terça-feira, 5 de dezembro de 2017

TEMPO DE ESCOLA E VISITA PASCAL


A FASE POR QUE TODOS PASSAMOS E MUITOS ESQUECERAM, OU DELA TÊM RECORDAÇÕES ESBATIDAS, PELO TEMPO E PELA PERDA NATURAL DA MEMÓRIA! NÃO TIVE, AINDA, ALGUM DESSES PROBLEMAS:

- A ESCOLA DITA PRIMÁRIA, NORMAL E

   A VISITA PASCAL DE SUA EXCELÊNCIA REVERENDISSIMA, O SENHOR BISPO DA DIOCESE!

   TEMPO DE ESCOLA
   e                                VISITA PASCAL


                                     I


O edifício da escola, alguns pormenores do interior, as cantorias diversas e as algazarras dos recreios, já não eram novidade para mim. Tinha nascido e morado a cinquenta metros de distância, daquela que viria a ser a minha escola, a dos rapazes; a das raparigas ficava a poente da aldeia, junto à eira do ti Neto, quase nova, mandada construir pela dona Maria, esposa do senhor Aníbal Soares, o grande industrial e irmã do meu padrinho, o senhor Cassiano de Albuquerque.
A construção da escola dos rapazes era já muito antiga, vinha já do século XIX ou do inicio do XX, de arquitetura simples, recentemente alterada para funcionar como sede da Junta de Freguesia.
Construída no que era o perímetro Sul da aldeia, num espaço  quase plano, que interrompeu o declive do monte de Santa Barbara, em terreno que, seria comum ou da casa grande, dedução que tem a ver com a boca do esgoto, das águas residuais da cozinha, que ali chegavam por um sistema de drenagem subterrâneo e que alí, a vinte metros da escola, um regalo para os suínos, então em liberdade, retoiçavam e se esfregavam na lama nauseabunda! A certa altura foi fechada a entrada da saída e assim nos livrámos daquele perfume que tanto agradava aos suínos!
A escola das raparigas, já a funcionar quando eu iniciei a minha formação académica, ficava no na periferia da aldeia, a Poente, junto à eira do ti Neto e fora mandada contruir e custeadas as despesas, pela senhora dona Maria, irmã do me padrinho e parente por afinidade, por ter casado com uma das filhas da irmã de meu avô materno e casada com o maior industrial daquela região, o senhor Aníbal Soares, proprietário da Quinta do Custódio, não perguntem o porquê do nome, eu também nunca tive curiosidade para tanto! Construiu um palacete onde já existiria a casa do anterior proprietário; foi comprando parcelas de terreno que confinavam com as suas, mandou plantar oliveiras nos espaços que seriam os mais adequados e vinha nos restantes! O piso térreo do palacete era onde tratava dos vinhos, de alta qualidade, fora da hoje Região Demarcada do Douro Superior.
Resumindo: o agricultor e industrial, Aníbal Soares, tinha fábricas ou lagares em várias regiões do País, uma fábrica de Massas Alimentícias, a Fábrica de Massas Vouga, por laborar em Pessegueiro do Vouga e que tinham, como tema promocional “ O noma das Massas Vouga chega a toda a parte, as massas é que não chegam, porque não chegam!” Uma outra de sabão, em Barcelos. Era, naquela época um grupo de industrias que transformavam as matérias-primas, os cereais e a azeitona, em produtos que o mercado necessitava! Para continuar a introduzir valor acrescentado, instalou na Ponte da Pedra, Gueifães, Maia, uma de refinação de azeite e óleo, com grande projeção no mercado, com a sigla de “AAA” três As, que veio a falir, depois de o senhor Aníbal ter falecido e o único filho, licenciado em economia, deve ter achado que era altura de viver e não como um “sacerdócio” formato que era para o Pai.
Estava na Direção da Companhia de Seguros “ Soberana” que veio a ter o mesmo destino das empresas fundadas pelo progenitor!
Estava a falar da escola das raparigas, mandada construir pela senhora dona Maria, que bem precisavam, pois a anterior era uma adaptação duma habitação, junto ao ribeiro que atravessa a aldeia, na altura as águas das chuvas corriam a céu aberto; depois do Vinte e Cinco de Abril, já com outra gente à frente da Junta, eleitos pelo Povo, veio a ser coberto e transformado em esgoto, ao mesmo tempo que chegava água canalizada e eletricidade a quase todas as casas; ou mesmo a todas as habitadas!



                                                           II


Viradas a Sul o edifício tinha a porta, a cerca de um metro acima do chão, chegando-se a ela, para entrar, subindo seis ou sete degraus e para sair não eram os mesmos degraus para todos, já que os mais velhos saltavam-nos e de vez em quando uma aterragem forçada, na terra batida no verão ou na lama, no Inverno! De cada lado da porta tinha uma janela, envidraçada, por onde a luz entrava, sendo mesmo a única forma de iluminação, igual à que todos tinham, eletricidade não havia e só duas casas se podiam iluminar com a ajuda de pequenos geradores onde carregavam baterias: o senhor Cassiano Albuquerque e o senhor Aleixo.
A Nascente e Poente tinha também duas janelas de cada lado, envidraçadas e com umas cortinas com renda a rematar, tudo com aspeto de artesanal, trabalho das tias da dona Graça, com quem ela vivia. Era por estas, as pouco acima do solo, que os mais pequenos, ainda sem idade para a frequentar, espreitavam e ouviam, sobretudo a canção da tabuada! Eram as classes todas no mesmo espaço, não seria a melhor pedagogia, mas era o que havia! Os da terceira e quarta classes, mesmo sem querer, iam revendo a matéria que eles tinham já aprendido, pelo mesmo método; e os mais pequenos, desatentos por natureza, quando ouviam alguma maldade da história ou o nome de países ou cidades que lhes soavam bem ao ouvido, ficavam logo com mais atenção ao que viria mais tarde e esqueciam as vogais que era o que deviam fixar! Lá vinha a voz da dona Graça a chamar a atenção aos meninos da primeira fila.
E a rotina voltava, desde Outubro até ao Natal e depois até à Páscoa e a última etapa terminava em Junho: os mais pequenos, que não tinham exames, lá se entretinham a brincar com brinquedos feitos por eles ou pelos pais, iam aos ninhos, sobretudo das rolas, para os tentar apanhar e engaiolar!
Os da terceira e quarta-classes, poucos, lá esperavam pelo dia dos exames, que não era muito, pois no fim de Junho tudo ficava arrumada, com aprovações ou reprovações.
Tenho estado a escrever como se estivesse ainda na fase anterior, porque também a vivi, mas é altura para ir mesmo à escola.
Como o edifício assentava sobre um terreno desnivelado, talvez para conservar o sobrado, a caixa de ar formada tinha uma abertura retangular por debaixo de cada janela, que era aproveitado e bem, por tudo o que era galináceo, gatos, cães e até alguns porcos mais atrevidos e que só entravam deitados! A outra bicharada tal como entrava, saía, sem dificuldade, mas alguns porcos, para serem resgatados, era uma trabalheira; primeiro grunhiam com fome, porque por debaixo da escola, na caixa de ar, havia espaço, mas que trincar ou debicar, isso não havia, a não ser um ovo, de vez em quando, quando uma ou outra galinha adotou um dos cantos da cave para ali fazer ninho e certamente chocar e criar os filhotes! As galinhas, talvez pela sua postura, nunca tiveram fama de espertas, as raposas sim, eram matreiras, e não pensaram, as galinhas, que aquele espaço era bom como recreio, mas as companhias eram de fraca sensibilidade e, mal a galinha virava o rabo, vinha logo outra que se apaparicava com um ovo ainda quente, acabado de ser posto!
Alguns dos habitantes chegavam a ir visitar-nos à sala das artes e do coral! Enquanto não foram vistos, devem ter-se divertido mas um deles foi visto por um dos miúdos que logo denunciou à professora. Foi um gesto de cuidado, mas os ratos passaram a ter uma vida de ratos, por que a dona Graça meteu trigo roxo em cada canto e quando os víamos estavam já a mirrar e a perfumar a sala de um perfume que em nada se parecia com o das amendoeiras em flor!
Era o tempo da liberdade da bicharada que só durou até ser instalado um posto da GNR em Almendra e uma das primeiras medidas foi a de interromper a liberdade dos animais! Nem um único queriam ver na rua! E, assim, os galos, galinhas, patos e perus, bicharada de penas, foi encafuada nos galinheiros e os porcos para as cortelhas ou pocilgas, como queiram! Contrariados, os animais e os donos, mas lá se foram habituando.
Mas as liberdades ou privação delas, não foi só para a bicharada! Se o Sol quando nasce é para todos as coisas não podem ser só para os mais indefesos! Isso seria uma injustiça! Foi resolvido; mal, mas foi!
Os rapazolas, no final da adolescência, sem namoradas, ali não namorava quem queria, mas quem a família deixava, com alguma inveja de um ou outro já namorar ou apenas para se divertirem, de noite e melhor quando lua não havia, arranjaram uma forma de dar noticias do que se ia passando na aldeia, por via oral, à distância, em dois ou três pontos altos, mais escondidos, travavam um diálogo com a voz disfarçada, por lá conhecida por “grasnar”
Rádios não havia e a Lusa ainda nem pensada estava e se já existisse não negociaria a venda de noticias a alcoviteiros noturnos, nem a estes interessavam, apenas as locais lhes interessavam. As queixas dos e das visadas chegaram a Almendra e a Guarda fez umas rusgas noturnas à caça dos grasnadores.
Correram mal, ao principio. Enquanto os grasnadores conheciam bem os caminhos, a Guarda nem de dia os conhecia, acabando por um deles se estatelar à porta de um dos perseguidos, quando este entrou em casa e o Guarda deve ter tropeçado num dos calhaus que havia à porta de quase toda a gente, soltos ou ainda agarrados ao maciço que os criou! Numa outra rusga o fugitivo atravessou pela ponte por onde todos passavam, junto à forja e virou para o lado da escola, em correria! O guarda, usando a tática do atalho, tentou encurtar caminho e filá-lo; não lhe passou pela ideia, mesmo que já lá tivesse passado de dia, que o atalho tinha o ribeiro de permeio e o Guarda não encurtou caminho, caiu no ribeiro e o fugitivo continuou a fuga, mas agora a rir do contratempo do perseguidor armado. Aos poucos também esta atividade noturna da má língua, terminou.


