A LENDA DA CAPELA, TAL COMO A DOS CASTELOS, MANTENDO-A, SEM ALTERAR O SEU LADO MISTICO, TENTEI LIGAR AMBAS E SEU PROTAGONISTA: O ARCANJO SÃO GABRIEL! VAMOS VER O QUE RESULTOU!
A
LENDA DA CAPELA DO ANJO
Passaram
séculos sobre a chegada dos dissidentes do Castelo Calabre, construtores do
Castelo Melhor e de facto os fundadores do povoado, que veio a adotar o singular
nome do castelo.
E
digo fundadores por que não consta que outros, nomeadamente os gravadores das
rochas das margens do Côa, há trinta mil anos ou mais, tenham deixado outra obra
ou rasto, para além dos rabiscos como prova da sua presença na região e que só
por acidente chegaram até nós – as gravuras.
Com o crescimento do povoado e a chegada
de novas gentes as novas gerações e os migrantes que em todos os tempos os
houve, por um ou outro motivo, chegaram também, naturalmente, outras formas de
pensar a vida e as crenças ou, se quisermos as religiões; e de tal modo se
foram impondo aos que lá estavam que estes acabaram, não sei se pacificamente,
por abandonar as suas, se é que alguma religião professavam e adotaram a
dominante.
Além
do natural crescimento o burgo foi ganhando importância social e religiosa; no
primeiro caso foram-lhe atribuídos forais por diferentes monarcas e um deles
ordenou mesmo a restauração do castelo, tudo levando a crer que ou houve
escaramuças que o danificaram ou então, como ainda hoje sucede, deixa de ser
assistida a obra e o tempo se encarrega de a deteriorar; no que se refere à
importância religiosa foi decidido que era altura de ser construída uma igreja
paroquial que não será a que ainda hoje existe, mas outra mais modesta, tudo
levando a crer que já ocupara o espaço da que hoje serve de lugar de culto pois
todas as ruas parecem ter a igreja como centro de convergência.
Mais
tarde e tendo em conta o que desde há séculos vinha passando de geração em
geração, ou seja, a promessa ao anjo São Gabriel, feita pelos fundadores, de um
dia lhe construírem uma morada lá no alto do monte que veio a tomar o seu nome
– monte do Anjo; foi decidido que a capela iria ser construída cumprindo-se,
finalmente, a promessa antiga.
Parece
que por esquecimento ou por desconsideração dos termos exactos em que a
promessa fora feita, na época da negociação, entre os vindos do Calabre e a
embaixada do Céu, os encarregados da construção da orada, examinando o local,
concluíram que a ponta do rochedo era o local menos indicado para que a
construção se fizesse; terão invocado razões de ordem económica e de segurança,
para o Anjo e para os futuros veneradores em festa; logo, decidiram que seria
construída no cerro da encosta, mas aí uns cinquenta metros antes da ponta do
rochedo.
O
responsável religioso estava de acordo, assim como a maioria das pessoas da
aldeia; porém um idoso havia que o não estava: que a exigência do Anjo era
diferente no que se referia ao local; todos se riram nas barbas do ancião e
alguns mais atrevidos e divertidos ainda lhe foram perguntando como é que
estava tão seguro disso e que, mesmo sendo o mais velho, não constava que o
fosse tanto a ponto de estar na reunião que decidiu, há séculos, do local
exacto onde a capela devia ser feita! Façam como quiserem, respondeu o ancião,
mas... qual mas retorquiram os empreiteiros.
O
representante da igreja, presente desde o início em carne e osso na reunião
também achou que não devi haver qualquer razão para que não fosse adoptada a
forma mais razoável e o local mais indicado para que a capela fosse construída
era o sugerido pelos empreiteiros e com o apoio da população.
O
ancião encolheu os ombros e foi “pregar”, bem calado, “para outra freguesia”,
como costuma dizer-se.
Ninguém
se apercebeu que o espirito do Anjo esteve sempre presente na discussão, mas
como não tinha sido convocado preferiu manter-se de espirito aberto e a
provar-lhes, a seu tempo, que tinha sido desastrada a decisão tomada.
