A FASE POR QUE TODOS PASSAMOS E MUITOS ESQUECERAM, OU DELA TÊM RECORDAÇÕES ESBATIDAS, PELO TEMPO E PELA PERDA NATURAL DA MEMÓRIA! NÃO TIVE, AINDA, ALGUM DESSES PROBLEMAS:
- A ESCOLA DITA PRIMÁRIA, NORMAL E
A VISITA PASCAL DE SUA EXCELÊNCIA REVERENDISSIMA, O SENHOR BISPO DA DIOCESE!
TEMPO DE ESCOLA
e VISITA PASCAL
I
O edifício da escola, alguns
pormenores do interior, as cantorias diversas e as algazarras dos recreios, já
não eram novidade para mim. Tinha nascido e morado a cinquenta metros de
distância, daquela que viria a ser a minha escola, a dos rapazes; a das
raparigas ficava a poente da aldeia, junto à eira do ti Neto, quase nova,
mandada construir pela dona Maria, esposa do senhor Aníbal Soares, o grande
industrial e irmã do meu padrinho, o senhor Cassiano de Albuquerque.
A construção da escola dos
rapazes era já muito antiga, vinha já do século XIX ou do inicio do XX, de
arquitetura simples, recentemente alterada para funcionar como sede da Junta de
Freguesia.
Construída no que era o
perímetro Sul da aldeia, num espaço
quase plano, que interrompeu o declive do monte de Santa Barbara, em
terreno que, seria comum ou da casa grande, dedução que tem a ver com a boca do
esgoto, das águas residuais da cozinha, que ali chegavam por um sistema de
drenagem subterrâneo e que alí, a vinte metros da escola, um regalo para os
suínos, então em liberdade, retoiçavam e se esfregavam na lama nauseabunda! A
certa altura foi fechada a entrada da saída e assim nos livrámos daquele
perfume que tanto agradava aos suínos!
A escola das raparigas, já a
funcionar quando eu iniciei a minha formação académica, ficava no na periferia
da aldeia, a Poente, junto à eira do ti Neto e fora mandada contruir e custeadas
as despesas, pela senhora dona Maria, irmã do me padrinho e parente por
afinidade, por ter casado com uma das filhas da irmã de meu avô materno e
casada com o maior industrial daquela região, o senhor Aníbal Soares,
proprietário da Quinta do Custódio, não perguntem o porquê do nome, eu também
nunca tive curiosidade para tanto! Construiu um palacete onde já existiria a
casa do anterior proprietário; foi comprando parcelas de terreno que confinavam
com as suas, mandou plantar oliveiras nos espaços que seriam os mais adequados
e vinha nos restantes! O piso térreo do palacete era onde tratava dos vinhos,
de alta qualidade, fora da hoje Região Demarcada do Douro Superior.
Resumindo: o agricultor e
industrial, Aníbal Soares, tinha fábricas ou lagares em várias regiões do País,
uma fábrica de Massas Alimentícias, a Fábrica de Massas Vouga, por laborar em
Pessegueiro do Vouga e que tinham, como tema promocional “ O noma das Massas
Vouga chega a toda a parte, as massas é que não chegam, porque não chegam!” Uma
outra de sabão, em Barcelos. Era, naquela época um grupo de industrias que
transformavam as matérias-primas, os cereais e a azeitona, em produtos que o
mercado necessitava! Para continuar a introduzir valor acrescentado, instalou
na Ponte da Pedra, Gueifães, Maia, uma de refinação de azeite e óleo, com
grande projeção no mercado, com a sigla de “AAA” três As, que veio a falir,
depois de o senhor Aníbal ter falecido e o único filho, licenciado em economia,
deve ter achado que era altura de viver e não como um “sacerdócio” formato que
era para o Pai.
Estava na Direção da Companhia
de Seguros “ Soberana” que veio a ter o mesmo destino das empresas fundadas
pelo progenitor!
Estava a falar da escola das
raparigas, mandada construir pela senhora dona Maria, que bem precisavam, pois
a anterior era uma adaptação duma habitação, junto ao ribeiro que atravessa a
aldeia, na altura as águas das chuvas corriam a céu aberto; depois do Vinte e
Cinco de Abril, já com outra gente à frente da Junta, eleitos pelo Povo, veio a
ser coberto e transformado em esgoto, ao mesmo tempo que chegava água
canalizada e eletricidade a quase todas as casas; ou mesmo a todas as
habitadas!
II
Viradas a Sul o edifício tinha
a porta, a cerca de um metro acima do chão, chegando-se a ela, para entrar,
subindo seis ou sete degraus e para sair não eram os mesmos degraus para todos,
já que os mais velhos saltavam-nos e de vez em quando uma aterragem forçada, na
terra batida no verão ou na lama, no Inverno! De cada lado da porta tinha uma janela,
envidraçada, por onde a luz entrava, sendo mesmo a única forma de iluminação,
igual à que todos tinham, eletricidade não havia e só duas casas se podiam
iluminar com a ajuda de pequenos geradores onde carregavam baterias: o senhor
Cassiano Albuquerque e o senhor Aleixo.
A Nascente e Poente tinha
também duas janelas de cada lado, envidraçadas e com umas cortinas com renda a
rematar, tudo com aspeto de artesanal, trabalho das tias da dona Graça, com
quem ela vivia. Era por estas, as pouco acima do solo, que os mais pequenos,
ainda sem idade para a frequentar, espreitavam e ouviam, sobretudo a canção da
tabuada! Eram as classes todas no mesmo espaço, não seria a melhor pedagogia,
mas era o que havia! Os da terceira e quarta classes, mesmo sem querer, iam
revendo a matéria que eles tinham já aprendido, pelo mesmo método; e os mais
pequenos, desatentos por natureza, quando ouviam alguma maldade da história ou
o nome de países ou cidades que lhes soavam bem ao ouvido, ficavam logo com
mais atenção ao que viria mais tarde e esqueciam as vogais que era o que deviam
fixar! Lá vinha a voz da dona Graça a chamar a atenção aos meninos da primeira
fila.
E a rotina voltava, desde
Outubro até ao Natal e depois até à Páscoa e a última etapa terminava em Junho:
os mais pequenos, que não tinham exames, lá se entretinham a brincar com
brinquedos feitos por eles ou pelos pais, iam aos ninhos, sobretudo das rolas,
para os tentar apanhar e engaiolar!
Os da terceira e quarta-classes,
poucos, lá esperavam pelo dia dos exames, que não era muito, pois no fim de
Junho tudo ficava arrumada, com aprovações ou reprovações.
Tenho estado a escrever como
se estivesse ainda na fase anterior, porque também a vivi, mas é altura para ir
mesmo à escola.
Como o edifício assentava
sobre um terreno desnivelado, talvez para conservar o sobrado, a caixa de ar
formada tinha uma abertura retangular por debaixo de cada janela, que era
aproveitado e bem, por tudo o que era galináceo, gatos, cães e até alguns
porcos mais atrevidos e que só entravam deitados! A outra bicharada tal como
entrava, saía, sem dificuldade, mas alguns porcos, para serem resgatados, era
uma trabalheira; primeiro grunhiam com fome, porque por debaixo da escola, na
caixa de ar, havia espaço, mas que trincar ou debicar, isso não havia, a não
ser um ovo, de vez em quando, quando uma ou outra galinha adotou um dos cantos
da cave para ali fazer ninho e certamente chocar e criar os filhotes! As
galinhas, talvez pela sua postura, nunca tiveram fama de espertas, as raposas
sim, eram matreiras, e não pensaram, as galinhas, que aquele espaço era bom
como recreio, mas as companhias eram de fraca sensibilidade e, mal a galinha
virava o rabo, vinha logo outra que se apaparicava com um ovo ainda quente,
acabado de ser posto!
Alguns dos habitantes chegavam
a ir visitar-nos à sala das artes e do coral! Enquanto não foram vistos, devem
ter-se divertido mas um deles foi visto por um dos miúdos que logo denunciou à
professora. Foi um gesto de cuidado, mas os ratos passaram a ter uma vida de
ratos, por que a dona Graça meteu trigo roxo em cada canto e quando os víamos
estavam já a mirrar e a perfumar a sala de um perfume que em nada se parecia
com o das amendoeiras em flor!
Era o tempo da liberdade da
bicharada que só durou até ser instalado um posto da GNR em Almendra e uma das
primeiras medidas foi a de interromper a liberdade dos animais! Nem um único
queriam ver na rua! E, assim, os galos, galinhas, patos e perus, bicharada de
penas, foi encafuada nos galinheiros e os porcos para as cortelhas ou pocilgas,
como queiram! Contrariados, os animais e os donos, mas lá se foram habituando.
Mas as liberdades ou privação
delas, não foi só para a bicharada! Se o Sol quando nasce é para todos as
coisas não podem ser só para os mais indefesos! Isso seria uma injustiça! Foi
resolvido; mal, mas foi!
Os rapazolas, no final da
adolescência, sem namoradas, ali não namorava quem queria, mas quem a família
deixava, com alguma inveja de um ou outro já namorar ou apenas para se
divertirem, de noite e melhor quando lua não havia, arranjaram uma forma de dar
noticias do que se ia passando na aldeia, por via oral, à distância, em dois ou
três pontos altos, mais escondidos, travavam um diálogo com a voz disfarçada,
por lá conhecida por “grasnar”
Rádios não havia e a Lusa ainda
nem pensada estava e se já existisse não negociaria a venda de noticias a
alcoviteiros noturnos, nem a estes interessavam, apenas as locais lhes
interessavam. As queixas dos e das visadas chegaram a Almendra e a Guarda fez
umas rusgas noturnas à caça dos grasnadores.
