PELO PRINCIPIO SE COMEÇA!...
1 - NA TAL IDADE…
I
Segundo
afirmam os livros de registo do concelho de Vila Nova de Foz Côa, nasci em
Castelo Melhor, a quatro de Março de mil novecentos e trinta e nove.
Não é
verdade!
A partir
deste erro, todos os outros, e não foram poucos, foram sucedendo.
Para bem
ser, seguindo a ordem cronológica do nascimento dos quatro irmãos anteriores,
eu devia ter nascido em mil novecentos e trinta e um. Só que, nestas e em
tantas outras coisas, como é hábito dizer-se, “o que uma mão tapa a outra
destapa”.
A questão
deve ter sido outra! E por que não esta?
A família
já era numerosa para os meios disponíveis e dessa realidade a ti Amélia Caçote
e o ti Miguel Monteiro, tinham perfeita noção. E tomaram os seus cuidados, pelo
menos durante cerca de nove anos, sem surpresas!
O ano de
mil novecentos e trinta e oito deve ter sido de boas colheitas; mas o que devia
ser um motivo de satisfação e festa, naquela latitude acabava sempre por ser,
quando o mês de Maio avançava, motivo de grande preocupação! É que em Junho,
segundo a teoria e a prática, era de “foice no punho”; ou seja, a canícula que
o mês de Junho quase invariavelmente trazia, escaldava as encostas semeadas e
não semeadas, pois estas não escapavam aos olhinhos do Sol; só que era o ano de
folga, não davam preocupações. As outras sim, sobretudo as de cevada semeadas,
davam aflições e não eram pequenas.
Os colmos,
ainda esverdeados em Maio e as espigas aprumadas, quando o Junho chegava o
colmo mudava de cor e as espigas perdiam o porte aprumado e dobravam-se pela
base e, envergonhadas, não mais tiravam os “olhos” do chão. Os trigos nem
tanto, aguentavam-se mais, os colmos eram mais robustos e os centeios, os
poucos que eram semeados, sempre em terras mais frescas e dando poucos cuidados
no mês de Junho.
Os problemas
de Junho eram sem dúvida as cevadas e tanto maiores eram quanto o fossem a área
semeada e o tamanho das espigas; se demorasse a ser ceifada, era mais que certo
que uma boa parte ficava na terra; por isso havia que ceifá-la e enrolheirá-la
antes de ficar ressequida.
E como
este problema a todos os lavradores e ao mesmo tempo, era sentido por todos, em
simultâneo. O “drama” era maior quanto maior fosse a área semeada. E o ti
Miguel esgravatava tudo o que era terra, por vezes parecendo que até os calços
e as fragas ele obrigava a produzir. Não as terras dele que as não tinha, mas
sim as dos outros, a meias ou a terças. E assim ele era, segundo as
estatísticas de então, o segundo maior lavrador da aldeia.
O tal ano
de trinta e oito deve ter sido um desses anos em que a cevada era muita, o Sol
escaldava e poucas as mãos para a ceifar.
A tia
Amélia, com o seu temperamento guerreiro, deve ter dito das boas: “oh,
excomungado homem que quando pega na rabiça não dá um minuto de descanso ao
gado! E agora, como é que vamos dar conta deste sarilho?”
O ti
Miguel, todo ele paz e conformação, lá ia rezando a ladainhado costume: “cá nos
havemos de arranjar; na ladeira é que ela não fica!”. Fracas as desculpas para
tamanha preocupação. E não ficava. Nunca, sendo ou não fracas as desculpas
dadas.
A
realidade estava bem presente, a cevada nas ladeiras e o Sol não dava folgas.
Certo dia,
quando tudo estava sossegado, a dormir de cansaço, só o calor chegava para os
deixar prostrados, certamente para apagarem os azedumes, devem ter-se
descuidado ou com alguma confiança por pensarem que já não havia perigo, o
último filho tinha já nove anos, e o que não devia ter acontecido, aconteceu.