A
obra foi iniciada e tudo correu normalmente durante o tempo em que foi
terraplanado o espaço para a construção; toda a gente estava já esquecida do
que o ancião dissera e a ponta do rochedo lá estava intocada.
Quando
a primeira parede começou a ser levantada tudo continuava a decorrer
normalmente e no final da jornada de trabalho todos voltaram à aldeia para
descansar; bem precisavam, pois no dia seguinte tinham que se levantar bem cedo
para chegarem a horas lá ao alto da serra e continuarem o trabalho; e não era
só o dia de trabalho que cansava, mas logo antes de começarem o dia terem de
subir toda a encosta que o apetecia mais, quando chegavam, era deitar-se e
descansarem novamente; durante o período de alisamento do espaço e quando
acabavam a jornada e desciam ao povoado não custava muito porque a descer todos
os santos e anjos ajudam; subir e trabalhar é que era mais complicado.
E
logo pela manhã do segundo dia da construção propriamente dita lá subiram como
puderam, mais lestos uns que outros, ou porque eram mais novos ou porque tinham
descansado mais; notava-se que o cansaço era diferente, mas todos chegaram. E
todos viram espantados, que toda a parte da parede no dia anterior construída
tinha desaparecido e os materiais utilizados estavam amontoados lá adiante na
ponta do rochedo!
E
de imediato se instalou a confusão; quem poderia ter feito tal serviço quem não
poderia ter feito, cada um levantando a sua suspeita e quase todas se
inclinavam para o ancião que dias antes, durante a reunião, lembrara a promessa
feita ao Anjo.
Mas
um deles, mais prudente, levantou a voz para questionar tal hipótese, alegando
que o velho seria incapaz de, sozinho, desfazer e transferir para cinquenta
metros mais além todos os materiais que seis homens levaram o dia inteiro a
edificar! Mas ninguém se atrevia a acusar o Anjo, embora um deles tenha pensado
nisso, mas ficou calado.
Não
havia carro de mão e as pedras eram muitas, como é que isto poderia ter sido
feito?! Levar as pedras de braçado também estava fora de questão, pois nem três
ou quatro pessoas o conseguiam fazer numa só noite!
De
qualquer modo é melhor irmos falar com o velho e se ele confessar damos-lhe nas
ventas e obrigamo-lo a vir connosco e voltar a pôr tudo no seu lugar; e se teve
companhia será melhor trazê-la também e assim ficamos a saber quem o ajudou a
dar cabo do nosso trabalho.
O
ancião negou, pensando até que eles estavam a brincar ou queriam era gastar
mais tempo na obra e, assim, subirem o preço contratado. Ainda foi insultado,
mas manteve-se na negativa, que nada teve a ver com tal assunto.
E
lá voltaram ao alto da serra recomeçando o trabalho com outras pedras e assim
fizeram mais uma jornada; mas danados com o que tinha sucedido e mais ainda por
não terem conseguido saber quem tinha sido o autor ou autores da proeza e bem
gostavam de o saber, talvez nunca mais se metesse noutra! Eles queriam era
acabar a obra para receberem o contratado e não podiam ali ficar a vida toda!
Ao
no final do dia – o segundo – lá desceram novamente à povoação para cearem e
descansarem; alguns dormiram mal, tiveram pesadelos, que um Anjo lhes estava a
deitar abaixo o que tinham feito e levado as pedras para junto das outras do
dia anterior. E quando de madrugada começaram a subir o monte, iam contando os
sonhos aqueles que os tinham tido e os outros, não tendo sonhado ou dos sonhos
se não lembrando, mas todos iam com algum receio de que algo pudesse ter sucedido;
e se chegarmos lá e tudo tiver sido deitado abaixo o que vamos fazer? Não
pensem nisso, dizia um mas a confiança era nenhuma.
De
facto ao chegarem viram que todo do dia anterior estava destruído e amontoado
lá junto do outro do primeiro dia! Ora aí está o trabalho de dois dias desfeito
em duas noites; o material diminuía no local – no estaleiro diríamos hoje – e
ia aumentando na mesma proporção lá junto à ponta do rochedo, no tal local onde
o ancião garantia ser ali que o Anjo queria a sua capela.