Correram mal, ao principio.
Enquanto os grasnadores conheciam bem os caminhos, a Guarda nem de dia os
conhecia, acabando por um deles se estatelar à porta de um dos perseguidos,
quando este entrou em casa e o Guarda deve ter tropeçado num dos calhaus que
havia à porta de quase toda a gente, soltos ou ainda agarrados ao maciço que os
criou! Numa outra rusga o fugitivo atravessou pela ponte por onde todos
passavam, junto à forja e virou para o lado da escola, em correria! O guarda,
usando a tática do atalho, tentou encurtar caminho e filá-lo; não lhe passou
pela ideia, mesmo que já lá tivesse passado de dia, que o atalho tinha o
ribeiro de permeio e o Guarda não encurtou caminho, caiu no ribeiro e o
fugitivo continuou a fuga, mas agora a rir do contratempo do perseguidor
armado. Aos poucos também esta atividade noturna da má língua, terminou.
III
Pelas contas feitas devo ter
começado no ano em que a II Grande Guerra terminara; tinha completado os seis
anos em Março e em Maio, cansados, decidiram acabar com o que não devia ter
começado!
De posse dos apetrechos,
dentro duma taleiga: um caderno de linhas estreitas, um lápis, uma loisa
pequena, um ponteiro de loisa também e o livro de leitura da primeira classe!
Embora conhecesse o ambiente
espreitado, quando a coisa passou a ser a valer, devo ter achado aquilo um
pouco estranho; havia coisas que do espreitar se não viam!
Lá encontrei as carteiras que
não vira da rua, a secretária da dona Graça e atrás dela, na parede, uma foto com
moldura de um militar, do outro lado a de um senhor de nariz afilado, com igual
moldura e a meio, por cima do quadro onde iam sendo chamados para escrever ou
fazer contas, um crucifixo, quase do tamanho dos seus companheiros emoldurados!
Do lado esquerdo da mesa da
dona Graça estava pendurado um mapa, com várias cores, de Portugal e do lado
direito, no canto, uma espécie de vitrina, com algumas pedras, as figuras
geométricas em madeira e mesmo junto do quadro um pequeno móvel, a que chamavam
a caixa métrica, onde estavam guardados os pesos e os acessórios para o
desenho: um compasso grande, com um pedaço de giz numa das pontas e um ferrão
afiado, do outro lado; um triangulo em madeira, uma régua graduada e uma peça
do feitio de meia lua, a que chamavam o transferidor! Confesso que durante
muito tempo não soube da utilidade do tal transferidor e muito menos o que
transferia, nem podia saber, pois não sabia o que significava transferir e
ainda bem!
As fotografias deviam estar
por ali há muito tempo, estavam a ficar quase sem as duas cores bem definidas;
fui sabendo que o militar era o general Carmona e o outro era o doutor Salazar,
aos quais e ao Cristo na Cruz, rezávamos uma ave Maria e um Padre Nosso!
Outra novidade era ver os que
ainda não tinham idade para entrar, vistos por quem tinha feito o mesmo. Era
tudo igual, eu não fazia falta nenhuma, nem nenhum dos três ou quatro que
passaram de fora para dentro! As disputas pelo lugar e a distribuição do tempo
de cada um espreitar continuava a dar confusão e lá tinha a dona Graça de ir
espantar os curiosos que estavam a perturbar a turma!
A caixa de ar da escola era
outro ponto de atração para os miúdos a tentar apanhar os galináceos e estes a
cacarejar e a fugir e lá tinha a senhora professora que por fim à guerra nos
baixos espaços.
Alguns, mais crescidos,
tentavam espreitar pelas janelas de Poente, nas costas da dona Graça. Não se
apercebia do curioso de imediato, mas, pouco tempo depois, apercebia-se pelo
sorriso dos da primeira fila e lá tinha que ir espantar o atrevido, de cana em
punho, mas nunca bateu com ela a nenhum garoto! Nem convinha, já sabia que mais
ano menos ano o teria entre as quatro paredes da sala!
Se olharmos estes pequenos
incidentes por outra perspetiva, íamos achar que, naquele tempo, a escola
estava bem integrada na comunidade e o saber estava ali mesmo ao nível do rés
do chão, acessível a todos, dos mais novos aos mais velhos, saindo para a rua
pelas janelas abertas no tempo quente e pelas frinchas no mais frio.
IV
No inicio do ano letivo de
quarenta e cinco com a guerra em pausa, entrei eu e mais dois para a guerra das
contas e das leituras, acompanhados pela nossa já conhecida, dona Maria da
Graça Pires Rodrigues que já antes ensinara os meus irmãos antes de mim. O mais
velho acho que ainda foi um dos professores, na altura já reformado.
O que diriam hoje, professores
e encarregados de educação, com tantas e por certo justas exigências,
pedagógicas e sociais, duma sala de aula com doze carteiras duplas, com alunos
nas quatro classes, todos a trabalhar em simultâneo: ora cantando a tabuada,
ora lendo em voz alta para treinar a oralidade e os restantes calados, era a
regra, pois logo de seguida, os papéis se invertiam, os da terceira e quarta
classes, à vez, iam fazer contas no quadro para de seguida irem para o mapa a
explicar, sem olhar para o mapa, quais os rios principais e afluentes, ou as
linhas de caminho-de-ferro e quais as estações e ramais! Nem as serras
escapavam, tudo tinha que ser decorado, por que a dona Graça teria novos no ano
seguinte e mais tempo não podia acompanhar os atrasados.
Geria a orquestra enquanto
dela fazíamos parte, mas o futuro era para ser feito a solo, sem Graças e
algumas desgraças. No mesmo dia todos tinham que provar se estavam a aproveitar
ou não e para isso os que antes estiveram calados enquanto outros cantavam,
passaram a ser eles a cantar e calavam os cantadores.
No inicio de cada ano era
feita uma revisão da matéria dada no ano anterior e visionados os trabalhos que
teriam de fazer durante as férias grandes. Nem sempre era aprendida.
Só não me espanta hoje que não
houvesse um único licenciado, a aldeia ficava nos confins do mundo e acesso a
escolas e liceus não era nada fácil, pois como já disse antes, o mais próximo
era na sede do distrito, a Guarda, a cerca de oitenta quilómetros e os
transportes eram uma tristeza. Para chegar a Almendra, a pé ou a cavalo, era
sempre perto de uma hora e para Foz Côa cerca de duas horas.
Só os filhos de três ou quatro
famílias foram para o Porto, para fazerem o Liceu ou para escolas da Igreja
Católica, por ser mais acessível à bolsa dos pais.
Se a memória me não trai, o
primeiro licenciado foi o meu primo Reinaldo, tendo começado no Porto e acabado
em Lisboa, já casado, a sua licenciatura em Direito. O irmão mais velho, o
primo Álvaro ficou-se pelo magistério Primário. Devia ter ido para as Artes,
pois era um retratista genial.
Voltando ao ano inicial e seguintes
da aprendizagem, para dizer que terá coincidido com a passagem de outros
miúdos, alguns mais velhos e já na terceira e quarta classes, focando só
aqueles que, por motivos nem sempre os mais brilhantes, deixara um registo que
terá marcado todo o grupo, a uns mais que outros: o Teófilo, o Aníbal
“artilheiro, alcunha”, o Aristides, o Fernando Aleixo e o Aníbal “de Foz Coa”,
assim o tratávamos.
Enquanto que o Teófilo era
alto e robusto, o Aníbal” artilheiro” era baixio e franzino, de grande só tinha
os dentes, umas favolas enormes que estavam sempre à vista, talvez por lhe não
caberem na boca.
Devem ter-se apercebido, de
certeza um ou dois anos antes de eu entrar, que um dos rapazes era muito tímido
e incapaz de se defender: fizeram dele, gato-sapato, desde vitima física
durante os recreios, até vitima de provocações sexuais durante a aula, quando a
dona Graça não estava, ou por que ir a casa por falta de casa de banho na
escola – na escola e na quase totalidade das casas doa aldeia.
O domínio que exerciam sobre a
vitima principal, ultrapassava em muito a sua ténue capacidade de resistência,
chegando ao ponto de o convencerem, sob ameaças que não se ouviam, a masturbar
dois deles, colocado entre eles e quase sempre no canto nascente, encostados à
parede, sendo o espaço mais discreto de toda a sala em relação aos olhares do
exterior.
Eram as ameaças de agressão
que levavam a vitima a ceder às exigências dos mais velhos e até a não se
rebelar com os atrevimentos dos mais pequenos que se esfregavam nele quando com
ele cruzavam. Para a maioria dos miúdos o que faziam não era mais do que copiar
a atitude dos mais velhos: a esta distância temporal, aqueles gestos eram um
ritual iniciático duma sexualidade em que só os mais velhos entenderão o
significado na sua expressão total, o que não era o caso de qualquer dos alunos
da aula; quando muito, um ou outro dos mais velhos, teriam uma noção mínima,
inventada ou por ouvirem falar.