                                                           III


Pelas contas feitas devo ter começado no ano em que a II Grande Guerra terminara; tinha completado os seis anos em Março e em Maio, cansados, decidiram acabar com o que não devia ter começado!
De posse dos apetrechos, dentro duma taleiga: um caderno de linhas estreitas, um lápis, uma loisa pequena, um ponteiro de loisa também e o livro de leitura da primeira classe!
Embora conhecesse o ambiente espreitado, quando a coisa passou a ser a valer, devo ter achado aquilo um pouco estranho; havia coisas que do espreitar se não viam!
Lá encontrei as carteiras que não vira da rua, a secretária da dona Graça e atrás dela, na parede, uma foto com moldura de um militar, do outro lado a de um senhor de nariz afilado, com igual moldura e a meio, por cima do quadro onde iam sendo chamados para escrever ou fazer contas, um crucifixo, quase do tamanho dos seus companheiros emoldurados!
Do lado esquerdo da mesa da dona Graça estava pendurado um mapa, com várias cores, de Portugal e do lado direito, no canto, uma espécie de vitrina, com algumas pedras, as figuras geométricas em madeira e mesmo junto do quadro um pequeno móvel, a que chamavam a caixa métrica, onde estavam guardados os pesos e os acessórios para o desenho: um compasso grande, com um pedaço de giz numa das pontas e um ferrão afiado, do outro lado; um triangulo em madeira, uma régua graduada e uma peça do feitio de meia lua, a que chamavam o transferidor! Confesso que durante muito tempo não soube da utilidade do tal transferidor e muito menos o que transferia, nem podia saber, pois não sabia o que significava transferir e ainda bem!
As fotografias deviam estar por ali há muito tempo, estavam a ficar quase sem as duas cores bem definidas; fui sabendo que o militar era o general Carmona e o outro era o doutor Salazar, aos quais e ao Cristo na Cruz, rezávamos uma ave Maria e um Padre Nosso!
Outra novidade era ver os que ainda não tinham idade para entrar, vistos por quem tinha feito o mesmo. Era tudo igual, eu não fazia falta nenhuma, nem nenhum dos três ou quatro que passaram de fora para dentro! As disputas pelo lugar e a distribuição do tempo de cada um espreitar continuava a dar confusão e lá tinha a dona Graça de ir espantar os curiosos que estavam a perturbar a turma!
A caixa de ar da escola era outro ponto de atração para os miúdos a tentar apanhar os galináceos e estes a cacarejar e a fugir e lá tinha a senhora professora que por fim à guerra nos baixos espaços.
Alguns, mais crescidos, tentavam espreitar pelas janelas de Poente, nas costas da dona Graça. Não se apercebia do curioso de imediato, mas, pouco tempo depois, apercebia-se pelo sorriso dos da primeira fila e lá tinha que ir espantar o atrevido, de cana em punho, mas nunca bateu com ela a nenhum garoto! Nem convinha, já sabia que mais ano menos ano o teria entre as quatro paredes da sala!
Se olharmos estes pequenos incidentes por outra perspetiva, íamos achar que, naquele tempo, a escola estava bem integrada na comunidade e o saber estava ali mesmo ao nível do rés do chão, acessível a todos, dos mais novos aos mais velhos, saindo para a rua pelas janelas abertas no tempo quente e pelas frinchas no mais frio.


                                                           IV


No inicio do ano letivo de quarenta e cinco com a guerra em pausa, entrei eu e mais dois para a guerra das contas e das leituras, acompanhados pela nossa já conhecida, dona Maria da Graça Pires Rodrigues que já antes ensinara os meus irmãos antes de mim. O mais velho acho que ainda foi um dos professores, na altura já reformado.
O que diriam hoje, professores e encarregados de educação, com tantas e por certo justas exigências, pedagógicas e sociais, duma sala de aula com doze carteiras duplas, com alunos nas quatro classes, todos a trabalhar em simultâneo: ora cantando a tabuada, ora lendo em voz alta para treinar a oralidade e os restantes calados, era a regra, pois logo de seguida, os papéis se invertiam, os da terceira e quarta classes, à vez, iam fazer contas no quadro para de seguida irem para o mapa a explicar, sem olhar para o mapa, quais os rios principais e afluentes, ou as linhas de caminho-de-ferro e quais as estações e ramais! Nem as serras escapavam, tudo tinha que ser decorado, por que a dona Graça teria novos no ano seguinte e mais tempo não podia acompanhar os atrasados.
Geria a orquestra enquanto dela fazíamos parte, mas o futuro era para ser feito a solo, sem Graças e algumas desgraças. No mesmo dia todos tinham que provar se estavam a aproveitar ou não e para isso os que antes estiveram calados enquanto outros cantavam, passaram a ser eles a cantar e calavam os cantadores.
No inicio de cada ano era feita uma revisão da matéria dada no ano anterior e visionados os trabalhos que teriam de fazer durante as férias grandes. Nem sempre era aprendida.
Só não me espanta hoje que não houvesse um único licenciado, a aldeia ficava nos confins do mundo e acesso a escolas e liceus não era nada fácil, pois como já disse antes, o mais próximo era na sede do distrito, a Guarda, a cerca de oitenta quilómetros e os transportes eram uma tristeza. Para chegar a Almendra, a pé ou a cavalo, era sempre perto de uma hora e para Foz Côa cerca de duas horas.
Só os filhos de três ou quatro famílias foram para o Porto, para fazerem o Liceu ou para escolas da Igreja Católica, por ser mais acessível à bolsa dos pais.
Se a memória me não trai, o primeiro licenciado foi o meu primo Reinaldo, tendo começado no Porto e acabado em Lisboa, já casado, a sua licenciatura em Direito. O irmão mais velho, o primo Álvaro ficou-se pelo magistério Primário. Devia ter ido para as Artes, pois era um retratista genial.
Voltando ao ano inicial e seguintes da aprendizagem, para dizer que terá coincidido com a passagem de outros miúdos, alguns mais velhos e já na terceira e quarta classes, focando só aqueles que, por motivos nem sempre os mais brilhantes, deixara um registo que terá marcado todo o grupo, a uns mais que outros: o Teófilo, o Aníbal “artilheiro, alcunha”, o Aristides, o Fernando Aleixo e o Aníbal “de Foz Coa”, assim o tratávamos.
Enquanto que o Teófilo era alto e robusto, o Aníbal” artilheiro” era baixio e franzino, de grande só tinha os dentes, umas favolas enormes que estavam sempre à vista, talvez por lhe não caberem na boca.
Devem ter-se apercebido, de certeza um ou dois anos antes de eu entrar, que um dos rapazes era muito tímido e incapaz de se defender: fizeram dele, gato-sapato, desde vitima física durante os recreios, até vitima de provocações sexuais durante a aula, quando a dona Graça não estava, ou por que ir a casa por falta de casa de banho na escola – na escola e na quase totalidade das casas doa aldeia.
O domínio que exerciam sobre a vitima principal, ultrapassava em muito a sua ténue capacidade de resistência, chegando ao ponto de o convencerem, sob ameaças que não se ouviam, a masturbar dois deles, colocado entre eles e quase sempre no canto nascente, encostados à parede, sendo o espaço mais discreto de toda a sala em relação aos olhares do exterior.
Eram as ameaças de agressão que levavam a vitima a ceder às exigências dos mais velhos e até a não se rebelar com os atrevimentos dos mais pequenos que se esfregavam nele quando com ele cruzavam. Para a maioria dos miúdos o que faziam não era mais do que copiar a atitude dos mais velhos: a esta distância temporal, aqueles gestos eram um ritual iniciático duma sexualidade em que só os mais velhos entenderão o significado na sua expressão total, o que não era o caso de qualquer dos alunos da aula; quando muito, um ou outro dos mais velhos, teriam uma noção mínima, inventada ou por ouvirem falar.
O Teófilo era o agitador principal, talvez por ser o mais velho, líder do grupo, o mais robusto e, provavelmente aquele em qua a sexualidade mais cedo despontou, tinha já as suas fantasias sexuais. Uma das que melhor recordo, a de estar convencido e tentar  convencer alguns dos mais novos, de que poderiam ver a dona Graça a despir-se em sua casa, a partir da torre da igreja; a casa da família da professora ficava quase em frente da igreja, uma moradia de dois pisos e águas-furtadas, sendo o segundo piso ao nível dos sinos, sendo as suas duas tias quem tocava as trindades, ao fim do dia, a partir da varanda, movendo a corda que ligava o badalo ao rebordo da varanda. Era em arame e só deixou de o ser quando, durante uma das muitas trovoadas que todos os anos sucediam, um dos raios escolheu o galo que encimava o suporte, também em metal, e que girava com o vento, indicando a direção do ar em movimento: era o catavento e tinha mesmo um texto, cujo autor não recordo, dedicado aos galos das torres, a que deu o título “O Galo do Campanário” de que voltarei a falar mais adiante.
Dizia que o arame que ligava o badalo do sino maior à varanda, conduziu para dentro da casa da dona Graça, o relâmpago que atingiu o galo do campanário, desequilibrou-se, escorregou por um dos lados da pirâmide quadrangular e, sem a vara dos equilibristas, percorreu o arame e, sem pedir licença, entrou pela casa dentro e como caiu, desvairado, este filho das nuvens em guerra aberta não sei a disputar o quê, deve ter sido atraído por uma das paredes da sala e aí terminou aquela louca correria. E, assim, o arame foi substituído por uma corda não havendo perturbação no toque das Trindades.
A casa habitada pela dona Graça e família era uma das três, que eu achava mais bonitas; as outras eram a da minha tia avó, a senhora Amélia Caçote e a do senhor Abel. A arquitetura não teria nada de especial, mas as varandas e sobretudo os beirais do telhado, distantes da parede e adornados com peças de madeira trabalhada, a imitarem rendas com pingentes. Do que vim a aprender mais tarde, eram influências das artes brasileiras, nomeadamente no Estado de São Paulo, trazidas pelos emigrantes do final do seculo XIX como a moda trazida, de França e Alemanha, pelos que, às centenas de milhares, procuraram o primeiro dos países, sobretudo na década de sessenta do século XX uns para procurar uma vida melhor e outros para escaparem às guerras coloniais! Brincava-se na época com os que, emigrados em França, quando tinham condições para fazer a sua casa em Portugal, o que queriam era: uma casa à maison, com janelas à fenêtre!


