava pegar numa pedra, tomar-lhe o peso e ficar com a
certeza de ter ou não ter minério integrado.
A estranheza para alguns familiares de eu distinguir se
havia ou não minério que entre as duas guerras, a II Mundial e a da Coreia,
indo para casa, vi no chão, em frente da casa da tia
Idete, uma pedra com um brilho diferente das outras e apanhei-a, ficando muito
admirado pelo peso da pedra e foi meu Pai que disse ser minério e devia ser
puro. Como curiosidade foi guardada, acabando por ser vendida com um lote de
minério, de vários dias ou semanas de rebusco. Pesava mais de cento e cinquenta
gramas.
E assim terá terminado esta aventura-experiência do
minério. Algum tempo depois de eu ter ido para Lisboa, a exploração foi
concessionada a uma empresa que em vez de procurar o filão ou filões, com as
retroescavadoras escavava a eito a encosta, outras trituravam as pedras e uma
outra lavava tudo, como nós fazíamos com os alguidares, ficando o minério no
fundo e as pedras e terra eram vomitadas num aterro que ia já a chegar ao
ribeiro, quando a empresa levantou voo para outro local.
A Scheelite terá ido fazer fortuna para outras bandas.
Reis Caçote
2002/dig.09/14
O CASTELO DA LENDA E TESTEMUNHA SILENCIOSA DA VIDA
TOMATAS E TOMATOS ERAM DIFERENTES! ESTA SERIA A DE MUXAGATA
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