Era grande
a convicção de não haver perigo de engravidar e eram muitos os anos de vida em
comum para que se conhecessem bem e certamente sabiam que numa noite bem
dormida tudo seria esquecido; a ceifa, os molhos, os rolheiros, depois o
transporte para as eiras aguardando a sua vez para serem trilhadas, tratar com
outro lavrador com parelha de gado para participar na trilha e uma vez trilhada
era esperar pelo vento que, sem ele, não havia separação da palha e do grão.
Andam aí
as barranqueiras, vamos preparar que o vento está a chegar; e muitas vezes não
chegava!
A cevada
ensacada restava ainda deixar a eira limpa e guardar a palha que faria parte da
ementa alimentar dos que, com o ti Miguel, puxaram o arado, com o timoneiro a
segurar na rabiça e dando ordens que os machos não entendiam, transportaram a
cevada para a eira, depois a palha para o palheiro, justo era que de tanto
esforço tivessem algum benefício.
De seguida
vinham os trigos e as mesmas démarches se repetiam e sem intervalos nem perdas
de tempo, porque as amêndoas estavam ainda a acabar de encher e os donos dos
amendoais precisavam de todos os braços e mãos disponíveis, umas para varejar,
outras para apanhar e ensacar e lá voltavam os animais a fazer viagens e ida e
volta transportando a amêndoa ensacada para acabar de secar na eira que os dois
maiores proprietários tinham junto das suas residências: o senhor Cassiano
Albuquerque e o seu cunhado, José Maria Patrício!
Os
restantes tinham meia dúzia de amendoeiras, mal precisavam de espaço para secar
os frutos.
Os
afazeres eram tantos que a tia Amélia fez, como sempre, a sua parte nas lidas
de casa e do campo, sem qualquer alteração, apenas um pouco de mais trabalho de
campo.
Estava,
naturalmente, a praticar uma das suas regras basilares:” primeiro as obrigações
e só depois as devoções”.
Não para
servir de exemplo a alguém, mas por ser essa a sua forma de ser e de estar.
Tudo
dentro da normalidade e cumprida que foi a definitiva resposta do ti Miguel: “
Na ladeira é que não fica” Esta decisão tanto se aplicava à cevada como ao
trigo. E, assim, os trabalhos de campo, um a um, foram sendo metodicamente
executados.
II
Aí pelo
fim de Outubro ou princípio de Novembro a tia Amélia começou a sentir-se
“esquisita” o ventre anormalmente dilatado, uns enjoos que não se lembrava de
ter antes.
À ideia
lhe vieram as mais variadas possibilidades para se sentir assim, desde o
excesso de trabalho no verão, mas nenhuma delas, no seu entender, se ajustava
ao que sentia. A única que ganhou raízes foi a
de que seria uma “nascida ruim” eufemismo simpático para explicar o que
já tinha nome, tenebroso nome e por isso evitado: cancro!
E assim
que este receio se fixou, dele deu conta ao ti Miguel: “deve por aqui andar
coisa feia” foi assim anunciado!
Vamos ao
doutor Caldeira e ficamos descansados, respondeu o ti Miguel.
E lá
partiram, rumo a Almendra.
O doutor
Caldeira era o único médico que assistia as populações de Castelo Melhor e Almendra, onde tinha a sua
residência, indo a Castelo Melhor uma vez por semana ou quando havia alguém
estivesse tão mal que não pudesse deslocar-se a Almendra ou então nos casos, já
sem pressa, o passar a certidão de óbito dos que por velhice ou acidente se
despediam do mundo dos vivos.
Durante o
percurso pouco falaram, também o ti Miguel fazia mil e uma conjeturas, mais
preocupado do que a companheira de viagem e da vida.
A tia
Amélia sentada de lado na albarda do burro e o ti Miguel atrás, a pé, e
agarrando os pêlos do rabo do animal, aproveitava como se fosse à boleia.
A ideia
que continuava a presidir às preocupações era a de que aqueles achaques terem a
ver com a tal “nascida ruim”, alguém lhe chamava também tumores, fossem
benignos ou malignos.
A tia
Amélia entrou no consultório; bom dia senhor doutor, o meu homem pode entrar?