                                                           V


Nas várias idas à torre da igreja, com ou sem a liderança do Teo, não constou que alguma vez, algum miúdo, tivesse assistido ao desnudar da dona Graça, mas as idas seletivas à torre foram o percurso mais usado durante algum tempo e foi também a sala de aula para a iniciação do onanismo e comparação dos diversos tamanhos de pénis e seu comportamento: “ o teu nem fio faz! Dizia o mais velho para o mais pequeno, cansado do esforço despendido, durante mais uma tentativa de obter o que não tinha!
Não seria, pela certa, aquela escola, o exemplo único destes comportamentos; o que talvez não tivesse sucedido antes, nem depois, foi o juntar-se, no mesmo tempo e espaço, a voluntariedade e a apatia, a arrogância e o medo, nas suas diversas demonstrações.
Foi o Teófilo também o pioneiro noutra área: a das aparições!
A catequese era uma disciplina que não fazia parte do programa escolar, mas nenhum estava dispensado, nem se furtava; a dona Graça e toda a família, assim como a maior parte da população da aldeia, eram católicos, praticantes, pelo menos a missa ao domingo.
Era, mesmo para os que de fé menos consistente, o local de encontro, um dia por semana, para todos os que, de segunda a sábado, partiam muito antes de o Sol nascer para as terras ou hortas e delas regressavam, já o Sol se despedira há muito.
Os filhos, sobretudo os que andavam na escola, além da missa ao domingo, tinham que aprender o catecismo e participarem nos atos litúrgicos, permitidos às suas idades. Havia formalidades a cumprir, preparatórias para o ato mais solene, o da comunhão; e uma vez por ano, no dia treze de Maio, assistir pela rádio às celebrações em Fátima, da primeira das aparições da Senhora do Rosário, aos três pastorinhos.
Rádios, como já escrevi antes, só havia dois: o do senhor Cassiano de Albuquerque e o do senhor Aleixo, reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela-Angola. A família Aleixo, de formação católica e menos “aristocrática” que a Albuquerque, era a que franqueava a sua sala para os rapazes irem cumprir o dever de assistir às celebrações do treze de Maio; a família Albuquerque acolhia as raparigas.
O rádio do senhor Aleixo, trabalhando com bateria carregada no pequeno gerador do meu padrinho, ouvia-se mal, a sala onde todos nos sentávamos no chão, era propositadamente escurecida, para que as velas iluminassem bem a imagem da Virgem, a quem rezávamos pela Paz no Mundo e terminava a nossa peregrinação com o adeus à Virgem, na Cova da Iria, que não víamos, mas também acenávamos com uns lenços brancos que deviam fazer parte do enxoval da família Aleixo.
O ambiente criado tinha uma densidade mística que em nada ajudava os rapazes a sentirem-se bem e os da fila da frente, os da primeira classe, como eu, pelo menos dois, foram atacados pelo sono e cambaleavam até que uma cotovelada os interrompia e retomavam a posição de acordados, para logo voltarem para os braços de Morfeu, mais cativantes e que aquele silêncio e obscuridade mais os empurrava, E lá voltavam a cabecear até que as cerimónias terminavam e o locutor dava a emissão por terminada.
Que alivio, dizia um deles. Que soneira me deu, comentava o outro, e cada um ia para sua casa, de tarde não havia aulas, como recompensa.


                                                           VI


Uns dias depois das celebrações, não recordo quantos nem o ano, mas o Teófilo andava na terceira classe, ocupava o lugar da terceira fila, mesmo junto da janela virada a Sul, de onde se viam, as figueiras do senhor Afonsinho e logo a seguir as oliveiras da tia Badona e um bom bocado de céu, azul alguns dias e carregado de nuvens outros. Só um bocadinho da encosta do castelo se via.
Foi nesse pedaço de céu que, certo dia, o Teófilo terá visto a Senhora do Rosário, sobre uma nuvem luminosa, afirmava ele, como aquela dos postais que a maioria das famílias tinha em casa. Agitado, prostrado de joelhos e de mãos postas, virado para a janela, foi nesta postura que a dona Graça o interpelou do porquê daquela atitude e o Teo rezava a ave-maria em voz alta, perante o pasmo e alguma inveja do resto da turma! Até a dona Graça ficou espantada e ao mesmo tempo com receio de que o Teo estivesse a mentir, mas a desejar, interiormente, que aquilo sucedesse na sua sala de aula!
Nós estranhávamos que ele tivesse visto e nós não, por mais que arregalássemos os olhos para tentar ver mais longe, mesmo com aquela ajuda da mão a servir de pala! Se a dona Graça não via e que era a que melhor devia ver, como professora, como queríamos nós  ver?!
O Teófilo foi sujeito a um rigoroso interrogatório pela dona Graça, pedindo esclarecimentos sobre alguns pormenores, mas o Teo respondia com a convicção  bastante, adiando a continuação para outro dia, mas desejosa que o seu aluno fosse por Deus escolhido como protagonista de tal epifania.
Talvez, devido aos horrores da guerra, que naquele mês tinha acabado, as questões da fé estavam numa fase muito benéfica, tendo aparecido, tempos depois, em Alfândega da Fé, uma Amélia da Natividade, que Cristo estigmatizou, durante o sono, com uma cruz a meio da testa e rapidamente foi pelo povo elevada à condição de santidade, tendo o seu nome e fotografia percorrido a região e, não sei até que ponto, terá chegado ao País, levada esta foto pelos correios de Deus e que em minha casa veio ocupar um pequeno espaço, do tamanho da fotografia, tipo passe, por baixo do pequeno espelho da sala, onde antes estivera, por pouco tempo, um gavião mal embalsamado, morto pelo meu tio, José Caçote e que começou a empestar a casa de cheiro de ave mal matada e pior embalsamada.
A aparição do Teófilo foi julgada, em primeira instância, pelo senhor padre, chegou mesmo à instância seguinte, tendo como juiz o senhor bispo da Guarda, que terá absolvido o Teo, sem milagre, mas que não convenceu toda a gente.
O Teo terá acabado por confessar que devia ter sido ilusão sua, mas gente havia a dizer que o Teo só desdisse por a  tanto ser obrigado.
Com a santa de Alfandega da Fé, lá para norte do Rio Douro, acabou por suceder o mesmo, vindo mais tarde a saber-se que ela fazia a chaga, embebendo uma cruz em água forte que depois colocava na testa.
Também não convenceu todos e o meu amigo sem abrigo e mestre de guitarra e farpa envenenada, o ti Vilela, à boca pequena, acabou por dizer que a igreja não aceitava concorrência às aparições da Cova da Iria.
No tempo que mediou entre a afirmação e o desmentido, o caso deu a Alfandega da Fé uma tal importância que dificilmente se repetirá: eram peregrinações e penitências todos os dias, mesmo sem os meios  de transporte que hoje existem, desde ligeiros a pesados, até apetece lá ir.
Estas duas mal sucedidas, ou mal acabadas aparições serviram, um ou dois anos depois, para eu próprio andar aterrorizado co medo, por pensar ter visto um sinal dos Céus durante a missa e não o poder revelar, evitando ser sujeito aos interrogatórios como o Teo foi e ter de negar tudo a seguir.
Os miúdos da escola assistiam à missa no espaço que vai da nave da igreja até à escada do altar mor, juntamente com alguns homens e mulheres que eram os principais intervenientes nas orações em voz alta e os cânticos litúrgicos; um degrau acima da nave, o chão era em granito e ia até ao primeiro degrau do lugar reservado ao oficiante e o seu ajudante, ou sacristão.
Durante uma das missas, no momento da elevação da sagrada óstea, com a luz que entrava pela janela do lado do castelo, bem acima das cabeças das pessoas, estava eu junto da porta de entrada para a sacristia, com outros miúdos, reparei que a óstea, elevada aos céus e mostrada aos presentes tinha, bem desenhada uma cruz, quase do tamanho da óstea, que eu me convenci ser o único que estava a ter tal visão! E só um ou dois anos depois, quando eu e o Acácio nos encontrámos na mesma classe, por ter repetido a terceira, como já ficou registado e porquê, era o Acácio ajudante do senhor padre nas missas, e eu lhe contei a visão e os meus medos, sendo ele quem me tranquilizou, dizendo que o molde onde as ósteas eram moldadas, tinha uma cruz gravada e todas as ósteas saiam iguais, com a cruz gravada na massa de que eram feitas.
Que alivio eu senti a partir desse momento!