O Teófilo era o agitador
principal, talvez por ser o mais velho, líder do grupo, o mais robusto e,
provavelmente aquele em qua a sexualidade mais cedo despontou, tinha já as suas
fantasias sexuais. Uma das que melhor recordo, a de estar convencido e
tentar convencer alguns dos mais novos,
de que poderiam ver a dona Graça a despir-se em sua casa, a partir da torre da
igreja; a casa da família da professora ficava quase em frente da igreja, uma
moradia de dois pisos e águas-furtadas, sendo o segundo piso ao nível dos
sinos, sendo as suas duas tias quem tocava as trindades, ao fim do dia, a partir
da varanda, movendo a corda que ligava o badalo ao rebordo da varanda. Era em
arame e só deixou de o ser quando, durante uma das muitas trovoadas que todos
os anos sucediam, um dos raios escolheu o galo que encimava o suporte, também
em metal, e que girava com o vento, indicando a direção do ar em movimento: era
o catavento e tinha mesmo um texto, cujo autor não recordo, dedicado aos galos
das torres, a que deu o título “O Galo do Campanário” de que voltarei a falar
mais adiante.
Dizia que o arame que ligava o
badalo do sino maior à varanda, conduziu para dentro da casa da dona Graça, o
relâmpago que atingiu o galo do campanário, desequilibrou-se, escorregou por um
dos lados da pirâmide quadrangular e, sem a vara dos equilibristas, percorreu o
arame e, sem pedir licença, entrou pela casa dentro e como caiu, desvairado,
este filho das nuvens em guerra aberta não sei a disputar o quê, deve ter sido
atraído por uma das paredes da sala e aí terminou aquela louca correria. E,
assim, o arame foi substituído por uma corda não havendo perturbação no toque
das Trindades.
A casa habitada pela dona
Graça e família era uma das três, que eu achava mais bonitas; as outras eram a
da minha tia avó, a senhora Amélia Caçote e a do senhor Abel. A arquitetura não
teria nada de especial, mas as varandas e sobretudo os beirais do telhado,
distantes da parede e adornados com peças de madeira trabalhada, a imitarem
rendas com pingentes. Do que vim a aprender mais tarde, eram influências das
artes brasileiras, nomeadamente no Estado de São Paulo, trazidas pelos
emigrantes do final do seculo XIX como a moda trazida, de França e Alemanha,
pelos que, às centenas de milhares, procuraram o primeiro dos países, sobretudo
na década de sessenta do século XX uns para procurar uma vida melhor e outros
para escaparem às guerras coloniais! Brincava-se na época com os que, emigrados
em França, quando tinham condições para fazer a sua casa em Portugal, o que
queriam era: uma casa à maison, com janelas à fenêtre!
V
Nas várias idas à torre da
igreja, com ou sem a liderança do Teo, não constou que alguma vez, algum miúdo,
tivesse assistido ao desnudar da dona Graça, mas as idas seletivas à torre
foram o percurso mais usado durante algum tempo e foi também a sala de aula
para a iniciação do onanismo e comparação dos diversos tamanhos de pénis e seu
comportamento: “ o teu nem fio faz! Dizia o mais velho para o mais pequeno,
cansado do esforço despendido, durante mais uma tentativa de obter o que não
tinha!
Não seria, pela certa, aquela
escola, o exemplo único destes comportamentos; o que talvez não tivesse
sucedido antes, nem depois, foi o juntar-se, no mesmo tempo e espaço, a
voluntariedade e a apatia, a arrogância e o medo, nas suas diversas
demonstrações.
Foi o Teófilo também o
pioneiro noutra área: a das aparições!
A catequese era uma disciplina
que não fazia parte do programa escolar, mas nenhum estava dispensado, nem se
furtava; a dona Graça e toda a família, assim como a maior parte da população
da aldeia, eram católicos, praticantes, pelo menos a missa ao domingo.
Era, mesmo para os que de fé
menos consistente, o local de encontro, um dia por semana, para todos os que,
de segunda a sábado, partiam muito antes de o Sol nascer para as terras ou
hortas e delas regressavam, já o Sol se despedira há muito.
Os filhos, sobretudo os que
andavam na escola, além da missa ao domingo, tinham que aprender o catecismo e
participarem nos atos litúrgicos, permitidos às suas idades. Havia formalidades
a cumprir, preparatórias para o ato mais solene, o da comunhão; e uma vez por
ano, no dia treze de Maio, assistir pela rádio às celebrações em Fátima, da
primeira das aparições da Senhora do Rosário, aos três pastorinhos.
Rádios, como já escrevi antes,
só havia dois: o do senhor Cassiano de Albuquerque e o do senhor Aleixo,
reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela-Angola. A família Aleixo, de
formação católica e menos “aristocrática” que a Albuquerque, era a que
franqueava a sua sala para os rapazes irem cumprir o dever de assistir às
celebrações do treze de Maio; a família Albuquerque acolhia as raparigas.
O rádio do senhor Aleixo,
trabalhando com bateria carregada no pequeno gerador do meu padrinho, ouvia-se
mal, a sala onde todos nos sentávamos no chão, era propositadamente escurecida,
para que as velas iluminassem bem a imagem da Virgem, a quem rezávamos pela Paz
no Mundo e terminava a nossa peregrinação com o adeus à Virgem, na Cova da
Iria, que não víamos, mas também acenávamos com uns lenços brancos que deviam
fazer parte do enxoval da família Aleixo.
O ambiente criado tinha uma
densidade mística que em nada ajudava os rapazes a sentirem-se bem e os da fila
da frente, os da primeira classe, como eu, pelo menos dois, foram atacados pelo
sono e cambaleavam até que uma cotovelada os interrompia e retomavam a posição
de acordados, para logo voltarem para os braços de Morfeu, mais cativantes e que
aquele silêncio e obscuridade mais os empurrava, E lá voltavam a cabecear até
que as cerimónias terminavam e o locutor dava a emissão por terminada.
Que alivio, dizia um deles.
Que soneira me deu, comentava o outro, e cada um ia para sua casa, de tarde não
havia aulas, como recompensa.
VI
Uns dias depois das
celebrações, não recordo quantos nem o ano, mas o Teófilo andava na terceira
classe, ocupava o lugar da terceira fila, mesmo junto da janela virada a Sul,
de onde se viam, as figueiras do senhor Afonsinho e logo a seguir as oliveiras
da tia Badona e um bom bocado de céu, azul alguns dias e carregado de nuvens
outros. Só um bocadinho da encosta do castelo se via.
Foi nesse pedaço de céu que,
certo dia, o Teófilo terá visto a Senhora do Rosário, sobre uma nuvem luminosa,
afirmava ele, como aquela dos postais que a maioria das famílias tinha em casa.
Agitado, prostrado de joelhos e de mãos postas, virado para a janela, foi nesta
postura que a dona Graça o interpelou do porquê daquela atitude e o Teo rezava
a ave-maria em voz alta, perante o pasmo e alguma inveja do resto da turma! Até
a dona Graça ficou espantada e ao mesmo tempo com receio de que o Teo estivesse
a mentir, mas a desejar, interiormente, que aquilo sucedesse na sua sala de
aula!
Nós estranhávamos que ele
tivesse visto e nós não, por mais que arregalássemos os olhos para tentar ver
mais longe, mesmo com aquela ajuda da mão a servir de pala! Se a dona Graça não
via e que era a que melhor devia ver, como professora, como queríamos nós ver?!
O Teófilo foi sujeito a um
rigoroso interrogatório pela dona Graça, pedindo esclarecimentos sobre alguns
pormenores, mas o Teo respondia com a convicção
bastante, adiando a continuação para outro dia, mas desejosa que o seu
aluno fosse por Deus escolhido como protagonista de tal epifania.
Talvez, devido aos horrores da
guerra, que naquele mês tinha acabado, as questões da fé estavam numa fase muito
benéfica, tendo aparecido, tempos depois, em Alfândega da Fé, uma Amélia da
Natividade, que Cristo estigmatizou, durante o sono, com uma cruz a meio da
testa e rapidamente foi pelo povo elevada à condição de santidade, tendo o seu
nome e fotografia percorrido a região e, não sei até que ponto, terá chegado ao
País, levada esta foto pelos correios de Deus e que em minha casa veio ocupar
um pequeno espaço, do tamanho da fotografia, tipo passe, por baixo do pequeno
espelho da sala, onde antes estivera, por pouco tempo, um gavião mal
embalsamado, morto pelo meu tio, José Caçote e que começou a empestar a casa de
cheiro de ave mal matada e pior embalsamada.
A aparição do Teófilo foi
julgada, em primeira instância, pelo senhor padre, chegou mesmo à instância seguinte,
tendo como juiz o senhor bispo da Guarda, que terá absolvido o Teo, sem
milagre, mas que não convenceu toda a gente.
O Teo terá acabado por
confessar que devia ter sido ilusão sua, mas gente havia a dizer que o Teo só
desdisse por a tanto ser obrigado.
Com a santa de Alfandega da
Fé, lá para norte do Rio Douro, acabou por suceder o mesmo, vindo mais tarde a
saber-se que ela fazia a chaga, embebendo uma cruz em água forte que depois
colocava na testa.