Claro que
sim! Respondeu. E logo a pergunta da praxe: “então o que vos traz por cá?”
E lá foi dando
conta do que vinha sentindo há uns dias e do inchaço do ventre. Deve ser uma
nascida ruim, adiantou a tia Amélia!
O doutor
sorriu! Após a auscultação, simples para quem tinha uma experiência de muitos
anos, foi suficiente para tirar conclusões. E com o sorriso agora mais aberto,
diz com um divertido tom de voz; então prepara-te, daqui a quatro, o mais
tardar cinco meses, vais ver a nascida ruim, e riu com vontade, quando olhou
para as caras do casal!
…?! ...?!...
só a cabeça abanava, tal era o espanto!
Muito eu
gostava de ter visto a cara da tia Amélia! Falavam de mim, que devia ser uma
nascida ruim e eu sem me poder defender ou ajudá-la a sair daquele espanto!
“Deixe lá, Mãe, cá nos havemos de arranjar! Cá dentro é que não fico, assim
como as cevadas não ficaram nas ladeiras e foram elas as culpadas deste
percalço! Não é porque não goste de aqui estar, pois até me sinto bem e estou a
crescer, mas tudo tem o seu tempo e quando chegar a altura…vai ver que até será
divertido!”
O ti
Miguel, meu Pai, ficou sem pio e quando saiu do pasmo adiantou, sem grande
convicção, quase garanto: “antes seja isso (eu) que uma nascida ruim (o tumor)!
E, segundo a tia Amélia me contou mais tarde, ambos acabaram por chorar de
preocupação e alegria!
A notícia,
dada quando chegaram a Castelo Melhor, como é natural, não agradou a todos,
segundo fui sabendo, mas o que estava feito, feito estava, bem ou mal, nada
havia a mudar agora. Era só esperar que a hora chegasse. E chegou.
III
No dia
dois de Março e não no dia quatro como ficou registado, mentira que ainda
perdura, sendo eu mais velho que os papéis do meu concelho.
Sendo o
último dos cinco irmãos, fui o primeiro e último, a nascer na casa que ainda
hoje é a da família.
Às duas da
manhã terminava a gravidez e a “aparadeira” do costume lá fez as manobras
habituais, outras não sabia fazer se a elas houvesse necessidade de recorrer,
por que a tanto a sua “formação” (gosto deste tão bonito vocábulo!) não chegava
e lá terei dado os sinais de vida, que não terão sido muito afoitos, comparados
com outros que ela tinha aparado.
Segundo
soube mais tarde, terei nascido com o aspecto de quem não quer resistir muito
tempo! Quanto enganados estavam, todos o que o pensaram.
Todos me
terão aceitado, menos o mais velho dos cinco, que fazia questão de me não
querer conhecer! E lá teria as suas razões: quatro já eram demais para o espaço
físico da habitação e também para as posses da família. A chegada de mais um
era uma sobrecarga para os outros. Se o fui nenhum deles o terá referido, mas o
mais velho insistia, na teimosia dele, em não querer conhecer o mais novo!
Birras de primogénito!
A tia
Amélia, fina e sensível, de há muito se tinha apercebido que o João Amílcar,
assim se chamava o mais velho dos cinco, andava cheio de curiosidade, mas a
teimosia e não querer “dar o braço a torcer” tinha a sua força e lá ia
resistindo. Até que um dia, já uma semana teria eu de vida, a tia Amélia viu
que o João se aproximava de casa e arranjou forma de se esconder. Ele entrou,
certificou-se de que não estaria alguém em casa, só eu no berço, aproximou-se,
levantou a cortina de tule que servia de telhado para mim e de fronteira ara as
moscas, olhou-me por instantes e, bruscamente, atirou a cortina para a posição
anterior e foi à vida. Não fez qualquer comentário, naturalmente, ninguém a não
ser eu o ouviria e o único ouvinte não estava ainda preparado para ouvir das
razões do mais velho. Decididamente, não lhe agradei.
