quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

REGRESSO A LISBOA

POR DECIDIR FICOU, NO REGRESSO DA "CONVALESCENÇA" EM CASTELO MELHOR, ONDE ESTIVE DE FEVEREIRO A MAIO DE 1954, SE IRIA RETOMAR OS ESTUDOS, DECISÃO QUE, EM ULTIMA INSTÂNCIA, CABERIA AO MEU IRMÃO E "TUTOR"! É ESTE PERIODO QUE FICOU, ASSIM, REGISTADO:






                             


                                    REGRESSO A LISBOA
                               
                               (Retoma ou não dos livros)
                             
                                                    I                  

A primeira tentativa para retomar a vida escolar oficial, neste caso no horário pôs laboral, foi em mil novecentos e cinquenta e quatro, no regresso de Castelo Melhor, onde estive a convalescer de uma pneumonia, durante cerca de três meses.
Voltei à mesma casa onde trabalhava antes de ir mudar de ares. E, para meu espanto, tinha sido aumentado o meu salário, passando de setenta para cento e vinte escudos mensais, durante a minha forçada ausência. Incluía, como antes, alimentação e alojamento.
Três meses em Castelo Melhor, aos cuidados da minha Mãe, deram-me a robustez física que me faltava, quando ela me foi buscar a Lisboa. no dia sete de Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e quatro.
O estabelecimento de mercearia e frutas, situado no Largo de Santa Bárbara, tinha como vizinho, no primeiro e único andar, o Centro Escolar Doutor Salgueiro de Almeida, que formava técnicos de contabilidade e afins.
Conheci as condições de admissão e no fim de semana, ou melhor, no domingo seguinte, da parte da tarde, era este o descanso semanal, apenas a tarde de domingo! Nos restantes dias da semana o horário era levantar às cinco e trinta, para estarmos na Ribeira às seis, comprar o que era necessário e alguma novidade que houvesse! Às sete abria o Mercado Abastecedor de Frutas e aí se adquiriam as frutas que houvesse, todas nacionais, quase sempre apresentadas em cabazes de verguinha que, dependendo do fruto que contivesse, raramente ultrapassava os vinte quilogramas; era esta a rotina semanal, mensal e anual.
No domingo à tarde, como estava a dizer, comuniquei ao meu irmão a intenção de ir estudar à noite. A resposta foi negativa e acho que ele tinha razão, seria muito difícil de conciliar, mesmo só em termos físicos, um horário das cinco e trinta até às sete, horário de fecho do estabelecimento, e ainda mais cerca de uma hora para arrumar tudo e limpar para no dia seguinte tudo estar em ordem. As aulas seriam das dezanove e trinta até às vinte e três horas, de segunda a sexta feiras.
Perante esta realidade não houve matricula e a decisão pareceu-me acertada e para mais acentuar no Inverno de cinquenta e cinco, tive de voltar às "termas" de Castelo Melhor com os brônquios maltratados e por conselho do doutor França Borges, tendo em conta os resultados do ano anterior; por lá estive cerca de um mês, servindo para mais acentuar as razões invocadas pelo meu "tutor".
Quando voltei já não fui para Santa Bárbara, mas para a Rua dos Prazeres e depois para São Bento. E assim foi sendo adiada a intenção, mas nunca esquecida, de voltar aos livros! Aguardava apenas oportunidade.