Também não convenceu todos e o
meu amigo sem abrigo e mestre de guitarra e farpa envenenada, o ti Vilela, à
boca pequena, acabou por dizer que a igreja não aceitava concorrência às
aparições da Cova da Iria.
No tempo que mediou entre a
afirmação e o desmentido, o caso deu a Alfandega da Fé uma tal importância que
dificilmente se repetirá: eram peregrinações e penitências todos os dias, mesmo
sem os meios de transporte que hoje
existem, desde ligeiros a pesados, até apetece lá ir.
Estas duas mal sucedidas, ou
mal acabadas aparições serviram, um ou dois anos depois, para eu próprio andar
aterrorizado co medo, por pensar ter visto um sinal dos Céus durante a missa e
não o poder revelar, evitando ser sujeito aos interrogatórios como o Teo foi e
ter de negar tudo a seguir.
Os miúdos da escola assistiam
à missa no espaço que vai da nave da igreja até à escada do altar mor,
juntamente com alguns homens e mulheres que eram os principais intervenientes
nas orações em voz alta e os cânticos litúrgicos; um degrau acima da nave, o chão
era em granito e ia até ao primeiro degrau do lugar reservado ao oficiante e o
seu ajudante, ou sacristão.
Durante uma das missas, no
momento da elevação da sagrada óstea, com a luz que entrava pela janela do lado
do castelo, bem acima das cabeças das pessoas, estava eu junto da porta de
entrada para a sacristia, com outros miúdos, reparei que a óstea, elevada aos
céus e mostrada aos presentes tinha, bem desenhada uma cruz, quase do tamanho
da óstea, que eu me convenci ser o único que estava a ter tal visão! E só um ou
dois anos depois, quando eu e o Acácio nos encontrámos na mesma classe, por ter
repetido a terceira, como já ficou registado e porquê, era o Acácio ajudante do
senhor padre nas missas, e eu lhe contei a visão e os meus medos, sendo ele quem
me tranquilizou, dizendo que o molde onde as ósteas eram moldadas, tinha uma
cruz gravada e todas as ósteas saiam iguais, com a cruz gravada na massa de que
eram feitas.
Que alivio eu senti a partir
desse momento!
VII
A dona Maria da Graça Pires
Rodrigues, não sendo natural de Castelo Melhor, veio ali fixar-se com a
família, mãe e tios, numa das casas mais bonitas da freguesia, quer de traço,
quer de localização privilegiada.
A mãe e tia não tinham
ocupação conhecida, para além das lides domésticas e assistência à igreja,
especialmente a tia, limpando-a, enfeitando-a e, como já ficou registado antes,
tocando as Trindades no fim do dia a partir da varanda; o tio, a quem aplicaram
a alcunha de “Valete de Paus”, nunca percebi bem porquê, assim como não soube o
seu nome verdadeiro, além de tio da professora. Era um homem alto, enxuto de
carnadura, de porte austero e muito educado. Era marceneiro ou a essa arte ou
oficio se dedicava, mais como ocupação do tempo que sobrava e que era o dia
todo, já que nem biscates alguém encomendava, os móveis eram poucos e pouco
usados, o mesmo sucedendo com o ti Américo Ferreiro, marido da senhora Rosinha,
ela tomava conta da mercearia e o ti Américo não sei bem o que fazia: na
marcenaria, que até torno tinha, consertava uma ou outra cadeira e ia fazendo
os piões para os garotos jogarem! Eram equilibrados os piões, bem torneados,
mas poucos os usavam, preferindo talhá-los à mão, de um pedaço de carrasco, que
era uma madeira muito mais dura do que a dos piões torneados!
A família da professora tinha
uma pequena horta que dava pouco trabalho! Ou viviam do salário da dona Graça
ou teriam outros rendimentos, não soube na época, nunca quis saber da fortuna
de quem fosse, não por culto, apenas por que não eram coisas que me ocupavam os
pensamentos, se é que pensamentos eu tinha.
Queria era brincar, dar conta
dos recados de que me incumbia a minha Mãe, ir regar a horta que ainda hoje me
emociona, ver onde a perdiz ia fazer o ninho naquele ano, enxertar tudo o que
era bravo para depois ver os enxertos que pegavam e esquecer-me de muitos!
Escrever deve ser ou devia
ser, para quem sabe cumprir as regras, eu escrevo como sei, conforme as
recordações vão surgindo e se debatem para não ficarem esquecidas, entre o
momento em que aparecem e tempo em que são escritas.
O que mais me agradava na
família da dona Graça era a sua cuidada educação, a sua dedicação à igreja e,
como curiosidade mais recente, o possuírem uma burra, comprada numa das várias
feiras que havia na região e a alguém que devia saber do oficio de vender gado
do que o educado senhor, Valete de Paus, de o comprar. Foi vendida como
grávida, quase em fim de gestação. Passaram-se os meses e até os anos e a burra
nunca pariu. Tal como a conheci quando apareceu, assim era quando acabei a
escola.
Uma outra aventura passada com
a tia da dona Graça, a que de inicio ninguém terá assistido, mas que não
custaria acreditar, dado o cuidado da senhora com a igreja, está relacionada
com uma das ações de limpeza dos altares, das imagens e colocar novas flores, a
maior parte do ano, naturais, colhidas nas diversas hortas dos paroquianos, que
achavam que na igreja ficavam melhor do que envelhecerem e secarem, na horta
onde ninguém as via ou na casa de cada um.
O altar de São Sebastião é um
nicho, embutido na parede que dá para o adro, à direita da nave, um pouco antes
do de São Miguel a castigar o Satanás.
O cuidado da senhora era tal,
que não se ficava pela mais simples limpeza da parte visível das imagens (
mesmo que o ditado afirme que o anjos não têm costas!). Como resolveu limpar as
costas da imagem de São Sebastião e sem a ajuda de um banco lhe chegava mal,
mesmo sendo a imagem a de um santo baixinho e entroncado, uma imagem de
conceção maciça, com o braço esquerdo abraçava o pescoço do Santo, puxando-o
para si, assim como se quisesse dar-lhe um apertado abraço para, com a mão
direita, munida de um trapo, lhe limpar toda a parte traseira; ou por que o
santo não gostou da àquela hora ou por aquela pessoa ser abraçado, ou por que o
abraço estava a ser despropositadamente executado, abandonou-se sobre o ombro
da senhora que, já sem forças, ao tentar coloca-lo na posição anterior, ou
seja, em pé e temendo que o santo não ficasse em boa forma se o deixasse
estatelar sobre a fria pedra do corredor frente ao altar e sabendo que não
havia alguém mais na igreja, desatou aos gritos: “quem me acode, quem me acode,
senão o São Sebastião mata-me!” Era a inversão dos papéis, pois se o Santo se
estatelasse quem ia direitinho para o céu era ele e não a senhora que, com
tanto zelo o limpava! A descer, diz o ditado, todos os santos ajudam, mas a
subir...que era o caso, nenhum santo lhe valeu-
Alguém acorreu ao veemente
pedido de ajuda e ao Santo acudiu, fazendo o milagre que não constava que
alguma vez o Santo fizesse, talvez por nunca lhe ter sido pedida ajuda ou andar
tão distraído na sua santa vida, já que as quedas são tantas e todos os dias
que, se todos pedissem socorro o santo não daria conta do recado; teriam que ir
para a bicha, mais comprida e demorada do que a das urgências dos hospitais
portugueses, onde as pessoas acorrem à espera de algum milagre ou salvação.
O São Sebastião lá se safou e
na segunda-feira a seguir à da Páscoa, também chamada a segunda da Pascoela,
alinhou na procissão e foi dar uma volta à aldeia, montado no seu andor, limpo
e inteiro, fazendo companhia ao anjo São Gabriel, com casa posta lá no alto do
monte com o seu nome, cujas festas se realizam uma semana depois da Páscoa.
Realizavam, agora mudaram para o Verão, para atender à emigração.
Consta que do susto não mais
recuperou e não mais permitiu que a senhora o abraçasse às escondidas, nem por
qualquer outra, mesmo que mais nova e com mais força como é natural. Também não
consta que São Sebastião ande descontente, nem tenha pó que dê nas vistas.
VIII
Desde os primeiros dias de
escola tive alguma dificuldade em me conciliar com algumas matérias ou a forma
de as apresentar! E só não houve confronto antes por que os mais velhos, como é
hábito, não deixavam os mais novos serem atrevidos. E na escola era bem marcada
esta característica. Se algum pisava o risco, levava umas lambadas.
Das que recordo, a que mais
curiosidade
despertou foi a dos três reinos da Natureza:
Fica em destaque
OS TRÊS REINOS
NATURAIS
O grupo coral dos mais
pequenos, lá nas carteiras da frente, cantava a tabuada:
- três vezes um, três; três
vezes dois, seis; três vezes…!
- junto da secretária, de
madeira, velha há muitos anos, da Dona Graça, o pequeno grupo dos maiores,
tinha a primeira aula de ciências da Natureza.
E, por uma frincha do coral da
tabuada, ouvia-se distintamente a afirmação da senhora professora, a garantir
que apenas três reinos formavam a Natureza: o reino Animal, o reino Vegetal e o
reino Mineral. Assim mesmo e por esta ordem de apresentação.