IV
Aquela que
veio a ser minha madrinha de baptismo, testemunha do registo não podia ser por
ser menor de idade, era a filha única do meu padrinho, terá sido a grande
entusiasta da minha chegada à família.
Tinha a
mesma idade, mas dia menos dia, que o meu irmão do meio, o Licínio Augusto,
tendo sido amamentada pela tia Amélia, porque a mãe não tinha leite suficiente
para alimentar a menina.
Penso que
a madrinha Noémia estimava muito a tia Amélia e esta correspondia como uma mãe.
O elo familiar entre minha madrinha Cecília e minha mãe, era o de primas
directas, já que os pais de ambas eram irmãos, o avô Joaquim Caçote e a senhora
Amélia Caçote, avó da madrinha Noémia.
A madrinha
Noémia era filha do representante da família mais antiga e da nobreza, em que
já havia cruzamentos de várias famílias, os Andrades, os Vasconcelos, os
Almeidas, os Albuquerque e outras, pelo menos catorze eram os apelidos de meu
padrinho. A mãe dele “não tinha nome” na aldeia, ninguém a tratava de outro
modo que não fosse a Senhora!
Não por
estas razões, apenas mencionadas para situar os parentescos, mas por ter apenas
treze anos e ser a menina mimada da aldeia, terá sido a mais entusiasta com a
minha chegada e a que mais me prestou assistência nos primeiros tempos de vida.
Não há
qualquer erro no meu registo de nascimento e ainda bem que não há, senão lá
estaria em causa o rigor e o zelo do delegado do Registo Civil do posto de
Castelo Melhor, o que seria uma injustiça, o senhor Pala sempre foi estimado
por toda a gente, e rigoroso no seu trabalho.
O que de
facto se passou foi, nem mais nem menos, do que aquele aspecto, se calhar
fingido, que eu fui mantendo, pelo menos até perto do final do mês, porque
nesse ano a Primavera chegou atrasada, não sei, mas penso que alguém o terá
feito e a brincar com a situação foi dizendo: ele, ou seja eu, quer ver as
amendoeiras em flor e não desiste de o fazer.
O registo
foi sendo adiado, deviam saber que tinham trinta dias para o fazer e alguém,
que não a minha mãe, terá sugerido: aguardai mais uns dias, por que entretanto
ele (eu) acaba por se render e então fazeis logo as duas duma só vez, “com uma
só paulada, ou penada, como gosto mais e era a arma a ser usada, a caneta,
matais os dois coelhos”, mas o ditado não pode ou não deve por “dá cá aquela
palha” ser alterado, ou senão qualquer dia não tínhamos ditado nenhum, o que
seria uma perda grande demais para a cultura de um tão pequeno País e uma
enorme falta de respeito para com os nossos eruditos do passado, por isso vai
ficar paulada e não penada!
O que o
proverbial conterrâneo devia querer dizer com aquilo? Que eu “atava as botas”,
outro ditote que não se aplicava à situação, porque eu não usava botas ainda e
se as usasse não seria capaz de as atar, e fariam ao mesmo tempo o registo de
nascimento e o averbamento do óbito!
Eu devia
estar atento e achei que aquele pragmatismo (este palavrão só muito mais tarde o
aprendi) era duma falta de sensibilidade atroz, não se fazia a uma criança com
menos de um mês de vida e mal vivida!
Decidi
trocar-lhes as voltas e só para que para que entendessem que as coisas da vida
e da morte não podem ser tratadas de forma tão simplista, mais a mais
envolvendo um ser acabado de nascer. Assim que me apanhei registado e já o
Abril, o das águas mil, ensaiava os primeiros passos a fazer o aquecimento,
deixei de fingir de enfezado e comecei a tratar da vida, ou seja, a mamar e a
crescer, engordar nem tanto, e foi de tal forma a preparação que, só anos mais
tarde, já em Lisboa, tomei os primeiros comprimidos e as primeiras injecções,
de cálcio.