Resolveram
não mexer em mais nada e irem falar com o pároco e lá foram, trazendo de
Almendra a sugestão debitada pelo representante de Deus e dos Anjos na Terra,
mais crente na maldade humana do que na palavra divina e que era a de retomarem
o trabalho e no final do dia um dos pedreiros ficar de guarda, escondido, para
de uma vez por todas o ou os responsáveis serem apanhados e em vez de
desfazerem fossem eles a fazer tudo o que tinham estragado.
E
assim fizeram. Desceram todos no final do dia, menos o destacado para montar a
guarda, por sinal o único que era solteiro, não ficando assim mulher e filhos
em sobressalto toda a noite ficaria a Mãe pois que Mãe tinha, mas esse não era
pormenor que fosse tido em conta.
Comeu
a ceia, bebeu o que era hábito e de varapau na mão e casacão abotoado que a
noite ameaçava ser bem fria, sentou-se junto do que antes tinham acabado de
alinhar e aprumar da parede da capela futura. Só que o pedreiro não é segurança
e por isso não tem hábitos de estar acordado enquanto outros dormem e nem
sequer tinha ido à tropa e não sabia o que era estar de sentinela, ainda não
era meia-noite quando a moleza lhe atacou com força e pregou-se mesmo a dormir
encostado à rocha escolhida para se apoiar.
Sonhou
que estava na cama e que a rapariga de quem gostava tinha ido ter com ele, lhe
fez sinal para não espantar e ali fizeram a primeira vez o que, pelo menos ele
andava a magicar há muito. Foi uma noite inesquecível, não só pelo sonho, mas
pela realização de outro que há muito lhe tirava o sono. Mas a noite ficaria
inesquecível também por outro motivo, este bem menos sonho e bem pouco
agradável.
Antes
de a manhã começar a clarear pareceu-lhe ouvir um estranho ruido e,
sobressaltado, acordou; não com a namorada a seu lado como sonhara mas sem toda
a obra do dia anterior a que ele se comprometera guardar, estando todas as
pedras juntas às dos primeiros dois dias lá mais adiante junto à ponta do
penhasco.
O
sonho transformou-se em real pesadelo pois não sabia o que iria dizer aos
camaradas quando chegassem e como cabeça de pedreiro não foi treinada para
grandes eloquências explicativas, isso é mais para outras profissões e muito
menos para descaradas mentiras, essas também de outras profissões são apanágio,
mas que estava preocupado lá isso estava.
Como
é que não acordei com o barulho?! Tirar calhaus, alguns bem grandes, de mais de
um metro de parede na altura com meio metro de espessura e com seis metros de
um dos lados e cinco do outro e levá-los para cinquenta metros de distância,
sempre deviam fazer tal ruido que daria para acordar, mesmo que o sono fosse
profundo e o sonho ainda mais e não ter sido interrompido. Antes estivesse
ainda a sonhá-lo do que estar aqui agora, com a cabeça a latejar e sem saber o
que hei-de dar como desculpa.
Que
me deixei dormir podia ser aceite por eles, mas todos sabem que eu tenho um
sono leve e por isso ou também por isso fui escolhido, logo vai dar confusão eu
não ter ouvido nada.
Também
não posso dizer que o tinto me subiu à cabeça, sabendo eles que só fiquei com a
quantidade habitual para a refeição e que nunca me fez mal!
Assaltado
também não servia, pois se o fosse não deixaria de me defender, não sou nenhum
cobarde e sempre ficaria com marcas daqueles que fizeram a desobra, mas marcas
não tenho; só as boas, do sonho!
Atirar-me
pelo rochedo abaixo para ficar com marcas visíveis também me não parecia boa
ideia, pois um trambolhão, mesmo que bem calculado, sempre podia dar para o
torto e ir desta para melhor! Não, isso nem pensar!