O Silvério, atento à conversa
reinante, ouviu e calou aquela dos três reinos, a forma como a Dona Graça os
ordenou e a nota de que, ao primeiro dos reinos, pertencíamos todos nós, os
garotos da escola, ao segundo pertenciam a figueira e romãzeira do senhor
Afonso e as oliveiras e damasqueiro da tia Badona e todas as arvores e ervas;
ao último, o mineral, pertenciam o penedo do Seixo, as pedras do Castelo e o
rochedo onde o Anjo poisou e as pedras de que eram formadas as paredes e todos
os calhaus, pequenos e grandes, uns que viviam arrumadinhos e quietos e outros
que se devem ter fartado de estar ali, a olhar para os animais que passavam e
as ervas que cresciam, resolveram alargar o campo de visão e por ali andavam,
tropeçando uns nos outros, levados pelas chuvadas, sem poiso certo.
O Silvério olhou de lado para
o Teófilo, mas nada disse.
Todos conhecíamos bem o
Silvério e sabíamos que ele não ficou satisfeito com aquela ciência dos Reinos
e que, mais dia, menos dia, iria pôr a questão em pratos limpos. Não tardou
muito. No intervalo para o almoço, que veio logo de seguida, mesmo antes de
cada um ir para casa comer o pão com azeitonas ou com figos secos, para a
maioria servia de almoço, exceto para o filho do senhor Júlio da Estação, que
comia a bucha que trazia lá do fundão, junto ao Douro, sentado à sombra, nas
escadas da casa do senhor José Madeira, também conhecido por José Laco, nunca
soube porquê; também o Acácio e o Aníbal que em casa tinham refeição quente!
Estava a dizer que antes de
dispersarmos para o almoço, convocados de emergência pelo Silvério, reunimos,
três ou quatro, na traseira da escola, a “quelha”.
Em redor do Silvério nos
juntamos: eu, o Aníbal de Foz Côa, o Teófilo e o Albertino!
Logo o Silvério perguntou se
tínhamos ouvido o mesmo que ele, aquela coisa dos Três Reinos. Eu e o Teófilo
respondemos afirmativamente, o Albertino e o Aníbal, não. Teve de repetir para
os dois a conversa dos reinos.
E que tem isso de mal?
Perguntou o Albertino.
O Silvério, num tom de voz
irritado e de segredo, perguntou-nos:
Então nunca ouviram o senhor
padre, durante a missa, falar no reino dos Céus?! E todos acenaram com a
cabeça, que sim…
Mas a professora não ia
mentir, interrogava-se o Aníbal!
E achas que o senhor Padre ia
inventar aquele reino? Interrogava-nos o Silvério para saber mais do que a
senhora professora?
Assim, parece que, pelo menos
quatro, há! E de imediato o Silvério perguntou quem iria esclarecer esta
divergência da quantidade dos reinos?
O Teófilo foi o primeiro a
dizer que não, por se lembrar bem, ele e nós, mais ele que nós, naturalmente, a
ele doeram as cinquenta reguadas, castigo aplicado por ter sido acusado de, um
ou dois dias depois do treze de Maio, ter inventado uma visão da Senhora de
Fátima, envolta numa nuvem, passando em frente de uma das duas janelas voltada
a Sul, por cima do Abixeiro, na direção da Capela do Anjo.
Ficou assente entre o Teófilo
e a Dona Graça e nós todos, que aquela visão, ou aquela invenção, se devia ao
efeito de, dois dias antes, termos estado todos, em casa do senhor Aleixo, mais
de duas horas, a ouvir pelo rádio, as cerimónias de Fátima, quase sem luz e
deve ter querido parecer-se com o pequeno pastor da Cova da Iria!
Nós apenas testemunhámos a
sentença e o Teófilo acenar que sim, quando devia dizer que tinha inventado
tudo!
Ah, tínhamos assistido à sua
versão inicial, em plena sala, com a sua insistência e que continuou, não
recordo por quantos dias e sessões entre o senhor Padre e o Teófilo, com a Dona
Graça a assistir e certamente ajudar nalgum pormenor.
O Albertino disse que também o
não fazia, invocando o que passou, meses a fio, com a sua visão da cruz, na
hóstia que o senhor padre ergue, no momento da elevação e que só terminou
quando, em segredo, perguntou ao Acácio, ajudante nos atos litúrgicos e nosso
colega de escola.
Como nunca tínhamos ouvido
falar de tal visão, logo o Silvério quis conhecer os pormenores!
- Albertino, ainda não muito
seguro, explicou: estava no espaço onde costumam estar os garotos, junto da
porta de entrada para a sacristia e em frente estava era a janela com vidros de
várias cores, ficando o altar entre mim e a janela! Quando o celebrante,
segurando a hóstia nas pontas dos dedos, a elevou, bem acima da sua cabeça, vi
o que nunca tinha visto: uma cruz quase do tamanho da hóstia! Só pensei num
sinal vindo do Céu e me escolheu para testemunhar que era o corpo de Cristo que
na Cruz morreu para remir os nossos pecados. O Acácio explicou como eram feitas
as hóstias! Foi o Acácio que me salvou, mas com a salvação se foi a esperança
de ter sido eu o escolhido para testemunhar!
O Albertino tem razão, já
passou o seu mau bocado e a coragem nunca foi muita.
O Aníbal muito menos; não por
medo das reguadas que imaginava, ele até se gabava de já nem lhe doerem e que
só no Inverno, com as mãos geladas, é que custava mais!
Como não estava muito seguro
de se sair bem nesta confusão dos reinos, lembrou-se de que era sempre ele quem
partia as réguas e o tio da Dona Graça ter que fazer outra, para repor a de
reserva, pois não seria por falta de meios que a justiça não seria aplicada! E
era também ela, o Aníbal, quem juntava os ratos mortos com trigo roxo e os
escondia por debaixo da mesa da senhora professora, que mandava evacuar a sala
e abrir as janelas para despoluir o espaço! Era também ele quem declarava a
greve mal a professora se atrasava um pouco. Escrevia no quadro e tudo para o
recreio.
Não recordo bem porquê, deu-se
um compasso de espera, parecendo que o problema dos reinos ficaria entre a
ciência e a devoção! Mas foi Sol de pouca dura!
As aulas de história, em que
só os que tinham de aprender davam a atenção que conseguiam, passaram a ser
alvo de curiosidade quase geral; os da tabuada cantada não queriam saber do que
nada tinha a ver com eles e dar conta do recado que tinham, chegava bem.
Ao grupo que investigava os
reinos apareceu nova surpresa na História: o Reino de Portugal, o Reino Unido,
ao que o senhor Padre correspondeu com os três reis Magos…! Era tal a inflação
que já dava para brincar, fazendo comparações: ou com o comboio e carruagens,
um formigueiro e o Silvério ainda arranjou um primo, chamado Reinaldo e que
estudava no Porto.
Perante este naipe de
divergências, foi convocada uma nova reunião para dois dias depois, no mesmo
local e no final da última aula.
Ficou decidido que aquela cena
dos reinos nem sequer era divertida e não havia vencedor, a professora tinha um
maior número, mas os do senhor Padre eram doutro valor!
E como qualquer um podia ter o
seu reino, resolvemos que iriamos assumir a posse das muralhas do nosso
castelo, com os reis que connosco quisessem colaborar, passando a ser a sede do
Reino dos Exploradores de contradições.
A bandeira, que o Aníbal
desenharia, teria sete cores, tantas como as que dizem que o arco-íris tem e
ficará içada na parte da muralha que mais se parecia com uma peanha a torre de
menagem.
Esquecemo-nos de lavrar ata da
decisão, mas como não havia nenhuma anterior…o Silvério iria fazer o rascunho
para depois ser aprovada e registada.
Tudo perdido! A América
atirou-se à Coreia como gato a bofe, o Silvério, o Antoninho e o Alcides foram
para o rebusco do minério e quando acordámos o castelo apareceu com uma placa
em pedra branca e cravada na entrada onde estava escrito
“
PATRIMÓNIO DO ESTADO”
“Há, aqui, um pequeno
desajustamento temporal que se deveu a um acidente de que resultou o
desaparecimento de todos os textos, tendo refeito os Três Reinos e os incluí
noutro conjunto! Ficou mais desenvolvido e ganhou uma dinâmica diferente!”
IX
Ainda na terceira classe, já
com um invejável cadastro, de penas cumpridas e outras por cumprir, atrevi-me a
levantar essa e outras questões, que me foram valendo, por cada vez que nelas
insistia, uma pena de cinquenta reguadas, vinte e cinco em cada mão, contadas
pela turma, como se estivessem a aprender a contar! E aprendiam: ou porque a
régua aparecia partida ou por que desaparecia mesmo, ou por que os ratos que o
trigo roxo tirara da circulação e apareciam no espaço da secretária onde a dona
Graça resguardava as pernas, até um cágado morto, encontrado no ribeiro, foi
para àquele espaço bem perto dos pés da dona Graça; também uma pequena cobra lá
foi parar, depois de me ter recusado a ir limpar as ervas do cemitério, mais
tarde por causa do latim, que terá tratamento próprio, até ao apostar com o
Antoninho, colega de carteira, de que acertaria, com uma areia que estava no
chão da sala, na cabeça da dona Graça, debruçada sobre algo que estava a ler e
que já nem perguntava quem teria sido, chamando-me para aplicar a dose das
cinquenta reguadas.