                                                           VII


A dona Maria da Graça Pires Rodrigues, não sendo natural de Castelo Melhor, veio ali fixar-se com a família, mãe e tios, numa das casas mais bonitas da freguesia, quer de traço, quer de localização privilegiada.
A mãe e tia não tinham ocupação conhecida, para além das lides domésticas e assistência à igreja, especialmente a tia, limpando-a, enfeitando-a e, como já ficou registado antes, tocando as Trindades no fim do dia a partir da varanda; o tio, a quem aplicaram a alcunha de “Valete de Paus”, nunca percebi bem porquê, assim como não soube o seu nome verdadeiro, além de tio da professora. Era um homem alto, enxuto de carnadura, de porte austero e muito educado. Era marceneiro ou a essa arte ou oficio se dedicava, mais como ocupação do tempo que sobrava e que era o dia todo, já que nem biscates alguém encomendava, os móveis eram poucos e pouco usados, o mesmo sucedendo com o ti Américo Ferreiro, marido da senhora Rosinha, ela tomava conta da mercearia e o ti Américo não sei bem o que fazia: na marcenaria, que até torno tinha, consertava uma ou outra cadeira e ia fazendo os piões para os garotos jogarem! Eram equilibrados os piões, bem torneados, mas poucos os usavam, preferindo talhá-los à mão, de um pedaço de carrasco, que era uma madeira muito mais dura do que a dos piões torneados!
A família da professora tinha uma pequena horta que dava pouco trabalho! Ou viviam do salário da dona Graça ou teriam outros rendimentos, não soube na época, nunca quis saber da fortuna de quem fosse, não por culto, apenas por que não eram coisas que me ocupavam os pensamentos, se é que pensamentos eu tinha.
Queria era brincar, dar conta dos recados de que me incumbia a minha Mãe, ir regar a horta que ainda hoje me emociona, ver onde a perdiz ia fazer o ninho naquele ano, enxertar tudo o que era bravo para depois ver os enxertos que pegavam e esquecer-me de muitos!
Escrever deve ser ou devia ser, para quem sabe cumprir as regras, eu escrevo como sei, conforme as recordações vão surgindo e se debatem para não ficarem esquecidas, entre o momento em que aparecem e tempo em que são escritas.
O que mais me agradava na família da dona Graça era a sua cuidada educação, a sua dedicação à igreja e, como curiosidade mais recente, o possuírem uma burra, comprada numa das várias feiras que havia na região e a alguém que devia saber do oficio de vender gado do que o educado senhor, Valete de Paus, de o comprar. Foi vendida como grávida, quase em fim de gestação. Passaram-se os meses e até os anos e a burra nunca pariu. Tal como a conheci quando apareceu, assim era quando acabei a escola.
Uma outra aventura passada com a tia da dona Graça, a que de inicio ninguém terá assistido, mas que não custaria acreditar, dado o cuidado da senhora com a igreja, está relacionada com uma das ações de limpeza dos altares, das imagens e colocar novas flores, a maior parte do ano, naturais, colhidas nas diversas hortas dos paroquianos, que achavam que na igreja ficavam melhor do que envelhecerem e secarem, na horta onde ninguém as via ou na casa de cada um.
O altar de São Sebastião é um nicho, embutido na parede que dá para o adro, à direita da nave, um pouco antes do de São Miguel a castigar o Satanás.
O cuidado da senhora era tal, que não se ficava pela mais simples limpeza da parte visível das imagens ( mesmo que o ditado afirme que o anjos não têm costas!). Como resolveu limpar as costas da imagem de São Sebastião e sem a ajuda de um banco lhe chegava mal, mesmo sendo a imagem a de um santo baixinho e entroncado, uma imagem de conceção maciça, com o braço esquerdo abraçava o pescoço do Santo, puxando-o para si, assim como se quisesse dar-lhe um apertado abraço para, com a mão direita, munida de um trapo, lhe limpar toda a parte traseira; ou por que o santo não gostou da àquela hora ou por aquela pessoa ser abraçado, ou por que o abraço estava a ser despropositadamente executado, abandonou-se sobre o ombro da senhora que, já sem forças, ao tentar coloca-lo na posição anterior, ou seja, em pé e temendo que o santo não ficasse em boa forma se o deixasse estatelar sobre a fria pedra do corredor frente ao altar e sabendo que não havia alguém mais na igreja, desatou aos gritos: “quem me acode, quem me acode, senão o São Sebastião mata-me!” Era a inversão dos papéis, pois se o Santo se estatelasse quem ia direitinho para o céu era ele e não a senhora que, com tanto zelo o limpava! A descer, diz o ditado, todos os santos ajudam, mas a subir...que era o caso, nenhum santo lhe valeu-
Alguém acorreu ao veemente pedido de ajuda e ao Santo acudiu, fazendo o milagre que não constava que alguma vez o Santo fizesse, talvez por nunca lhe ter sido pedida ajuda ou andar tão distraído na sua santa vida, já que as quedas são tantas e todos os dias que, se todos pedissem socorro o santo não daria conta do recado; teriam que ir para a bicha, mais comprida e demorada do que a das urgências dos hospitais portugueses, onde as pessoas acorrem à espera de algum milagre ou salvação.
O São Sebastião lá se safou e na segunda-feira a seguir à da Páscoa, também chamada a segunda da Pascoela, alinhou na procissão e foi dar uma volta à aldeia, montado no seu andor, limpo e inteiro, fazendo companhia ao anjo São Gabriel, com casa posta lá no alto do monte com o seu nome, cujas festas se realizam uma semana depois da Páscoa. Realizavam, agora mudaram para o Verão, para atender à emigração.
Consta que do susto não mais recuperou e não mais permitiu que a senhora o abraçasse às escondidas, nem por qualquer outra, mesmo que mais nova e com mais força como é natural. Também não consta que São Sebastião ande descontente, nem tenha pó que dê nas vistas.