Tive, como
quase todos os garotos, o meu sarampo, a tosse convulsa, penso que também
bexigas, mas como o meu padrinho me tinha vacinado e a todos os outros miúdos
mais ou menos daquela idade, das bexigas não tenho marcas. Todos estes males
foram sendo tratados com chás de erva-cidreira e da flor de sabugueiro, não me
podendo queixar do tratamento.
E como não
queria que se incomodassem eternamente comigo, tanto mais que a II Guerra tinha
“começado” em Setembro, tinha eu seis meses, em Dezembro comecei a andar. E
desde então não mais parei. O mais franzino veio a ser tanto ou mais resistente
que os outros quatro.
Voltando
aos primeiros tempos. Quando comecei a falar, sem que saiba por que razão, quando
me perguntavam onde nascera respondia, invariavelmente, que tinha sido na
Fontinha e que tinha sido o ti Xareta quem de lá me tirara. Se eu não tinha
idade para inventar tal ocorrência, só o João Amílcar me terá inculcado tal
estória! Ou o Licínio, com aquele sorriso matreiro, era bem capaz de o fazer.
A Fontinha
onde “nasci” era uma pequena poça onde brotava, mesmo no Verão, um pequeno fio
de água que devia ser a que se infiltrava por algum pequeno defeito na parede
ou até no xisto do fundo do poço da horta do senhor Poínhos, e como a água é
elemento reconhecidamente teimoso, “água mole em pedra dura, tanto bate até que
fura”, aquele elemento acaba por caber em tudo, largo ou apertado que seja.
Para dar
acesso à Fontinha foi feita uma escada estreita, com meia dúzia de degraus em
pedra que era utilizada para abastecer de água para o gado e para as mulheres,
quando ainda havia a correr pelo ribeiro, irem lavar as peças de roupa mais
pequenas.
O referido
ribeiro tinha por função principal de encaminhar as águas da chuva que vinham
desde o alto de Santa Bárbara, passava pelas eiras e quando chegavam ao largo
em frente ao cemitério a maior parte ia pelo lado esquerdo, atravessava o
caminho e já aconchegadinha descia até ao outro ribeiro do lado oposto ao da
Fontinha, passava por debaixo da ponte feita da pedra daquela zona, uma laje de
xisto, neste caso eram duas, suficientemente compridas para atravessarem
chegarem de um lado ao outro lado, onde se apoiavam; depois passavam por outra
mais abaixo, a que liga a povoação à parte mais plana onde se situavam outras
hortas, tomando este nome: as Hortas. Por vezes as águas eram muitas, umas
passavam por debaixo da ponte e as mais apressadas galgavam por cima, mas logo
se juntavam às outras, porque gostam de fazer grandes caminhadas, mas
juntinhas.
E sem
saberem umas das outras, iam encontrando pelo caminho outras que se juntavam,
escorrendo pelos terrenos laterais e só juntavam umas centenas de metros mais
abaixo, no sitio designado por Vale do Seixo e aí sim, juntas as águas,
cantarolando ou fazendo uma barulheira que não era cantada, não havia tempo para
cantigas, queriam chegar ao rio Côa, mais propriamente à Côa, era assim que as
pessoas lhe chamavam, enquanto o ao Douro era mesmo o Douro ou Doiro.
O ti
Xareta, meu descobridor e salvador, meio tonto e de língua afiada, morava com a
filha, Benvinda, numa casa grande junto ao “tronco”, na margem direita do
ribeiro e a uns trinta metros de minha casa, esta do lado esquerda do ribeiro,
agora tapado e que serve para o fim a que servia a céu aberto e também como
esgoto para as águas domésticas, luxos que não havia então.
Dizia que
o ti Xareta, ou porque lhe constou de que eu o acusava de me ter tirado da
Fontinha, injustamente acusado, ou porque não gostava mesmo de mim ou do meu
Pai, sempre que eu passava perto da casa dele, o que devia suceder várias vezes
por dia, por ser tão perto de minha casa e ficar a meio caminho da casa da tia
Filomena, eu me metia com ele, chamando-lhe Xareta ou Jarreta, lá por detrás da
porta do quintal, me gritava excomunhões e me chamava filho do Miguel
“ranhoso”, atirando com calhaus por cima do muro e que nunca me acertaram,
porque não via o atirador, mas via a granada que ele atirava. Não recordo um
único traço fisionómico do meu salvador, ou porque ele não se mostrava, ou por
que a reclusão voluntária era já o resultado das suas condições mentais estarem
já diminuídas; do que tenho ideia é de que ele seria o meu único inimigo
declarado. Ou talvez não, o mais certo era ter já a ver com as suas condições
mentais.