A última que recordo,
andávamos já na quarta classe, numa aula de história, em que fez uma pergunta
aos colegas, que não responderam, sendo a mim que perguntou em último e eu
recusei-me a responder, embora dissesse que sabia! Após as cinquenta do
costume, ainda com as mãos a chiar, fui à carteira, escrevi a resposta numa
folha do caderno, peguei na trouxa, passei frente à mesa onde a dona Graça
estava e a olhar para mim interrogativamente, larguei a folha com a resposta e
saí porta fora, sabendo que no dia seguinte iria, à chegada, aparar a dose das
cinquenta.
A partir dessa altura,
qualquer coisa que se passasse, era a mim que chamava e só uma vez não acertou,
mas não ficou a saber, nem eu, porque o autor da proeza não se deu por achado.
Vista a situação com esta
brevidade, poderá pensar-se que, entre mim e a dona Graça, havia alguma
intencional e excessiva agressividade e falta de respeito da minha parte. Puro
engano! O que havia era um temperamento de rebeldia da minha parte, a que hoje
chamaria formas de afirmação; e da parte da dona Graça era, posso garantir, a
forma de tentar manter o equilíbrio para o funcionamento das aulas. Seria,
certamente, a explicação mais coerente, mas ao cabo de tantos anos de vida e
tantas situações terem ocorrido, sou capaz de admitir que tenho alguma
dificuldade em me adaptar a rotinas, procurar o caminho mais fácil para que as
coisas sejam conseguidas. Gosto, digo-o agora, longe daqueles tempos em que não
valorizava cada pormenor, de clareza, de equilíbrio, de justiça e não me ajusto
ao panfleto.
Ao contrário de outros, eu
aprendia com facilidade, sem necessidade de grande aplicação, e a dona Graça
tinha uma certeza enraizada, que a experiência de muitos anos de contacto com a
escola e com os miúdos confirmavam. E se repeti a terceira classe foi porque a
gestão da turma assim aconselhava, pois ela sabia, naturalmente, quantos alunas
entrariam cada inicio de ano e se eu fizesse o exame naquele ano, no ano
seguinte teria só dois alunos na quarta classe a apresentar a exame.
Quando chegou o tempo de
exame, o primeiro, era só eu e o Antoninho! Pegámos na ciência ainda bem cedo e
fizemo-nos ao caminho, a pé, para Almendra, a cinco quilómetros de distância,
por caminhos de chão à vista, mostrar o que sabíamos.
O Antoninho, que herdou da
família a alcunha de “Matacho” era ligeiramente gago, ou tartamudo, e foi
sempre um amigo de quem gostava e ele retribuía sem esforço.
Para que os exames se
realizassem na aldeia teriam de ser, pelo menos, quatro examinandos, motivo por
que fomos para Almendra.
A prova escrita era de manhã e
de tarde seria a oral. Correram bem, ambas, dando até para um dos examinadores,
na prova de geometria, depois de desenhar o trapézio isósceles, perguntou-me o
que a figura me fazia lembrar? Um alguidar, virado ao contrário. Risos na
plateia!
Na quarta classe eramos três:
o Antoninho, o filho do senhor Júlio da estação e eu. Os exames eram em Foz
Côa. Como a dona Graça fazia parte da equipa de examinadores e tinha família na
Vila, tios e prima, negociou com a minha Mãe a nossa ida e ficarmos alojados na
casa da sua família. Assim fizemos. Partimos numa segunda-feira: a dona Graça,
a tia Amélia e eu, foram as primeiras e únicas férias que fizemos.
Ainda nesse dia fui conhecer a escola e os
arredores e também alguns dos examinandos de outras aldeias que, como nós, para
ali foram para o mesmo que eu.
Um colega, de Foz Coa, cujo
nome não recordo, que era filho de um comerciante de quase tudo, era assim que
as lojas funcionavam, não percebi porquê, quase me adotou como amigo desde o
primeiro dia. E com ele conheci Foz Coa de fio a pavio; com ele ia assistir às
provas orais conforme se iam fazendo e com ele tomei o primeiro café numa
esplanada.
A partir de um casaco do
Reinaldo ou do Álvaro, nunca soube, foi adaptado pelo ti Fernandes, para o meu
tamanho, um casaco de branco linho, bem mais fresco que os tecidos habituais!
Pelo filho, o Gualdim, foram adaptados uns sapatos não sei de quem, mas que
deles gostava por serem os primeiros, sempre tinha usado botas, que o senhor
Marcolino, pai do Acácio e do Alcides e o Leonel, talhava à medida, com rasto
de pneu ou de sola com alguma proteção de cardas no rasto.
Não recordo se houve algumas
manifestações externas, mas eu estava ufano naquele cenário.
A família que nos alojou, tios
da dona Graça, deviam gostar muito dela, o tio, além de simpático, era
divertidíssimo, sempre encontrava algo para contar que dispunha bem e da horta
trazia sempre algum coisa para a sobrinha: rosas, frutos, ovos, viviam bem e
pareciam felizes e alegres. Foi muito bom aquela acolhimento.
X
No segundo dia, terça-feira,
foi a prova escrita, para mais cerca de uma dezena de miúdos de outras
freguesias e os três de Castelo Melhor.
Estávamos agrupados em três
filas de carteiras, um em cada carteira e em cada fila um de nós. Decorria a
prova de caligrafia, que correspondia a duas ou
três linhas do ditado, acabado de ser ditado e escrito, logo abaixo, na
mesma página.
Um dos examinadores, em passo
lento e mãos atrás das costas, passeava pelos dois corredores entre as três
filas de carteiras, com ar distraído, mas atento, olhando pelo canto do olho,
vendo a destreza dos examinandos. Ao passar junto a mim, parou por instantes e
logo avançou para o outro corredor, parecendo-me que tinha feito a subtil
paragem junto de cada um dos outros dois de Castelo Melhor.
Quando a prova terminou e o
professor levantou a minha, perguntou-me por que motivo eu, na parte da
caligrafia, e apontava as duas linhas, tinha preenchido todo o espaço entre as
linhas, tendo cada letra o tamanho daquele espaço, enquanto os meus dois
colegas só tinham preenchido metade do espaço, desenhando as letras com metade
do tamanho das minhas? Respondi que não fazia ideia do que os colegas tinham
feito, eu fiz como me foi ensinado pela dona Graça, tendo eles aprendido da
mesma forma! Terá feito a mesma pergunta aos outros dois, não ouvi, mas ambos
ficaram atrapalhados!
Recolheu todas as folhas das
provas e deve ter falado com a dona Graça e ela deve ter esclarecido o curioso
senhor.
Quando nos encontrámos, na
rua, os três, dei-lhes conta da conversa do professor e eles disseram que iam com
a intenção de fazer como tinham aprendido, mas como os outros miúdos de outras
escolas estavam a preencher só até metade da entrelinha, eles resolveram fazer
o mesmo, mas se calhar tinham feito mal. Nada mais ocorreu.
Ao almoço, em casa dos nossos simpáticos
hospedeiros, que recordo ter sido bacalhau cozido com a batata, ovos e couve, a
dona Graça mostrara-se descontente com o que se passara na prova escrita,
referindo-se ao procedimento do Antoninho e o João, por terem decidido seguir
os outros em vez de optarem pelo que lhes foi ensinado. Fiquei a saber, sem ser
dito. Que o examinador deve ter consultado a dona Graça sobre esta dualidade e
qual estaria correto.
Nos dias seguintes, em que não
havia provas orais a decorrer e às quais eu ia assistir, deu para conhecermos
um pouco mais de Foz Côa, ciceronizado pelo colega que entretanto recordei que
era tratado por Gouveia.
O calor, naquele final de
Junho, era sufocante, tal como seria em Castelo Melhor ou mesmo mais, mas devia
ser apenas suposição. A vila tinha já alguns tinha já casas abastecidas por
água da rede pública. Este pormenor tem a ver com a minha decisão de tentar
beber água de uma das torneiras de manutenção mal fechada e que escorria um
fiozinho de água, mas nem engoli, tal era a temperatura a que estava, mais
parecendo caldo acabado de fazer.
Na antevéspera do dia fixado para a prova oral, a tia
Amélia e a dona Graça, com alguma experiência de negociarem por mim, coisas a
meu respeito, devem ter achado que um rapaz tão bem ataviado, mesmo com peças
restauradas e em segunda mão, não estava a condizer o cabelo indomável e nunca
penteado, espesso e a cair para a testa, deram-me a entender que o devia mandar
cortar, mesmo que isso representasse um encargo suplementar, uma vez que os
cortes de cabelo e barbas para os que a tinham, era por avença com o barbeiro,
o ti Alexandre, talvez por ter sido criado connosco, pois havia outros
barbeiros, mas era como se fizesse parte da família: assim como era com o
ferrador e alguns produtos de mercearia; pagava-se no final da colheita e
quando a não havia por ter sido um mau ano, acabava por ficar em divida para o
ano seguinte.
Aceitei a proposta de cortar o cabelo em Foz Coa, mas
talvez por me não ter agradado, disse ao barbeiro que queria o cabelo cortado rente!
Foi uma confusão dos diabos quando a tia Amélia me viu naquela figura, mas
depressa percebeu que o mal que não tem remédio, remediado está, lá diz o
adágio.