                                                           VIII


Desde os primeiros dias de escola tive alguma dificuldade em me conciliar com algumas matérias ou a forma de as apresentar! E só não houve confronto antes por que os mais velhos, como é hábito, não deixavam os mais novos serem atrevidos. E na escola era bem marcada esta característica. Se algum pisava o risco, levava umas lambadas.
Das que recordo, a que mais curiosidade despertou foi a dos três reinos da Natureza:
                               Fica em destaque
                          OS TRÊS REINOS NATURAIS
O grupo coral dos mais pequenos, lá nas carteiras da frente, cantava a tabuada:
- três vezes um, três; três vezes dois, seis; três vezes…!
- junto da secretária, de madeira, velha há muitos anos, da Dona Graça, o pequeno grupo dos maiores, tinha a primeira aula de ciências da Natureza.
E, por uma frincha do coral da tabuada, ouvia-se distintamente a afirmação da senhora professora, a garantir que apenas três reinos formavam a Natureza: o reino Animal, o reino Vegetal e o reino Mineral. Assim mesmo e por esta ordem de apresentação.
O Silvério, atento à conversa reinante, ouviu e calou aquela dos três reinos, a forma como a Dona Graça os ordenou e a nota de que, ao primeiro dos reinos, pertencíamos todos nós, os garotos da escola, ao segundo pertenciam a figueira e romãzeira do senhor Afonso e as oliveiras e damasqueiro da tia Badona e todas as arvores e ervas; ao último, o mineral, pertenciam o penedo do Seixo, as pedras do Castelo e o rochedo onde o Anjo poisou e as pedras de que eram formadas as paredes e todos os calhaus, pequenos e grandes, uns que viviam arrumadinhos e quietos e outros que se devem ter fartado de estar ali, a olhar para os animais que passavam e as ervas que cresciam, resolveram alargar o campo de visão e por ali andavam, tropeçando uns nos outros, levados pelas chuvadas, sem poiso certo.
O Silvério olhou de lado para o Teófilo, mas nada disse.
Todos conhecíamos bem o Silvério e sabíamos que ele não ficou satisfeito com aquela ciência dos Reinos e que, mais dia, menos dia, iria pôr a questão em pratos limpos. Não tardou muito. No intervalo para o almoço, que veio logo de seguida, mesmo antes de cada um ir para casa comer o pão com azeitonas ou com figos secos, para a maioria servia de almoço, exceto para o filho do senhor Júlio da Estação, que comia a bucha que trazia lá do fundão, junto ao Douro, sentado à sombra, nas escadas da casa do senhor José Madeira, também conhecido por José Laco, nunca soube porquê; também o Acácio e o Aníbal que em casa tinham refeição quente!
Estava a dizer que antes de dispersarmos para o almoço, convocados de emergência pelo Silvério, reunimos, três ou quatro, na traseira da escola, a “quelha”.
Em redor do Silvério nos juntamos: eu, o Aníbal de Foz Côa, o Teófilo e o Albertino!
Logo o Silvério perguntou se tínhamos ouvido o mesmo que ele, aquela coisa dos Três Reinos. Eu e o Teófilo respondemos afirmativamente, o Albertino e o Aníbal, não. Teve de repetir para os dois a conversa dos reinos.
E que tem isso de mal? Perguntou o Albertino.
O Silvério, num tom de voz irritado e de segredo, perguntou-nos:
Então nunca ouviram o senhor padre, durante a missa, falar no reino dos Céus?! E todos acenaram com a cabeça, que sim…
Mas a professora não ia mentir, interrogava-se o Aníbal!
E achas que o senhor Padre ia inventar aquele reino? Interrogava-nos o Silvério para saber mais do que a senhora professora?
Assim, parece que, pelo menos quatro, há! E de imediato o Silvério perguntou quem iria esclarecer esta divergência da quantidade dos reinos?
O Teófilo foi o primeiro a dizer que não, por se lembrar bem, ele e nós, mais ele que nós, naturalmente, a ele doeram as cinquenta reguadas, castigo aplicado por ter sido acusado de, um ou dois dias depois do treze de Maio, ter inventado uma visão da Senhora de Fátima, envolta numa nuvem, passando em frente de uma das duas janelas voltada a Sul, por cima do Abixeiro, na direção da Capela do Anjo.
Ficou assente entre o Teófilo e a Dona Graça e nós todos, que aquela visão, ou aquela invenção, se devia ao efeito de, dois dias antes, termos estado todos, em casa do senhor Aleixo, mais de duas horas, a ouvir pelo rádio, as cerimónias de Fátima, quase sem luz e deve ter querido parecer-se com o pequeno pastor da Cova da Iria!
Nós apenas testemunhámos a sentença e o Teófilo acenar que sim, quando devia dizer que tinha inventado tudo!
Ah, tínhamos assistido à sua versão inicial, em plena sala, com a sua insistência e que continuou, não recordo por quantos dias e sessões entre o senhor Padre e o Teófilo, com a Dona Graça a assistir e certamente ajudar nalgum pormenor.
O Albertino disse que também o não fazia, invocando o que passou, meses a fio, com a sua visão da cruz, na hóstia que o senhor padre ergue, no momento da elevação e que só terminou quando, em segredo, perguntou ao Acácio, ajudante nos atos litúrgicos e nosso colega de escola.
Como nunca tínhamos ouvido falar de tal visão, logo o Silvério quis conhecer os pormenores!
- Albertino, ainda não muito seguro, explicou: estava no espaço onde costumam estar os garotos, junto da porta de entrada para a sacristia e em frente estava era a janela com vidros de várias cores, ficando o altar entre mim e a janela! Quando o celebrante, segurando a hóstia nas pontas dos dedos, a elevou, bem acima da sua cabeça, vi o que nunca tinha visto: uma cruz quase do tamanho da hóstia! Só pensei num sinal vindo do Céu e me escolheu para testemunhar que era o corpo de Cristo que na Cruz morreu para remir os nossos pecados. O Acácio explicou como eram feitas as hóstias! Foi o Acácio que me salvou, mas com a salvação se foi a esperança de ter sido eu o escolhido para testemunhar!
O Albertino tem razão, já passou o seu mau bocado e a coragem nunca foi muita.
O Aníbal muito menos; não por medo das reguadas que imaginava, ele até se gabava de já nem lhe doerem e que só no Inverno, com as mãos geladas, é que custava mais!
Como não estava muito seguro de se sair bem nesta confusão dos reinos, lembrou-se de que era sempre ele quem partia as réguas e o tio da Dona Graça ter que fazer outra, para repor a de reserva, pois não seria por falta de meios que a justiça não seria aplicada! E era também ela, o Aníbal, quem juntava os ratos mortos com trigo roxo e os escondia por debaixo da mesa da senhora professora, que mandava evacuar a sala e abrir as janelas para despoluir o espaço! Era também ele quem declarava a greve mal a professora se atrasava um pouco. Escrevia no quadro e tudo para o recreio.
Não recordo bem porquê, deu-se um compasso de espera, parecendo que o problema dos reinos ficaria entre a ciência e a devoção! Mas foi Sol de pouca dura!
As aulas de história, em que só os que tinham de aprender davam a atenção que conseguiam, passaram a ser alvo de curiosidade quase geral; os da tabuada cantada não queriam saber do que nada tinha a ver com eles e dar conta do recado que tinham, chegava bem.
Ao grupo que investigava os reinos apareceu nova surpresa na História: o Reino de Portugal, o Reino Unido, ao que o senhor Padre correspondeu com os três reis Magos…! Era tal a inflação que já dava para brincar, fazendo comparações: ou com o comboio e carruagens, um formigueiro e o Silvério ainda arranjou um primo, chamado Reinaldo e que estudava no Porto.
Perante este naipe de divergências, foi convocada uma nova reunião para dois dias depois, no mesmo local e no final da última aula.
Ficou decidido que aquela cena dos reinos nem sequer era divertida e não havia vencedor, a professora tinha um maior número, mas os do senhor Padre eram doutro valor!
E como qualquer um podia ter o seu reino, resolvemos que iriamos assumir a posse das muralhas do nosso castelo, com os reis que connosco quisessem colaborar, passando a ser a sede do Reino dos Exploradores de contradições.
A bandeira, que o Aníbal desenharia, teria sete cores, tantas como as que dizem que o arco-íris tem e ficará içada na parte da muralha que mais se parecia com uma peanha a torre de menagem.
Esquecemo-nos de lavrar ata da decisão, mas como não havia nenhuma anterior…o Silvério iria fazer o rascunho para depois ser aprovada e registada.
Tudo perdido! A América atirou-se à Coreia como gato a bofe, o Silvério, o Antoninho e o Alcides foram para o rebusco do minério e quando acordámos o castelo apareceu com uma placa em pedra branca e cravada na entrada onde estava escrito
                        “ PATRIMÓNIO DO ESTADO”
“Há, aqui, um pequeno desajustamento temporal que se deveu a um acidente de que resultou o desaparecimento de todos os textos, tendo refeito os Três Reinos e os incluí noutro conjunto! Ficou mais desenvolvido e ganhou uma dinâmica diferente!”