Muitos
anos mais tarde, já depois de passar a moda dos extraterrestres, eu quis
aproveitar a ideia para, tendo o tema como base, escrever algo em que o
protagonista tinha vindo do interior da Terra, um intraterrestre, oriundo do
extracto geológico número setenta e dois, como podiam ser os setenta e três ou
setenta e quatro e que o seu nascimento tinha sido anunciado cinco anos antes,
por um emissário do extracto, à minha Mãe, num encontro imediato, no “Canado
das Bebereiras”, quando ela vinha dos Prados, horta que a família amanhava, e
que ia caindo do burro por este se ter assustado com o brilho que emanava do
estranho ser (ou não ser?).A ideia foi posta de lado, como tantas outras o
foram, mas nada prometo, pela negativa, de que um dia, se tiver tempo e
disposição, não venha a pegar nela, na ideia. O assunto está vivo e o
enquadramento também. Veremos isso depois.
V
Se da
guerra, lá longe, quase nada se sabia, alguns dos seus efeitos foram chegando:
militares, a cavalo, que nunca tinham sido vistos por aquelas bandas e se
instalaram, de armas e bagagens, nos logradouros da casa do meu padrinho, única
com espaço e condições para alojar aquele, mesmo que pequeno grupo de pessoas.
Trariam
como missão intimar os proprietários das terras que tivessem poços rasos, para
rega ou consumo doméstico, a construírem uma cerca de madeira ou outro
material, pintada de branco e cobri-los, mas só dois ou três o fizeram; aquele
Povo não é de receber ordens de quem não conhece, mesmo que fardado e armado de
espada à cinta.
Construíram,
também, três talegres, que mais tarde vim a saber que a sua designação, não sei
se só militar ou também civil, era de marco geodésico, nos pontos mais altos
dos montes em volta da povoação. Mais para o fim da missão, já os talegres
estavam construídos, só faltava a pintura, branca e vermelha, cor que ainda
havia naquele tempo e que depois, não percebi bem porquê, passou a encarnada,
foram explicando que os pinos lá no alto era para ser elaborada a carta
topográfica da região, certamente por não existir.
Nunca
tinha visto cavalos tão bem tratados e arreiados. Nunca assisti a nenhuma
refeição dos equídeos, mas à socapa conseguimos ver umas sementes escuras,
parecidas com as das ervilhacas, mas em tamanho maior, que um dos militares
disse que era alfarroba; até deu uma mão cheia de tais sementes para provarmos,
mas aquilo era mesmo uma coisa sem sabor, dura como fava seca e que não teve
consumo pelos miúdos, talvez por ser dura demais para nossa dentição.
Outro
pormenor que só mais tarde valorizei, foi o do racionamento e que para mim teve
a seguinte expressão mais visível quando acompanhava minha mãe, uma vez por
semana, a Almendra, levando um pequeno rectângulo de papel e em troca trazíamos
sete quilos de farinha; não sei se era paga ou não. Recordo outro pormenor
ainda: ver o meu pai esconder, no canto esquerdo do fundo do palheiro, uma saca
feita de covijões, ou seja, daquelas mantas feitas de trapo e cozidas. Era
trigo não dado ao manifesto.
Só mais
tarde soube que meu único cunhado, o Antoninho, tinha estado nos Açores a
cumprir o serviço militar e que minha irmã, sua esposa, não terá gostado muito.
De todos os irmãos terá sido a ela que couberam a maior parte dos azares da
família e que teriam menos pesados para ela se tivessem dividídos irmãmente
pelos outros irmãos.