                                                           II


Não havia escola, mas havia outras atividades: inicialmente foi o atletismo a partir dos torneios que o SCP-Sporting Club de Portugal organizava e que um deles designaram como Primeiro Passo; classifiquei-me para a velocidade e o salto em altura; depois se veria; e quase assim ficou: depois se veria!
Como na Rua de São Bento o Club Nacional de Natação tinha as suas instalações desportivas, onde me inscrevi como sócio, tendo o número três mil novecentos e sessenta e três. A ideia não era apenas usar a piscina, mas ter mesmo aulas de natação, quando as houvesse; não fui longe aqui também. Como não havia piscina aquecida, só no Verão funcionava e não deu para aprender; aquilo que via fazer e ia ensaiando é o que ainda hoje sei.
Em mil novecentos e cinquenta e sete passei a exercer a minha atividade  na Rua Rodrigo da Fonseca, no mesmo ramo ou quase, frutas e legumes e de mercearias só o indispensável. O proprietário veio a ser compadre do meu irmão e "tutor" e era em casa dele que a família de meu irmão morava há não sei quanto tempo. Nasceu um filho ao casal que tinha já uma filha com cinco ou seis anos e foi deste que o meu irmão veio a ser padrinho, talvez por estar a jeito e assim não precisar de ir convidar outra pessoa. A residência do meu tutor e patrão eram em Campolide, passando a ser também a minha, a partir do momento em que comecei a trabalhar para ele,
Continuava a ir a Alvalade sempre que podia, mas sempre que havia amigos que conhecia antes, como o José Manuel Santos que conhecia da Rua dos Prazeres e era "aviador" como eu, um ano mais velho e que vim a reencontrar em Luanda, enfermeiro no Hospital Militar e antes de ser mobilizado era enfermeiro no Hospital Militar perto da Estrela e outros que se iam juntando durante os treinos: nunca houve qualquer vinculo com o SCP-Sporting Club de Portugal, exatamente por falta de assiduidade aos treinos e não dar o rendimento exigido.
Em Outubro de cinquenta e oito inscrevi-me no Campolide Atlético Club para poder frequentar a sede e participar num curso de ginástica para todas as idades, uns iniciados, outros para fazer manutenção e um já adiantado, filho do diretor do clube e que dava apoio ao orientador do curso, um oficial da Força Aérea e que mais tarde foi dirigir o antigo INEF-Instituto Nacional de Educação Física.
No inicio de Dezembro desse ano, começámos a preparar-nos para o Sarau, que iria ter lugar no Ginásio Clube Português num dos primeiros dias de Janeiro.
O entusiasmo era grande e todos procuravam fazer o melhor que sabia o conjunto dos exercícios. O filho do diretor, já com muitos anos de experiência, era o que fechava as sequências, com um ou dois mortais, para nós bem executados.
No meio deste entusiasmo e num dos saltos executado com ajuda de trampolim e desenvolvimento sobre o plinto e saída no tapete, com duas cambalhotas sobre ele, devo ter executado mal um dos movimentos e bati, com alguma violência, na saída do plinto, com a região lombo-sagrada e a inevitável queda.
Feita a assistência possível, pareceu não ser nada de grave e de facto não era, mas não deixou de provocar um traumatismo doloroso que me levou a ter de recorrer ao então muito falado "endireita da Esperança".
A aconselhada radiografia não revelou quaisquer lesões ósseas, mas por algumas semanas  teria de esquecer a ginástica, foi a "sentença" Para mim lá se foi a presença no sarau previsto para o inicio de Janeiro.
O meu tutor, que à época já o era menos, ficou danado com o diagnóstico do Endireita e num rasgo de coragem e franqueza, ou de pequena vingança, por eu ter recusado, um ano e tal  antes, a proposta de sociedade que ele e o seu compadre e meu patrão, tinham engendrado para um outro estabelecimento que tomaria de trespasse, sendo a partir dessa recusa que eu ao atletismo a ginástica, desabafou:
" era preferível andares a estudar do que a dar cabo do canastro lá na ginástica!"
Acho que tens razão, respondi! E saí porta fora , comprei o Diário de Noticias e indo direito à publicidade, procurei a coluna das explicações.