Só que as coisas em casa eram tratadas com outra filosofia,
em que ambos nos conhecíamos bem e bem nos dávamos; o pior estava reservado
para o dia da prova oral: os risinhos individuais, aos poucos foram aumentando
e não tardou a toda a plateia gargalhar, a tia Amelia encolhida com vergonha,
sentada ao lado do senhor Júlio da estação, o pai do João, que ía fazer a sua
prova também! Um dos examinadores pediu à plateia silêncio, para não
perturbarem as provas.
Dirigi-me à carteira que me estava destinada, mas não olhei
para a divertida plateia.
Eu fui o penúltimo a prestar prova, não sei porquê, mas não
deve ter sido propositado. A prova estava a correr tão bem que até eu me estava
a divertir! Ao contrário do que sucedera com os anteriores examinandos, a quem
tinham feito três ou quatro perguntas e mandado resolver dois ou três
problemas, eu ia já para além de uma dúzia, a maioria deles resolvidos de
cabeça, sem necessidade de escrever no quadro; a aritmética era uma disciplina onde me sentia bem e daí a
facilidade.
Também correram bem as questões da história e de português,
mas o final, com a geografia, foi apoteótico! O mapa por onde teria que me
regular era diferente do que nós usávamos em Castelo Melhor, era aquele a que
nós designávamos por mapa mudo, por não ter as cores habituais por distrito e
nem o nome das cidades, rios e montanhas! Informei a mesa de que não tinha sido
por um mapa igual que tinha estudado, ou melhor, aprendido, prontificando-se um
dos examinadores a rocá-lo! Não vale a pena, respondi; talvez até nem precise
do mapa ( agora, os sorrisos mal disfarçados, vieram da mesa). Começaram as
perguntas sobre rios e caminhos-de-ferro, com seus afluentes e ramais e as
respostas foram dadas sem vacilações, até que o professor declarou que tinha
terminado as perguntas. Na história, logo de seguida, as perguntas devem ter
sido feitas para eu brilhar e as respostas corresponderam à expetativa, de tal
modo que a plateia, antes agitada e divertida à custa do meu corte de cabelo,
agora, em pé, batia palmas! Aqui, sim fiquei envergonhado.
Soube mais tarde, quando me juntei a eles, que a minha mãe,
analfabeta, mas sábia e inteligente, a certa altura da minha prova, terá
comentado para o senhor Júlio, que me estavam a crucificar com tantas perguntas
ao contrário dos anteriores! O senhor Júlio terá respondido: que não, os
examinadores estavam a gostar tanto da minha prova e que até eles estavam a
brilhar.
O resultado final foi a distinção. Segundo soube mais
tarde, este tipo de classificação deixou de ser atribuída a partir desse ano,
mas não fui eu quem decidiu tal. Garanto. Passou a ser: aprovado ou reprovado!
XI
A não inclusão, no espaço e no tempo próprios, deste
conjunto de recordações, o episódio de que não devia ter recordado, não por
falha de memória, mas por que continua a ser-me desagradável:
A
VISITA PASCAL, de Sua Excelência Reverendíssima, o Bispo da Guarda, a Castelo
Melhor:
O tempo certo seria quando abordei os merecidos castigos na
escola, aplicados pela dona Graça, professora dos rapazes, que já tinha sido
antes, dos meus irmãos, Licínio e Ernesto, bem melhor comportados, tudo leva a
crer.
Terá sido no ano de mil novecentos e quarenta e nove,
quando estava a repetir a terceira classe, que soubemos da anunciada visita a
Castelo Melhor, do senhor bispo da Guarda. O pormenor do ano exato só me
pareceu interessante por ter tido outro direto protagonista, o Acácio, filho do
senhor Marcolino, com quem não fiz nenhum dos dois exames, como já ficou a constar.
Continuando, com esta ressalva.
Num dos primeiros meses do ano foi pelo senhor padre
anunciada a visita Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima, o bispo da
Diocese, no período da Páscoa.
A recordação que tenho é que houve entusiasmo por parte de
algumas pessoas, pelo menos curiosas pela novidade do evento anunciado e não
tanto de outras, manifestamente indiferentes.
Os preparativos começaram, sem grandes investimentos, a
comunidade era pobre e os dinheiros do minério, finda a guerra, logo
desapareceram! Tal como se costuma dizer: “o dinheiro mal ganhado, água o deu,
água o levou!” e levou mesmo. Sempre há um ou outro que amealhou uns cobres,
mas só os intermediários no negócio é que faziam fortuna; os garimpeiros só
tiveram trabalho e muitos sustos. Em termos gerais, no que toca aos dinheiros
do minério.
Voltemos à visita do senhor bispo:
A dona Graça e família, como
foi já anotado, eram católicas devotadas por formação e tradição e não pelo
facto de morarem junto à igreja. Natural era que integrassem e dinamizassem o
grupo de receção, tendo o senhor padre como responsável geral e incluía a Junta
de Freguesia, ou seja, o meu padrinho, Cassiano de Albuquerque. A Junta era ele
e desde há muitos anos.
Na escola, a dona Graça,
certamente de acordo com o senhor padre, devem ter achado bem que dois alunos
deviam intervir nas cerimónias e para isso iriam aprender algumas frases em
latim, o que não era o mesmo que ir aprender latim.
A escolha recaiu em mim e no
Acácio, talvez por sermos os que melhor assimilávamos e fixávamos; o Acácio já
com alguma experiência por ajudar à missa.
Eu fiquei entusiasmado: era
uma coisa nova, embora a missa fosse em latim, mas não dava para aprender o que
ia sendo dito durante a celebração da eucaristia e ainda o que era dito pelo
senhor padre noutras cerimónias, nomeadamente durante as missas de corpo
presente, onde o meu impreparado ouvido teimava em ouvir, em certo momento da
exortação a frase que soava “ ao ver enteseia! “. Se a curiosidade fosse de
fácil resolução, não andaria naquela dúvida, como andei! Mas quem se atreveria
a ir perguntar ao senhor padre o que ele dizia naquela passagem das missas de
corpo presente. E menos ainda pronunciando a frase tal como me soava ao ouvido!
O castigo não seriam reguadas! E se o tivesse feito, mesmo que através de outra
pessoa e fosse esclarecido, não haveria agora razão para ser recordado, nem
escrito.
Começaram as aulas latinadas,
extracurriculares, bem assimiladas por ambos os “formandos”(entre aspas, o
termo não era comum à época), pelo que os formadores iam dizendo, durando até
uma semana antes da visita esperada e para alguns, desejada mesmo.
A teoria estava pronta, era
chegado o tempo de preparar a fase da sua aplicação: a dona Graça foi
explicando que o que nós aprendemos era para ser dito, em jeito de diálogo, com
Sua Excelência Reverendíssima, um pouco como se fazia nas missas, em que os
participantes respondiam, ou repetiam, ao que ou o que o celebrante dizia. Só
que nós, o Acácio e eu, o faríamos em dueto, nas costas do senhor Bispo e
segurando, cada um de seu lado, as pontas do seu longo manto.
Foi um choque profundo aquele
anúncio. De tal modo me abalou que, de imediato, esqueci todo o latim e, num
português razoável, comuniquei à dona Graça que não contasse comigo para
segurar o manto de Sua Excelência e que não mais voltaria às aulas de latim.
E lá voltámos às sessões de reguadas,
aplicadas mesmo antes da aula escolar se iniciar, todos os dias que eu faltasse
ao latim, ou seja, todos os dias.
Esta atitude chegou mesmo aos
ouvidos dos meus pais, mas não houve qualquer tentativa para me convencerem,
ambos me conheciam bem, sobretudo a minha mãe. Nem sequer foi comentado na
minha presença, o que não quer dizer que, entre eles, não discutissem o
assunto. Estaria, sem nisso pensar ao tempo, a aplicar a regra da minha
progenitora: “ primeiro, as obrigações, depois as devoções”. Ora, o latim não
fazia parte do programa escolar, logo não era uma obrigação e menos ainda o que
me propunham na prática: segurar o manto do senhor Bispo.
Enquanto decorriam as minhas
sessões de reguada, ou seja durante a semana que antecedeu a chegada do ilustre
visitante, apareceram na aldeia duas freiras e um frade, da ordem dos
Franciscanos, com seus hábitos até ao chão, ele de tecido castanho, capuz que
nunca o vi usar, atirado para as costas e um cordão branco, atado à cintura, na
ponta do qual tinha um cruz em madeira; as freiras, vestindo de preto, com um
cordão à cintura como o do frade e na cabeça um toucado em tecido bem desenhado
e engomado para se manter na posição exigida sem dobrar ou ficar com mau aspeto
Não soube se era para ficarem
toda a semana, mas tudo levava a pensar que sim: o frade chamou a si as
criancinhas, cativando-as com a sua simpatia e ajudado por um ratinho a que
dava corda e o rato parecia louco a correr, sem se encostar às paredes, como
fazem os ratos naturais. Conseguiu cativar os miúdos e ensinou-lhes alguns
jogos de que os miúdos gostaram. Ficou até à vinda do senhor Bispo.
As freiras, deviam ter a seu
cargo, visitar cada uma das casas da aldeia, mas se era essa a intenção, ou
missão, foi abruptamente interrompida e ficaram apenas um dia e parte do
segundo, após um acidente, que a sua raridade provocou a uma das paroquianas.