O mais
grave de todos foi o da sua viuvez com vinte e seis anos de idade e três
crianças para cuidar, antecedida, a viuvez, de um sofrimento indescritível do
Antoninho que o levou à morte.
Nunca
tinha pensado especialmente, por razões que certamente terão uma explicação
psicológica simples, na ausência física de ambos os meus Avôs. O avô Luis, pai
do meu pai, tinha já falecido quando eu nasci; e o avô Joaquim, pai de minha
mãe, há muitos anos emigrado no Brasil, de onde não regressou.
Do avô Luís
soube que sofria de asma de forma muito acentuada e que terá contribuído decisivamente
para a sua morte. Só muito mais tarde, já em Lisboa, quando, em jeito de
critica, sou a ele comparado, pelo meu “tutor”, ou seja, o irmão Licínio! Mais
por curiosidade de saber algo mais do meu avô, do que o valor da critica,
procurei saber em que era parecido: o avô Luís, já muito idoso, ainda insistia
com a avó, Maria José, para o contacto sexual, que ele designava por
“refestelo”.
Do avô
Joaquim fiquei com a idéia, do pouco que dele soube também, que deve ter sido
um homem destemido e com algum sentido critico. Havia a estória, para mim quase
lendária, da cobra que ele terá enfrentado, no moinho que, tudo leva a
crer, era o explorado, quando nasci, pelo tio José
Caçote: o ofídio prendia o rabo num dos caibros do teto e assim bebia água do
Côa, na levada que fazia funcionar o moinho! O avô Joaquim terá pegado na
roçadoira e de um só golpe cortou a meio a cobra que outros não quiseram sequer
dela se aproximar.
Do seu
sentido crítico, também por mim definido, tinha como fundamento os nomes dados
aos dois cães que tinha: o “Vale quem Tem” e o “Maçaroca” e que eu sempre
atribuí à forma como a irmã, a senhora Amélia Caçote, ter formado uma pequena
fortuna ao casar com dois viúvos ricos e sem filhos, acabando por ser a
herdeira universal, duma forma pouco ortodoxa para a época, ou talvez não, mas
para o caso não tem qualquer interesse.
Outra
estória, que sempre achei deliciosa, era a de ele fazer questão de só ir a
funerais dos que ao dele fossem! Fabuloso!
Este avô
Joaquim, quis eu que, de um momento para outro, num passe de magia, se
encontrasse comigo em Lisboa e com ele manter uma relação longa e de grande
proximidade, onde ele me contasse as suas aventuras do Brasil, para onde
emigrou antes de eu ter nascido e não mais ter voltado. Não sucedeu tal
encontro, mas ficou sempre no ar, a ideia de que algo ou alguém, me sussurrava
ao ouvido conselhos e que me foram de grande utilidade no momento exato da
minha demanda por Lisboa: seria ele, meu avô, ou o Anjo de Castelo Melhor?!
As avós
eram ambas vivas quando nasci. Da avó, Maria José, só recordo o estar já
acamada, o que sempre me foi negado pelos meus irmãos durante anos e que só
muito recentemente confirmei e convenci, indo com o Ernesto a indicar-lhe a
casa onde a vi e vejo, sempre que nela penso, e a forma de chegar a tal casa,
hoje habitada e modificada, pelos moradores seguintes.
A avó
Josefa viveu ainda muitos anos, falecendo com mais de noventa anos, quase cega,
mas perfeitamente lúcida. Sempre gostei muito dela e ela me retribuiu o afeto.
Pena foi que a minha ida para Lisboa aos treze anos, me tivesse dela separado e
de quase todos os familiares.
Um
pormenor que sempre me desgostou, foi a ausência do apelido Caçote, que se deve
ao facto de, na época, não ser permitido mais que três nomes: um nome próprio e
os dois apelidos ou então, como foi o meu caso, ter dois nomes próprios e um
apelido, que teria de ser o paterno: o Caçote passou a ser o adotado em tudo o
que vou fazendo, quer na escrita, quer na pintura. O roubo está ressarcido!
Reis
Caçote
Leiria,
1985
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