                                                           IX


Ainda na terceira classe, já com um invejável cadastro, de penas cumpridas e outras por cumprir, atrevi-me a levantar essa e outras questões, que me foram valendo, por cada vez que nelas insistia, uma pena de cinquenta reguadas, vinte e cinco em cada mão, contadas pela turma, como se estivessem a aprender a contar! E aprendiam: ou porque a régua aparecia partida ou por que desaparecia mesmo, ou por que os ratos que o trigo roxo tirara da circulação e apareciam no espaço da secretária onde a dona Graça resguardava as pernas, até um cágado morto, encontrado no ribeiro, foi para àquele espaço bem perto dos pés da dona Graça; também uma pequena cobra lá foi parar, depois de me ter recusado a ir limpar as ervas do cemitério, mais tarde por causa do latim, que terá tratamento próprio, até ao apostar com o Antoninho, colega de carteira, de que acertaria, com uma areia que estava no chão da sala, na cabeça da dona Graça, debruçada sobre algo que estava a ler e que já nem perguntava quem teria sido, chamando-me para aplicar a dose das cinquenta reguadas.
A última que recordo, andávamos já na quarta classe, numa aula de história, em que fez uma pergunta aos colegas, que não responderam, sendo a mim que perguntou em último e eu recusei-me a responder, embora dissesse que sabia! Após as cinquenta do costume, ainda com as mãos a chiar, fui à carteira, escrevi a resposta numa folha do caderno, peguei na trouxa, passei frente à mesa onde a dona Graça estava e a olhar para mim interrogativamente, larguei a folha com a resposta e saí porta fora, sabendo que no dia seguinte iria, à chegada, aparar a dose das cinquenta.
A partir dessa altura, qualquer coisa que se passasse, era a mim que chamava e só uma vez não acertou, mas não ficou a saber, nem eu, porque o autor da proeza não se deu por achado.
Vista a situação com esta brevidade, poderá pensar-se que, entre mim e a dona Graça, havia alguma intencional e excessiva agressividade e falta de respeito da minha parte. Puro engano! O que havia era um temperamento de rebeldia da minha parte, a que hoje chamaria formas de afirmação; e da parte da dona Graça era, posso garantir, a forma de tentar manter o equilíbrio para o funcionamento das aulas. Seria, certamente, a explicação mais coerente, mas ao cabo de tantos anos de vida e tantas situações terem ocorrido, sou capaz de admitir que tenho alguma dificuldade em me adaptar a rotinas, procurar o caminho mais fácil para que as coisas sejam conseguidas. Gosto, digo-o agora, longe daqueles tempos em que não valorizava cada pormenor, de clareza, de equilíbrio, de justiça e não me ajusto ao panfleto.
Ao contrário de outros, eu aprendia com facilidade, sem necessidade de grande aplicação, e a dona Graça tinha uma certeza enraizada, que a experiência de muitos anos de contacto com a escola e com os miúdos confirmavam. E se repeti a terceira classe foi porque a gestão da turma assim aconselhava, pois ela sabia, naturalmente, quantos alunas entrariam cada inicio de ano e se eu fizesse o exame naquele ano, no ano seguinte teria só dois alunos na quarta classe a apresentar a exame.
Quando chegou o tempo de exame, o primeiro, era só eu e o Antoninho! Pegámos na ciência ainda bem cedo e fizemo-nos ao caminho, a pé, para Almendra, a cinco quilómetros de distância, por caminhos de chão à vista, mostrar o que sabíamos.
O Antoninho, que herdou da família a alcunha de “Matacho” era ligeiramente gago, ou tartamudo, e foi sempre um amigo de quem gostava e ele retribuía sem esforço.
Para que os exames se realizassem na aldeia teriam de ser, pelo menos, quatro examinandos, motivo por que fomos para Almendra.
A prova escrita era de manhã e de tarde seria a oral. Correram bem, ambas, dando até para um dos examinadores, na prova de geometria, depois de desenhar o trapézio isósceles, perguntou-me o que a figura me fazia lembrar? Um alguidar, virado ao contrário. Risos na plateia!
Na quarta classe eramos três: o Antoninho, o filho do senhor Júlio da estação e eu. Os exames eram em Foz Côa. Como a dona Graça fazia parte da equipa de examinadores e tinha família na Vila, tios e prima, negociou com a minha Mãe a nossa ida e ficarmos alojados na casa da sua família. Assim fizemos. Partimos numa segunda-feira: a dona Graça, a tia Amélia e eu, foram as primeiras e únicas férias que fizemos.
 Ainda nesse dia fui conhecer a escola e os arredores e também alguns dos examinandos de outras aldeias que, como nós, para ali foram para o mesmo que eu.
Um colega, de Foz Coa, cujo nome não recordo, que era filho de um comerciante de quase tudo, era assim que as lojas funcionavam, não percebi porquê, quase me adotou como amigo desde o primeiro dia. E com ele conheci Foz Coa de fio a pavio; com ele ia assistir às provas orais conforme se iam fazendo e com ele tomei o primeiro café numa esplanada.
A partir de um casaco do Reinaldo ou do Álvaro, nunca soube, foi adaptado pelo ti Fernandes, para o meu tamanho, um casaco de branco linho, bem mais fresco que os tecidos habituais! Pelo filho, o Gualdim, foram adaptados uns sapatos não sei de quem, mas que deles gostava por serem os primeiros, sempre tinha usado botas, que o senhor Marcolino, pai do Acácio e do Alcides e o Leonel, talhava à medida, com rasto de pneu ou de sola com alguma proteção de cardas no rasto.
Não recordo se houve algumas manifestações externas, mas eu estava ufano naquele cenário.
A família que nos alojou, tios da dona Graça, deviam gostar muito dela, o tio, além de simpático, era divertidíssimo, sempre encontrava algo para contar que dispunha bem e da horta trazia sempre algum coisa para a sobrinha: rosas, frutos, ovos, viviam bem e pareciam felizes e alegres. Foi muito bom aquela acolhimento.


                                                           X


No segundo dia, terça-feira, foi a prova escrita, para mais cerca de uma dezena de miúdos de outras freguesias e os três de Castelo Melhor.
Estávamos agrupados em três filas de carteiras, um em cada carteira e em cada fila um de nós. Decorria a prova de caligrafia, que correspondia a duas ou  três linhas do ditado, acabado de ser ditado e escrito, logo abaixo, na mesma página.
Um dos examinadores, em passo lento e mãos atrás das costas, passeava pelos dois corredores entre as três filas de carteiras, com ar distraído, mas atento, olhando pelo canto do olho, vendo a destreza dos examinandos. Ao passar junto a mim, parou por instantes e logo avançou para o outro corredor, parecendo-me que tinha feito a subtil paragem junto de cada um dos outros dois de Castelo Melhor.
Quando a prova terminou e o professor levantou a minha, perguntou-me por que motivo eu, na parte da caligrafia, e apontava as duas linhas, tinha preenchido todo o espaço entre as linhas, tendo cada letra o tamanho daquele espaço, enquanto os meus dois colegas só tinham preenchido metade do espaço, desenhando as letras com metade do tamanho das minhas? Respondi que não fazia ideia do que os colegas tinham feito, eu fiz como me foi ensinado pela dona Graça, tendo eles aprendido da mesma forma! Terá feito a mesma pergunta aos outros dois, não ouvi, mas ambos ficaram atrapalhados!
Recolheu todas as folhas das provas e deve ter falado com a dona Graça e ela deve ter esclarecido o curioso senhor.
Quando nos encontrámos, na rua, os três, dei-lhes conta da conversa do professor e eles disseram que iam com a intenção de fazer como tinham aprendido, mas como os outros miúdos de outras escolas estavam a preencher só até metade da entrelinha, eles resolveram fazer o mesmo, mas se calhar tinham feito mal. Nada mais ocorreu.
Ao almoço, em casa dos nossos simpáticos hospedeiros, que recordo ter sido bacalhau cozido com a batata, ovos e couve, a dona Graça mostrara-se descontente com o que se passara na prova escrita, referindo-se ao procedimento do Antoninho e o João, por terem decidido seguir os outros em vez de optarem pelo que lhes foi ensinado. Fiquei a saber, sem ser dito. Que o examinador deve ter consultado a dona Graça sobre esta dualidade e qual estaria correto.
Nos dias seguintes, em que não havia provas orais a decorrer e às quais eu ia assistir, deu para conhecermos um pouco mais de Foz Côa, ciceronizado pelo colega que entretanto recordei que era tratado por Gouveia.
O calor, naquele final de Junho, era sufocante, tal como seria em Castelo Melhor ou mesmo mais, mas devia ser apenas suposição. A vila tinha já alguns tinha já casas abastecidas por água da rede pública. Este pormenor tem a ver com a minha decisão de tentar beber água de uma das torneiras de manutenção mal fechada e que escorria um fiozinho de água, mas nem engoli, tal era a temperatura a que estava, mais parecendo caldo acabado de fazer.
Na antevéspera do dia fixado para a prova oral, a tia Amélia e a dona Graça, com alguma experiência de negociarem por mim, coisas a meu respeito, devem ter achado que um rapaz tão bem ataviado, mesmo com peças restauradas e em segunda mão, não estava a condizer o cabelo indomável e nunca penteado, espesso e a cair para a testa, deram-me a entender que o devia mandar cortar, mesmo que isso representasse um encargo suplementar, uma vez que os cortes de cabelo e barbas para os que a tinham, era por avença com o barbeiro, o ti Alexandre, talvez por ter sido criado connosco, pois havia outros barbeiros, mas era como se fizesse parte da família: assim como era com o ferrador e alguns produtos de mercearia; pagava-se no final da colheita e quando a não havia por ter sido um mau ano, acabava por ficar em divida para o ano seguinte.
Aceitei a proposta de cortar o cabelo em Foz Coa, mas talvez por me não ter agradado, disse ao barbeiro que queria o cabelo cortado rente! Foi uma confusão dos diabos quando a tia Amélia me viu naquela figura, mas depressa percebeu que o mal que não tem remédio, remediado está, lá diz o adágio.
Só que as coisas em casa eram tratadas com outra filosofia, em que ambos nos conhecíamos bem e bem nos dávamos; o pior estava reservado para o dia da prova oral: os risinhos individuais, aos poucos foram aumentando e não tardou a toda a plateia gargalhar, a tia Amelia encolhida com vergonha, sentada ao lado do senhor Júlio da estação, o pai do João, que ía fazer a sua prova também! Um dos examinadores pediu à plateia silêncio, para não perturbarem as provas.
Dirigi-me à carteira que me estava destinada, mas não olhei para a divertida plateia.
Eu fui o penúltimo a prestar prova, não sei porquê, mas não deve ter sido propositado. A prova estava a correr tão bem que até eu me estava a divertir! Ao contrário do que sucedera com os anteriores examinandos, a quem tinham feito três ou quatro perguntas e mandado resolver dois ou três problemas, eu ia já para além de uma dúzia, a maioria deles resolvidos de cabeça, sem necessidade de escrever no quadro; a aritmética era  uma disciplina onde me sentia bem e daí a facilidade.
Também correram bem as questões da história e de português, mas o final, com a geografia, foi apoteótico! O mapa por onde teria que me regular era diferente do que nós usávamos em Castelo Melhor, era aquele a que nós designávamos por mapa mudo, por não ter as cores habituais por distrito e nem o nome das cidades, rios e montanhas! Informei a mesa de que não tinha sido por um mapa igual que tinha estudado, ou melhor, aprendido, prontificando-se um dos examinadores a rocá-lo! Não vale a pena, respondi; talvez até nem precise do mapa ( agora, os sorrisos mal disfarçados, vieram da mesa). Começaram as perguntas sobre rios e caminhos-de-ferro, com seus afluentes e ramais e as respostas foram dadas sem vacilações, até que o professor declarou que tinha terminado as perguntas. Na história, logo de seguida, as perguntas devem ter sido feitas para eu brilhar e as respostas corresponderam à expetativa, de tal modo que a plateia, antes agitada e divertida à custa do meu corte de cabelo, agora, em pé, batia palmas! Aqui, sim fiquei envergonhado.
Soube mais tarde, quando me juntei a eles, que a minha mãe, analfabeta, mas sábia e inteligente, a certa altura da minha prova, terá comentado para o senhor Júlio, que me estavam a crucificar com tantas perguntas ao contrário dos anteriores! O senhor Júlio terá respondido: que não, os examinadores estavam a gostar tanto da minha prova e que até eles estavam a brilhar.
O resultado final foi a distinção. Segundo soube mais tarde, este tipo de classificação deixou de ser atribuída a partir desse ano, mas não fui eu quem decidiu tal. Garanto. Passou a ser: aprovado ou reprovado!