Vou
arriscar e dizer-lhes que me apareceu aqui o Anjo, exactamente como o da imagem
que está na igreja à espera que acabemos a capela para se mudar para cá – de
armas e bagagens não será uma vez que os anjos não usam armas nem costumam
andar com bagagens - acompanhado por outros mais novos, todos com asas e me
disseram que foram eles que retiraram as pedras do local onde nós as tínhamos
colocado e nós as tínhamos colocado e as levaram para o rochedo e que não valia
a pena insistirmos na construção neste sitio e muito menos montar guarda, pois
só quando lá fizerem a capela e não aqui como teimam em fazer é que nós
deixaremos de vos incomodar. Eles que acreditem se quiserem e se não quiserem
que arranjem outro para ficar de guarda! Mesmo que tivesse a certeza de voltar
a ter o sonho que tive eu não voltaria a ficar nem mais uma noite.
E
assim foi quando eles chegaram.
Uns
gozaram com ele, outros diziam que ele tinha ido para casa dormir e bastou
levantar-se um pouco mais cedo para chegar antes deles e pelo caminho inventar
aquela fraca desculpa para o caso de se ter repetido a cena das duas primeiras
noites. Danados estavam todos!
O
mais calado, depois de ouvir tudo o que foi dito, sugeriu que o melhor a fazer
seria irem novamente falar com o senhor prior, contar-lhe o sucedido e
perguntar-lhe se ele não sabia do que se tinha passado ou assim constava muitos
anos antes, talvez séculos, quando os que tinham deixado o Castelo Calabre e
queriam construir o seu próprio castelo, ali na ponta do rochedo e o Anjo não
deixou!
«Alguma
coisa teremos de fazer; vamos ter com o senhor prior.»
A
verdade é que ele não queria voltar com a palavra a trás quanto ao local da construção
da capela, tanto mais que sabia que a construção na ponta do penedo iria ficar
muito mais cara, mas como quem pagava eram os paroquianos disse que conhecia a
lenda, que até acreditava nela, pois aparições são o que não falta por aí, só
que umas são mais aparições que outras, pensou só para si, decidindo que ia à
Guarda falar com o senhor bispo e depois daria a resposta. Até lá é melhor não
mexer em mais nada, ou seja, suspende-se a construção.
Dias
mais tarde deu o dito por não dito e mandou alterar o projecto inicial e que a
capela ficaria no sítio onde as pedras do dia foram depositadas durante a
noite. Que não acreditava que o Anjo fizesse aquilo mas que também não custava
experimentar, mesmo que no fim a obra ficasse mais cara.
E
em boa hora o fez. A capela está construída há tantos anos, outros padres
vieram, muitas romarias foram feitas, o Anjo lá fica na sua casa e só desce ao
povoado para tomar parte na procissão da Senhora do Rosário que era realizada
no dia vinte e dois de Setembro de cada ano ou então para ser levado serra
acima para a sua romaria, lá no alto, em cada segunda-feira de Pascoela.
No
local do litígio existe ainda um pedaço da falhada construção primitiva e cuja
pedra era grande demais para a força de tão frágeis Anjos.
A
este ponto, agora encimado por uma pequena cruz, os contemporâneos passaram a
designá-lo por Miradouro do Anjo.
Fim
Reis Caçote
A CASA GRANDE DA FAMILIA ALBUQUERQUE SARAIVA
A CAPELA VISTA DE OUTRO ÂNGULO E MAIOR DISTÂNCIA
OS LUGARES ONDE QUERIAM CONSTRUIR A CAPELA,EM 2º PLANO E À DIREITA, QUE NÃO ERA O QUE O "MORADOR" EXIGIA E VENCEU!
A TENTATIVA DO AUTOR FOI A DE CRIAR O AMBIENTE ONDE O SAGRADO E O PROFANO PODEM CONSEGUIR : O RESPEITO PELO ACORDO DE HÁ SÉCULOS!
A TENTATIVA DO AUTOR FOI A DE CRIAR O AMBIENTE ONDE O SAGRADO E O PROFANO PODEM CONSEGUIR : O RESPEITO PELO ACORDO DE HÁ SÉCULOS!
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