A primeira hipótese, na Joaquim António de Aguiar, ali perto do local de trabalho, era o que dava jeito, mas foi logo posta de lado no momento da entrevista com o professor; era demasiado brusco para o meu feitio, conclusão tirada da forma como ele falou para um miúdo que a ele se dirigiu para tirar qualquer dúvida. Despedi-me e disse-lhe que daria a resposta depois. Não dei.
A outra hipótese, bem mais distante, propunha mais ou menos isto: "preparam-se alunos para exame do ciclo preparatório e na área das ciências até à faculdade", Ficava junto à Praça do Chile. Para lá me dirigi, subi ao quarto andar no elevador.
Era o dia vinte e dois de Dezembro de cinquenta e oito. Atendeu-me o doutor Diniz. Acertámos as condições, nomeadamente preço e horários; estava dentro do meu tempo disponível e capacidade financeira; acabada a entrevista, propôs-me: "se quiser ir conhecer os colegas de turma e assistir a uma aula de geometria, pode aproveitar" Assim, sem mais adornos, como eu gosto, lá fui conhecer os colegas: três senhoras, com idades entre os vinte e os trinta anos e os homens, dois deles dentro do escalão das senhoras e um deles perto dos quarenta.
A mais velha das três era minha conhecida, queria fazer o ciclo preparatório para poder melhorar na carreira que tinha escolhido e que só agora tinham sido dadas condições, era já auxiliar de enfermagem, mas não passava daquela categoria com apenas a quarta classe; as outras duas eram empregadas de escritório e queriam mudar, mas só com o ciclo preparatório feito. Dos homens, o mais velho era para poder mudar de escalão, o mais novo não trabalhava, mas gostava de ser toureiro o do meio apenas queria saber mais, trabalhava mas nada tinha a ver com a melhoria profissional.
A colega mais velha e minha conhecida, vim a saber por ela a seguir ao Natal, morava em Campolide e no mesmo prédio que eu, no andar de cima, o segundo.
Todos eles tinham aulas desde Outubro e isso fiz notar ao professor, se não iria traumatizante para mim e perturbador para eles, mas ele me tranquilizou, dizendo que se estava sempre a rever matéria dada antes e ele se encarregaria de me ajudar a integrar.
As aulas foram interrompidas durante ou dois dias de Natal e no dia vinte e seis já tive a aula completa.
O mais velho desistiu cerca de duas semanas depois, ou melhor, em Janeiro não voltou.
Num desses primeiros dias, no elevador, a minha conhecida e vizinha perguntou se não eramos vizinhos? Respondi que morava na General Taborda, no primeiro andar do número dez, respondendo ela que morava no andar de cima, com o marido e a mãe. A mãe conheço bem, mas a vós e marido não me lembro mesmo, devendo ser devido aos horários; saio de madrugada, almoçar a correr e as noites tinha-as sempre ocupadas, ora com o atletismo, ora com a ginástica, mas agora uma das modalidades vai ter de ser sacrificada, uma vez que as aulas eram até às onze da noite e três por semana. Vai ter que ser a ginástica, uma vez que estou numa pausa de recuperação.
Esclarecidos quanto a residência e família, nos dias seguintes começámos a fazer o trajeto no mesmo elétrico até Campolide e depois a pé até casa. Era, sobretudo, das aulas que falávamos e foi assim que fiquei a saber que ela e quase todos os outros colegas já tinham aulas desde Outubro e um ou dois desde Setembro; falou-me das dificuldades que alguns sentiam e sobre nós não havia grandes aberturas, talvez por termos diferentes profissões e certamente também por não ser suficientemente curioso-
Alguns dias separávamo-nos em Campolide, ela seguia para casa e eu ia até ao Clube para ver como decorriam as coisas por lá e cavaquear com alguns amigos que sempre paravam por ali.
Os tempos de proximidade chegaram de várias formas, mas sobretudo por passarmos a conhecer melhor. Entrámos mesmo em confidências, ela querendo saber se eu tinha ou não namorada e dela fiquei a saber que era casada há sete anos e o marido era dezoito anos mais velho! Perante o meu espanto acrescentou que a Mãe, viúva, com duas filhas e apenas a pensão do falecido Pai, não tinha grande margem de manobra financeira, certamente terá sido por isso que procurou que as filhas casassem cedo e  sem grande preocupação, como foi o seu caso, de estar claramente ausente na decisão.
Tinha ela vinte e sete anos e eu dezanove quando nos conhecemos. O que ela apreciava em e eu nela só mais tarde viemos a analisá-lo, não com a clara intenção de análise.