                                                           XI


A não inclusão, no espaço e no tempo próprios, deste conjunto de recordações, o episódio de que não devia ter recordado, não por falha de memória, mas por que continua a ser-me desagradável:
                A VISITA PASCAL, de Sua Excelência Reverendíssima, o Bispo da Guarda, a Castelo Melhor:
O tempo certo seria quando abordei os merecidos castigos na escola, aplicados pela dona Graça, professora dos rapazes, que já tinha sido antes, dos meus irmãos, Licínio e Ernesto, bem melhor comportados, tudo leva a crer.
Terá sido no ano de mil novecentos e quarenta e nove, quando estava a repetir a terceira classe, que soubemos da anunciada visita a Castelo Melhor, do senhor bispo da Guarda. O pormenor do ano exato só me pareceu interessante por ter tido outro direto protagonista, o Acácio, filho do senhor Marcolino, com quem não fiz nenhum dos dois exames, como já ficou a constar. Continuando, com esta ressalva.
Num dos primeiros meses do ano foi pelo senhor padre anunciada a visita Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima, o bispo da Diocese, no período da Páscoa.
A recordação que tenho é que houve entusiasmo por parte de algumas pessoas, pelo menos curiosas pela novidade do evento anunciado e não tanto de outras, manifestamente indiferentes.
Os preparativos começaram, sem grandes investimentos, a comunidade era pobre e os dinheiros do minério, finda a guerra, logo desapareceram! Tal como se costuma dizer: “o dinheiro mal ganhado, água o deu, água o levou!” e levou mesmo. Sempre há um ou outro que amealhou uns cobres, mas só os intermediários no negócio é que faziam fortuna; os garimpeiros só tiveram trabalho e muitos sustos. Em termos gerais, no que toca aos dinheiros do minério.
Voltemos à visita do senhor bispo:
A dona Graça e família, como foi já anotado, eram católicas devotadas por formação e tradição e não pelo facto de morarem junto à igreja. Natural era que integrassem e dinamizassem o grupo de receção, tendo o senhor padre como responsável geral e incluía a Junta de Freguesia, ou seja, o meu padrinho, Cassiano de Albuquerque. A Junta era ele e desde há muitos anos.
Na escola, a dona Graça, certamente de acordo com o senhor padre, devem ter achado bem que dois alunos deviam intervir nas cerimónias e para isso iriam aprender algumas frases em latim, o que não era o mesmo que ir aprender latim.
A escolha recaiu em mim e no Acácio, talvez por sermos os que melhor assimilávamos e fixávamos; o Acácio já com alguma experiência por ajudar à missa.
Eu fiquei entusiasmado: era uma coisa nova, embora a missa fosse em latim, mas não dava para aprender o que ia sendo dito durante a celebração da eucaristia e ainda o que era dito pelo senhor padre noutras cerimónias, nomeadamente durante as missas de corpo presente, onde o meu impreparado ouvido teimava em ouvir, em certo momento da exortação a frase que soava “ ao ver enteseia! “. Se a curiosidade fosse de fácil resolução, não andaria naquela dúvida, como andei! Mas quem se atreveria a ir perguntar ao senhor padre o que ele dizia naquela passagem das missas de corpo presente. E menos ainda pronunciando a frase tal como me soava ao ouvido! O castigo não seriam reguadas! E se o tivesse feito, mesmo que através de outra pessoa e fosse esclarecido, não haveria agora razão para ser recordado, nem escrito.
Começaram as aulas latinadas, extracurriculares, bem assimiladas por ambos os “formandos”(entre aspas, o termo não era comum à época), pelo que os formadores iam dizendo, durando até uma semana antes da visita esperada e para alguns, desejada mesmo.
A teoria estava pronta, era chegado o tempo de preparar a fase da sua aplicação: a dona Graça foi explicando que o que nós aprendemos era para ser dito, em jeito de diálogo, com Sua Excelência Reverendíssima, um pouco como se fazia nas missas, em que os participantes respondiam, ou repetiam, ao que ou o que o celebrante dizia. Só que nós, o Acácio e eu, o faríamos em dueto, nas costas do senhor Bispo e segurando, cada um de seu lado, as pontas do seu longo manto.
Foi um choque profundo aquele anúncio. De tal modo me abalou que, de imediato, esqueci todo o latim e, num português razoável, comuniquei à dona Graça que não contasse comigo para segurar o manto de Sua Excelência e que não mais voltaria às aulas de latim.
E lá voltámos às sessões de reguadas, aplicadas mesmo antes da aula escolar se iniciar, todos os dias que eu faltasse ao latim, ou seja, todos os dias.
Esta atitude chegou mesmo aos ouvidos dos meus pais, mas não houve qualquer tentativa para me convencerem, ambos me conheciam bem, sobretudo a minha mãe. Nem sequer foi comentado na minha presença, o que não quer dizer que, entre eles, não discutissem o assunto. Estaria, sem nisso pensar ao tempo, a aplicar a regra da minha progenitora: “ primeiro, as obrigações, depois as devoções”. Ora, o latim não fazia parte do programa escolar, logo não era uma obrigação e menos ainda o que me propunham na prática: segurar o manto do senhor Bispo.
Enquanto decorriam as minhas sessões de reguada, ou seja durante a semana que antecedeu a chegada do ilustre visitante, apareceram na aldeia duas freiras e um frade, da ordem dos Franciscanos, com seus hábitos até ao chão, ele de tecido castanho, capuz que nunca o vi usar, atirado para as costas e um cordão branco, atado à cintura, na ponta do qual tinha um cruz em madeira; as freiras, vestindo de preto, com um cordão à cintura como o do frade e na cabeça um toucado em tecido bem desenhado e engomado para se manter na posição exigida sem dobrar ou ficar com mau aspeto
Não soube se era para ficarem toda a semana, mas tudo levava a pensar que sim: o frade chamou a si as criancinhas, cativando-as com a sua simpatia e ajudado por um ratinho a que dava corda e o rato parecia louco a correr, sem se encostar às paredes, como fazem os ratos naturais. Conseguiu cativar os miúdos e ensinou-lhes alguns jogos de que os miúdos gostaram. Ficou até à vinda do senhor Bispo.
As freiras, deviam ter a seu cargo, visitar cada uma das casas da aldeia, mas se era essa a intenção, ou missão, foi abruptamente interrompida e ficaram apenas um dia e parte do segundo, após um acidente, que a sua raridade provocou a uma das paroquianas.
Embora as portas de Castelo Melhor, todas as portas, estivessem invariavelmente abertas, quando em casa está alguém, as freiras, talvez por delicadeza e boa educação, batiam sempre às portas das casas que visitavam e perguntavam se estava alguém?
A visita que fizeram e que deve ter sido a última, foi a casa do ti Herculano e esposa: bateram na porta e perguntaram o costume, a esposa, numa tarefa de cozinha, respondeu que estava e mandou entrar, quem vinha com Deus e continuou o trabalho que estava a fazer, enquanto as visitas iam subindo os muitos degraus sem um patamar e quando chegaram ao sobrado, pararam. Foi então que a visitada se virou e viu, no lusco-fusco da casa, duas estranhíssimas figuras que, em coro, lhe desejavam um bom dia!
A senhora, cujo nome não recordo, ao deparar-se com aquela visão, recortadas pela pouca luz que da rua subia as escadas, gritou: “ ai, valha-me Deus” e, sem pensar muito, quase se atirou para a escada, com a intenção de fugir daquela casa assombrada! A pressa era tal que se desequilibrou e desceu a escada aos trambolhões e quando aterrou, junto da porta estava já com uma perna partida. Depois de prestarem os cuidados que podiam e sabiam, as duas irmãs terão partido para o convento e não voltaram.
O frade não. Virado para as coisas dos juvenis, passava os dias rodeado de tudo o que era garoto; todo o povo gostava dele, pela sua simpatia e fácil comunicação.
Os miúdos e alguns já crescidotes, deliravam com as corridas do rato e o som que emitia a corda a desenrolar, batendo em tudo o que se atravessava na carreira. Os ratos que eles conheciam, bem mais velozes, corriam junto às paredes, de olhos bem vivos e não batiam com a cabeça em tudo que aparecia. O problema dos vivos era quando algum gato se atravessava ou a fome apertava e comiam o que aparecia: por vezes era o trigo roxo ou o isco da ratoeira.
Durante a Semana Santa o frade ajudou o padre Madeira no confessionário e deve ter ouvido confissões que ao padre Madeira eram omitidas, mesmo que incorrendo em grave pecado. Deve ter sido o ano em que a maior parte das pessoas se confessaram, com a garantida exceção do ti mudo que sempre foi dispensado.