Embora as portas de Castelo
Melhor, todas as portas, estivessem invariavelmente abertas, quando em casa
está alguém, as freiras, talvez por delicadeza e boa educação, batiam sempre às
portas das casas que visitavam e perguntavam se estava alguém?
A visita que fizeram e que
deve ter sido a última, foi a casa do ti Herculano e esposa: bateram na porta e
perguntaram o costume, a esposa, numa tarefa de cozinha, respondeu que estava e
mandou entrar, quem vinha com Deus e continuou o trabalho que estava a fazer,
enquanto as visitas iam subindo os muitos degraus sem um patamar e quando
chegaram ao sobrado, pararam. Foi então que a visitada se virou e viu, no lusco-fusco
da casa, duas estranhíssimas figuras que, em coro, lhe desejavam um bom dia!
A senhora, cujo nome não
recordo, ao deparar-se com aquela visão, recortadas pela pouca luz que da rua
subia as escadas, gritou: “ ai, valha-me Deus” e, sem pensar muito, quase se
atirou para a escada, com a intenção de fugir daquela casa assombrada! A pressa
era tal que se desequilibrou e desceu a escada aos trambolhões e quando
aterrou, junto da porta estava já com uma perna partida. Depois de prestarem os
cuidados que podiam e sabiam, as duas irmãs terão partido para o convento e não
voltaram.
O frade não. Virado para as
coisas dos juvenis, passava os dias rodeado de tudo o que era garoto; todo o
povo gostava dele, pela sua simpatia e fácil comunicação.
Os miúdos e alguns já
crescidotes, deliravam com as corridas do rato e o som que emitia a corda a
desenrolar, batendo em tudo o que se atravessava na carreira. Os ratos que eles
conheciam, bem mais velozes, corriam junto às paredes, de olhos bem vivos e não
batiam com a cabeça em tudo que aparecia. O problema dos vivos era quando algum
gato se atravessava ou a fome apertava e comiam o que aparecia: por vezes era o
trigo roxo ou o isco da ratoeira.
Durante a Semana Santa o frade
ajudou o padre Madeira no confessionário e deve ter ouvido confissões que ao
padre Madeira eram omitidas, mesmo que incorrendo em grave pecado. Deve ter
sido o ano em que a maior parte das pessoas se confessaram, com a garantida
exceção do ti mudo que sempre foi dispensado.
XII
A chegada de Sua Excelência
Reverendíssima era no Domingo de Pascoa.
Logo pela manhã o povo andava
numa fona viva a espalhar as últimas flores pelo chão que vai do cimo da
Cascalheira até ao adro da igreja e porta principal; ao mesmo tempo iam vendo
se estava tudo nos seus lugares.
Vieram gentes de outras
aldeias para assistirem à celebração da Eucaristia por um representante da
Igreja acima de Padre, coisa rara e nunca vista por aquelas bandas: ver de
perto uma figura da igreja, entidade maior de Diocese e alguma curiosidade
também para ouvir a sua mensagem do sermão.
Chegou por volta das dez
horas, transportado num jeep da Guarda Republicana de Almendra, adornado para o
efeito e em conformidade com a personalidade que transportava. Para que não
fique por esclarecer, o transporte em jeep tinha que ser, por que só numa
viatura desse género chegava a Castelo Melhor.
O meu primo Reinaldo,
estudante de liceu no Porto e em férias na sua terra natal, foi o encarregado
de ler a mensagem de boas vindas do povo da aldeia. Subiu para um pequeno
estrado montado no alto da cascalheira, de costas para a casa de seus pais e
entre as da avó e tia Cecília, tendo por cima, pendurado entre dois paus, um
pano branco onde estava escrito, em letras bem grandes e tinta azul, mais ou
menos isto: “ O povo de Castelo Melhor agradece a vinda do Pastor em visita ao
rebanho! Viva o senhor Bispo”.
Tudo correu como esperado,
foram gritados Vivas ao senhor Bispo, bateram-se muitas palmas, sem grande
pompa, mas muita solenidade. O senhor bispo agradeceu com um breve gesto e, a
pé, se encaminhou para a igreja, com todo o Povo e arredores, atrás, que encheu
todo o espaço da nave da igreja e coro, incluindo a escada que lhe dava acesso
e também à torre, ficando ainda muita gente que não conseguiu entrar.
Frente ao altar-mor o senhor
bispo ajoelhou e esteve em silêncio a orar, seguindo depois para a sacristia,
acompanhado dos vários padres que nunca tinha visto e do padre Madeira, prior
de Almendra e Castelo Melhor. Saiu, já paramentado, com seu báculo na mão esquerda,
a mitra vermelha e seu longo manto que dois dos padres da comitiva seguravam.
Os que não couberam na igreja
pediam aos que estavam dentro para não fazerem barulho, para poderem, ao menos,
ouvir o que o senhor bispo dizia, o que me pareceu estranho, sendo em latim que
se expressava.
Quando chegou o momento do
sermão e por haver muita gente na rua, alguém terá sugerido e decidido, que
fosse montado fora da igreja um púlpito em madeira para que o senhor bispo
pudesse falar e todos o vissem e ouvissem.
Não tardou muito a ser
improvisado o púlpito e logo os de dentro vieram fazer companhia aos de fora,
largo cheio e pessoas encarrapitadas em tudo o que era mais alto, varandas e
bancos e sobrava gente para a rua do Abixeiro.
E, assim, começou o sermão!
Falou do que foi informado
sobre a paróquia e paroquianos, das capelas do Anjo e de Santa Bárbara, que não
visitou, do padre Madeira e todos os outros, presentes e ausentes; quando
chegou a vez de falar da igreja, disse:
“ que o coro estava uma
vergonha, mais parecia um galinheiro e todo o pessoal concordou com um murmúrio
que percorreu toda a gente, pois ao coro, sem coral, ia parar tudo o que eram
andores, bancos e cadeiras partidas, entulho para ser mais claro.
Metia medo, o coro! Era quase
só ocupado por homens durante a missa e servia de esconderijo aos miúdos quando
brincavam às “escondidas”. Pó, era o que não faltava; e ratos, mas a sério, não
como o do Franciscano, mas daqueles que os gatos tentam e por vezes conseguem,
apanhar.
Referiu-se aos altares e às
imagens que os ocupavam; a certa altura houve um pequeno agitar no meio do
povo, quando uma exaltada senhora, tia da professora dos rapazes, gritou viva o
Senhor Bispo e talvez por ser baixota, pôs-se em bicos de pés e até terá
ensaiado um pequeno salto. A voz que se ouviu era a ti Zé Manuel, pai da Maria
Anastácia e de profissão “alcoólico” e meio tonto: “ ai que esta puta já me
pisou!”, mas que só os mais próximos terão ouvido e percebido, mas houve uma
zoada que poderia ser interpretada como agoirenta.
Quando o prelado se referiu ao
altar da Nossa Senhora do Rosário e à imagem que ocupava o altar, vestida de
seda azul celeste, a mais venerada dos crentes, e disse que aquela imagem já não
se usava (tudo o que devia ser o corpo era uma roca ou rosca em madeira e só o
busto e a cabeça eram em madeira esculpida e pintada), pareceu que alguém
deitou pólvora numa fogueira! Um frémito percorreu toda a plateia e uma agitação
de corpos e braços e mistura de vozes num ápice atingiu todo o largo,
ouvindo-se frases como: isto é demais”, “isto é uma vergonha”, é um insulto a
Nossa Senhora”, frases que foram aumentando de tom e volume sonoro, estando já
a ser gritadas; e de todos os lados as pessoas de trás empurravam os da frente
tentando chegar ao improvisado púlpito onde Sua Eminência estava e devia estar
a ver melhor do que os cá de baixo e pela primeira vez, vinda de alguém que não
se sabe quem, foi gritada a frase “ morte ao bispo”, “vai lá para a Guarda”, a
Santa é Nossa, atreve-te a mexer-lhe!”. As pessoas mais perto do púlpito
estavam já a ser empurradas até ao palanque e tudo levava a pensar que ía ser
uma refrega complicada.
Alguém avaliou a situação e
começou a prepara tudo, com o padre Madeira, para tirar o senhor Bispo e o
resguardar.
Num instante foi combinado
como o retirar e fazer sair pela porta norte da igreja, do lado oposto ao largo
da confusão. O Franciscano, o padre Madeira e alguns paroquianos resgataram o
aterrorizado senhor bispo, protegendo-o até sair para o jeep onde tinha vindo e
se pôs a andar em direção ao lugar onde se tinha apeado, descendo a cascalheira
com a velocidade e segurança possíveis, ouvindo uma vaia de impropérios
gritados por debaixo do pano onde estava escrita a mensagem de boas vindas e
uma chuva de pedras que, graças a Deus, não atingiram o alvo.
Aquilo que devia ter sido uma
manifestação de alegria e festa, saldou-se numa vergonha, que marcou uma aldeia
inteira.
Não me consta que a visita se
tenha repetido e o mais que certo será não vir a suceder. Muita mudança se deu
desde então.
Reis Caçote
2003/dig. 2017
AQUI NASCI, A 2 DE MARÇO DE 1939
AQUI INICIEI A CONHECER AS PRIMEIRAS LETRAS, ERA ESCOLA
NESTA IGREJA FUI BATIZADO, FIZ A COMUNHÃO E O CRISMA...
--
Sem comentários:
Enviar um comentário