Era elegantíssima, vestia-se com gosto para a época e tinha um sorriso de rara beleza, trincando a ponta da língua ao mesmo tempo que o som surgia, dando-lhe um ar gaiato e trocista que seduzia e era difícil esquecer aquele conjunto de rosto tão invulgarmente desenhado.
Algo estava a passar-se e que ia além da simples amizade entre colegas ou vizinhos, ou mesmo ambas as realidades. Com a chegada da Primavera e as noites mais tépidas o percurso a pé, com calçado de salto alto, que sempre fora cansativo, foi melhorado com a entrada das sabrinas, muito na moda então; levava as sabrinas na bolsa e quando acabavam as aulas descalçava os sapatos e calçava as leves e flexíveis luvas para os pés, ao mesmo tempo que dizia: caminhar sim, mas não estragar o prazer com os pés a doer! Excelente! Não mais quisemos outra modalidade, só alterada quando, de todo, o tempo o não o permitia.
Perto do fim de Abril ou inicio de Maio, as três colegas notaram que estavam a ficar atrasadas no Português e Francês e combinaram arranjar quem lhes desse uma ajuda. Encontraram perto da Estefânia, a cinquenta metros do Jardim de Cesário Verde.
A ginástica, devido à pancada, estava em suspenso e o curso também, por o professor Nelson Correia Mendes não ter sido reconduzido, por que razão não sei. Assim fiquei só com as três aulas por semana; as outras três noites passei a ir estudar num café do Largo de Dona Estefânia, esperava que a colega terminasse a aula, mudava de calçado e lá íamos fazer o nosso passeio nocturno até Campolide,
Foram tempos de muita beleza que chegaram com a Primavera e que enfeitaram as nossas noites.
Não tardou que o “passeio” fosse feito de mão dada, sem outra promessa ou envolvimento para além da nossa saudável amizade e juventude.
Até dava para inventar amuos para de seguida os esclarecer e ver aumentar a nossa espontânea alegria.
Alguns domingos de tarde, era o meu descanso semanal e nem sempre o era, ou porque o patrão precisava de tratar de algum assunto, ou até para ir passear com a família e lá ficava eu mais uma semana sem tempo de descanso; quando tinha mesmo a tarde disponível a colega, alegando e era verdade, que os exames se aproximavam e que eu lhe podia dar uma ajuda na matemática, passámos a ir para casa duma prima sua, que morava na Travessa da Fábrica dos Pentes, junto do Jardim das Amoreiras, sozinha.
Reparei que a senhora, relativamente nova, não mais de quarenta anos, mal nós chegávamos, dava sempre uma qualquer explicação para sair e só umas duas ou mais horas depois é que regressava.
Houve, da parte da colega, várias tentativas para alterar a harmonia daquela relação de amizade tão invulgarmente bela, mas a cada avanço eu fingia que não percebia e tudo voltava ao normal, ou assim me parecia.
Não era assim, ela não tinha perdido a intenção de deixar a situação ganhar raízes sem que o seu objectivo fosse alcançado e eu estava a ficar sem vontade de resistir a um assédio que chegava a ser doloroso.
Uma noite, no regresso da aula dela de português, disse que não iria para casa quando chegasse a Campolide, por precisar de ir ao Clube tratar das minhas quotas; ficou amuada, não mais falou e nem respondeu ao meu desejo de boa noite. Ela iniciou o percurso pela Rua de Campolide, para depois virar para a esquerda pela General Taborda e eu espicaçado com o amuo dela, em vez de ir para o clube fui pela Rua de Campolide e não segui atrás, acelerando o passo virei pela rua Victor Bastos e logo a seguir pela nossa rua, a Leandro Braga e entrei para o prédio onde fiquei a aguardar a sua chegada, sem acender a luz e desejar que ninguém saísse do prédio àquela hora; mal empurrou a porta, para ela não se assustar, eu passei para a zona iluminada pela luz da rua; deixando escorregar para o chão a carteira e os compêndios, caímos nos braços um do outro e um beijo sôfrego, quase violento e escaldante, o primeiro e sofrido beijo.
Deixei os livros em cima da caixa de correio e saí, alegre como um adolescente que desse o primeiro beijo, indo vaguear por Lisboa, não queria que o sono apagasse aquele sabor e só voltei horas depois, cansado mas radiante.
Eram quase quatro da manhã. A colega estava à janela e esboçou um leve aceno de despedida.