                                                           XII


A chegada de Sua Excelência Reverendíssima era no Domingo de Pascoa.
Logo pela manhã o povo andava numa fona viva a espalhar as últimas flores pelo chão que vai do cimo da Cascalheira até ao adro da igreja e porta principal; ao mesmo tempo iam vendo se estava tudo nos seus lugares.
Vieram gentes de outras aldeias para assistirem à celebração da Eucaristia por um representante da Igreja acima de Padre, coisa rara e nunca vista por aquelas bandas: ver de perto uma figura da igreja, entidade maior de Diocese e alguma curiosidade também para ouvir a sua mensagem do sermão.
Chegou por volta das dez horas, transportado num jeep da Guarda Republicana de Almendra, adornado para o efeito e em conformidade com a personalidade que transportava. Para que não fique por esclarecer, o transporte em jeep tinha que ser, por que só numa viatura desse género chegava a Castelo Melhor.
O meu primo Reinaldo, estudante de liceu no Porto e em férias na sua terra natal, foi o encarregado de ler a mensagem de boas vindas do povo da aldeia. Subiu para um pequeno estrado montado no alto da cascalheira, de costas para a casa de seus pais e entre as da avó e tia Cecília, tendo por cima, pendurado entre dois paus, um pano branco onde estava escrito, em letras bem grandes e tinta azul, mais ou menos isto: “ O povo de Castelo Melhor agradece a vinda do Pastor em visita ao rebanho! Viva o senhor Bispo”.
Tudo correu como esperado, foram gritados Vivas ao senhor Bispo, bateram-se muitas palmas, sem grande pompa, mas muita solenidade. O senhor bispo agradeceu com um breve gesto e, a pé, se encaminhou para a igreja, com todo o Povo e arredores, atrás, que encheu todo o espaço da nave da igreja e coro, incluindo a escada que lhe dava acesso e também à torre, ficando ainda muita gente que não conseguiu entrar.
Frente ao altar-mor o senhor bispo ajoelhou e esteve em silêncio a orar, seguindo depois para a sacristia, acompanhado dos vários padres que nunca tinha visto e do padre Madeira, prior de Almendra e Castelo Melhor. Saiu, já paramentado, com seu báculo na mão esquerda, a mitra vermelha e seu longo manto que dois dos padres da comitiva seguravam.
Os que não couberam na igreja pediam aos que estavam dentro para não fazerem barulho, para poderem, ao menos, ouvir o que o senhor bispo dizia, o que me pareceu estranho, sendo em latim que se expressava.
Quando chegou o momento do sermão e por haver muita gente na rua, alguém terá sugerido e decidido, que fosse montado fora da igreja um púlpito em madeira para que o senhor bispo pudesse falar e todos o vissem e ouvissem.
Não tardou muito a ser improvisado o púlpito e logo os de dentro vieram fazer companhia aos de fora, largo cheio e pessoas encarrapitadas em tudo o que era mais alto, varandas e bancos e sobrava gente para a rua do Abixeiro.
E, assim, começou o sermão!
Falou do que foi informado sobre a paróquia e paroquianos, das capelas do Anjo e de Santa Bárbara, que não visitou, do padre Madeira e todos os outros, presentes e ausentes; quando chegou a vez de falar da igreja, disse:
“ que o coro estava uma vergonha, mais parecia um galinheiro e todo o pessoal concordou com um murmúrio que percorreu toda a gente, pois ao coro, sem coral, ia parar tudo o que eram andores, bancos e cadeiras partidas, entulho para ser mais claro.
Metia medo, o coro! Era quase só ocupado por homens durante a missa e servia de esconderijo aos miúdos quando brincavam às “escondidas”. Pó, era o que não faltava; e ratos, mas a sério, não como o do Franciscano, mas daqueles que os gatos tentam e por vezes conseguem, apanhar.
Referiu-se aos altares e às imagens que os ocupavam; a certa altura houve um pequeno agitar no meio do povo, quando uma exaltada senhora, tia da professora dos rapazes, gritou viva o Senhor Bispo e talvez por ser baixota, pôs-se em bicos de pés e até terá ensaiado um pequeno salto. A voz que se ouviu era a ti Zé Manuel, pai da Maria Anastácia e de profissão “alcoólico” e meio tonto: “ ai que esta puta já me pisou!”, mas que só os mais próximos terão ouvido e percebido, mas houve uma zoada que poderia ser interpretada como agoirenta.
Quando o prelado se referiu ao altar da Nossa Senhora do Rosário e à imagem que ocupava o altar, vestida de seda azul celeste, a mais venerada dos crentes, e disse que aquela imagem já não se usava (tudo o que devia ser o corpo era uma roca ou rosca em madeira e só o busto e a cabeça eram em madeira esculpida e pintada), pareceu que alguém deitou pólvora numa fogueira! Um frémito percorreu toda a plateia e uma agitação de corpos e braços e mistura de vozes num ápice atingiu todo o largo, ouvindo-se frases como: isto é demais”, “isto é uma vergonha”, é um insulto a Nossa Senhora”, frases que foram aumentando de tom e volume sonoro, estando já a ser gritadas; e de todos os lados as pessoas de trás empurravam os da frente tentando chegar ao improvisado púlpito onde Sua Eminência estava e devia estar a ver melhor do que os cá de baixo e pela primeira vez, vinda de alguém que não se sabe quem, foi gritada a frase “ morte ao bispo”, “vai lá para a Guarda”, a Santa é Nossa, atreve-te a mexer-lhe!”. As pessoas mais perto do púlpito estavam já a ser empurradas até ao palanque e tudo levava a pensar que ía ser uma refrega complicada.
Alguém avaliou a situação e começou a prepara tudo, com o padre Madeira, para tirar o senhor Bispo e o resguardar.
Num instante foi combinado como o retirar e fazer sair pela porta norte da igreja, do lado oposto ao largo da confusão. O Franciscano, o padre Madeira e alguns paroquianos resgataram o aterrorizado senhor bispo, protegendo-o até sair para o jeep onde tinha vindo e se pôs a andar em direção ao lugar onde se tinha apeado, descendo a cascalheira com a velocidade e segurança possíveis, ouvindo uma vaia de impropérios gritados por debaixo do pano onde estava escrita a mensagem de boas vindas e uma chuva de pedras que, graças a Deus, não atingiram o alvo.
Aquilo que devia ter sido uma manifestação de alegria e festa, saldou-se numa vergonha, que marcou uma aldeia inteira.
Não me consta que a visita se tenha repetido e o mais que certo será não vir a suceder. Muita mudança se deu desde então.

Reis Caçote
2003/dig. 2017


            AQUI NASCI, A 2 DE MARÇO DE 1939
        AQUI INICIEI A CONHECER AS PRIMEIRAS LETRAS, ERA ESCOLA

        NESTA IGREJA FUI BATIZADO, FIZ A COMUNHÃO E O CRISMA...
























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