                                                           III


Tínhamos que, como externos, requerer exame e um professor diplomado que a exame nos propusesse. Cada professor só podia propor um determinado número de alunos, sendo o irmão do doutor Dinis, explicador na área das letras, quem nos propôs, enquanto que o nosso professor, Dinis também, tinha já proposto as duas outras colegas para um liceu de Lisboa, penso que tenha sido o Camões e dois dos colegas, o terceiro tinha desistido, a favor da festa brava, os touros de seus sonhos!
Alguém terá dito, à colega e vizinha, que no liceu de Oeiras eram menos exigentes do que a maioria dos de Lisboa. Só que esta hipótese criava um outro problema, o da residência: para ali podermos fazer exame teríamos de morar na área do concelho; a colega se encarregou de tratar, através de uma família sua parente que lá morava, arranjar um atestado de residência para cada um e com este pequeno truque de ilegalidade lá nos apresentámos a exame, iniciando-se no dia vinte e dois de Junho pelas provas escritas de português e francês, por esta ordem.
No intervalo encontrámo-nos no átrio do liceu, ambos tendo confirmado qua a prova nos tinha corrido bem.
Quando a prova de francês terminou e eu cheguei ao átrio, estranhei que ela já ali estivesse à minha espera. Nem tempo tive para perguntar nada, ela se encarregou de me por ao corrente: tinha desistido a meio da prova, na parte da tradução, tendo bloqueado ao não se lembrar do correspondente em português para atermo "àne". Enervou-se e desistiu. Fiquei sem saber o que dizer, porque de vez em quando era isso que chamávamos uns aos outros, sempre na brincadeira, claro.
No comboio para Lisboa conversámos e consegui convencê-la a requerer exame para a segunda chamada, por não ser razoável perder um ano de trabalho e despesas! De igual modo prometeu que a partir de Setembro retomaríamos o trabalho e os nossos encontros.
No Cais do Sodré apanhámos o autocarro para Campolide e diretos para sua casa, pois tinha que mudar de roupa devido ao muito calor que estava e o ter-se enervado com a desistência.
A blusa de seda num tom de rosa-violeta muito suave, era abotoada nas costas e era uma fiada de botões, forrados do mesmo tecido e muito próximos uns dos outros, partindo da nuca até um pouco abaixo da cintura, sem botões seriam cerca de dez ou quinze centímetros. A seu pedido foram por mim desabotoados, com toda a calma possível, mas ambos estávamos psicologicamente abatidos e embora estivesse na mente de ambos bem mais, na verdade é que não fomos além de um abraço de muita amizade e ternura que a ambos soube bem e isso mesmo declarámos durante o almoço ligeiro que ingerimos sem sequer o apreciarmos.
Foi muito mau tudo o que se passou a partir das onze da manhã daquele dia e penso que nos terá afetado a ambos.
Nos dias seguintes continuaram para mim as restantes provas, ou seja, a matemática, as ciências e o desenho. Tudo sem problemas a não ser a parte do desenho que era designada por composição decorativa, que muito mal decorada ficou, mas já nada havia a fazer!
Como a colega tinha pedido férias para o período dos exames, encontrávamo-nos  sempre depois de eu chegar de Oeiras, indo mesmo lanchar na Baixa.
Num dos dias, ou vinte e nove ou trinta sairiam as pautas com os resultados dos exames da prova escrita. Como eu tinha que me apresentar no Regimento de Caçadores Cinco, em Campolide, para a inspeção militar, foi ela a Oeiras ver os resultados e, se eu tivesse passado, ver quando eram as orais.
No regresso, ao almoço, festejámos a passagem à oral com a média de treze e duas décimas, tendo sido o desenho e a composição decorativa, sobretudo, já que no geométrico tive dezoito, quem me obrigou a ir fazer as provas orais. Nesse ano a dispensa era a partir dos treze e meio.
Há males que vêm por bem, como adiante veremos, com as orais.
- E na inspeção? perguntou.
Estou aprovado para todo o serviço militar. Como ela continuava de férias, continuávamos a encontrar-nos ao fim do dia e à noite aproveitava para fazer algumas revisões com o doutor Dinis, nomeadamente o francês que era o que poderia trazer algumas dificuldades na oral.
E assim foi. Na primeira prova, exatamente o francês, coube-me uma professora de francês, bastante jovem, falando de forma tal que as fragilidades do doutor Dinis sabia ter, pois era mais virado para as ciências, em que se formou! Mas o que aprendi chegou para fazer a prova sem constrangimentos. Foi exatamente nas ciências, onde cheguei à oral com média de dezasseis e meio, um pouco menos do que na matemática, mas que poderia ter deitado tudo a perder.
O examinador devia ser professor de ciências, mas de uma ou duas disciplinas bem definidas, pelo que vim concluindo durante os exames a que fui assistindo nos dias anteriores. Ele fazia as perguntas a partir de um bloco, já amarelecido, que devia ter a pergunta e a resposta ao lado, ficando mesmo convencido que o bloco tinha um picotado a separar cada pergunta, ou grupo de perguntas-respostas.
Quando à terceira ou quarta pergunta me coloca aquela que no dia anterior tinha posto a uma rapariga, que só naquele dia tinha visto, e a pergunta era: " diga-me o que é uma savana?"; a reação foi tal que, ao encolher as bruscamente pernas por debaixo da carteira, o tampo se ia desprendendo.
Respondi com a calma que consegui, mal disfarçada devido ao movimento da carteira: a pergunta feita é sobre matéria que não faz parte do programa! O professor, espantado, talvez por estarmos numa sala quase cheia de alunos e assistentes, fez a deriva da pergunta: " se eu me não teria esquecido de estudar esta parte da matéria?!" Respondi, agora disposto a tudo, que não fazia parte do programa-
Mudou de tema, já com a dúvida a ganhar forma, e o resto do exame foi desde os movimentos da Terra, as fases da Lua e seus efeitos e algo mais que não recordo, decorrendo com normalidade.
Mal acabou a prova saí e fui tentar encontrar alguém que tivesse o compêndio, uma vez que eu o não tinha levado; nem o de ciências nem qualquer outro.
Uma família de Oeiras que tinha a filha em exames também, propôs-se ir a casa buscar o compêndio. E quando o doutor João Santos, penso que era este o apelido, deixava o liceu para ir almoçar, é por mim interrompido, de compêndio na mão e a tentar demonstrar-lhe que a razão estava do meu lado. O senhor, simpaticamente, coloca a sua mão esquerda no meu ombro direito e diz: " que já tinha confirmado a minha afirmação durante a prova e que fora decidido retirar aquela e outras perguntas que não eram do programa atual". Esclareceu, sem que eu perguntasse, que era professor dos ciclos secundário e complementar e que só estava naquela função por solicitação do liceu e para substituir um colega que estava de baixa médica.
Fiz-lhe sentir que, pelo menos na tarde do dia anterior e na manhã daquele dia já outros alunos tinham sido questionados sobre aquela matéria e, talvez por nervosismo, responderam que não sabiam; esclareci ainda o doutor João de que a mim não me prejudicava muito, não estudava por me fazer falta o diploma para qualquer promoção ou coisa parecida, mas uma das pessoas examinadas ontem de tarde, segundo soube, se não passar vai ter de repetir e a promoção no serviço onde trabalha, vai-se definitivamente por água abaixo o que lhe trazia grande perturbação.
O doutor João apertou-me a mão, deu duas palmadas no ombro e garantiu-me que iria rever toda a situação e que nenhum dos alunos antes examinados seria prejudicado por causa da matéria agora questionada.
E deve tê-lo feito. Passaram os três do dia anterior e os dois da manhã em que eu levantei o problema.
Uma ou duas semanas depois cruzei-me com o doutor João, vinha eu do mercado das frutas e ele ia apanhar o comboio para Oeiras no Cais do Sodré.
Seriam umas sete e trinta da manhã. Ele morava em Lisboa, na Estrela.
Fez-me uma grande festa, elogiou a minha determinação no exame, colocou-se à disposição para o que pudesse e eu precisasse e fomos tomar café. Daí em diante, mais que um dia por semana, tomámos café juntos .
O doutor João só existiu a partir do dia do exame e o amigo cerca de uma semana depois.
Desejei-lhe um bom percurso profissional e ele desejou-me felicidades e a mensagem de que continuasse a bater-me, sempre que as achasse justas, pelas causas que a vida não deixaria de me colocar


                                                           IV


O doutor Dinis fez umas curtas férias de Verão, com a esposa grávida e em Setembro, logo no inicio do mês, retomámos o trabalho.
Tinha-me dado, antes de ir para férias, uma lista do que iria para o segundo ciclo ( terceiro, quarto e quinto anos ) dos liceus; alguém me sugeriu que a livraria da Trindade costumava ter livros escolares em segunda mão e sempre seriam mais baratos do que se fossem novos. Assim fiz. Alguns dos compêndios já não eram em segunda mão, mas em terceira e até em quarta, pois tinham vários nomes escritos na contra capa. Comprei todos os compêndios a alguns cadernos de exercícios, só não tendo os compêndios de desenho e de matemática.
Fiquei um tanto assustado com a pilha de livros, mas não havia recuo possível, tanto mais que o doutor Dinis e a colega do ano anterior me deram um empurrão, dizendo que eu era capaz de ultrapassar alguma dificuldade, se a houvesse.
Eram dois amigos que seria difícil encontrar noutras circunstâncias e que pareciam mais certos das minhas capacidades do que eu, que não era coisa em que pensasse.
E lá continuámos, com entusiasmo. A partir de Outubro teria já mais dois colegas, guardas da GNR-Guarda Nacional Republicana, que precisavam de aprender as bases da eletricidade para poderem ser promovidos. Passaram tormentos! A eletricidade que eles precisavam aprender envolvia equações do segundo grau e eles não sabiam mais do que a aritmética da quarta classe. Dois meses depois, desistiram.
A minha aprendizagem decorria a um ritmo razoável, sendo certo que aproveitava todos os tempos vagos, mesmo durante a hora de serviço, sobretudo de tarde, em que havia menos que fazer; tirar apontamentos, fazer exercícios, corrigir falhas, eram a ocupação desses períodos do dia e à noite, com o doutor Dinis. era para avançar com novas matérias e tirar dúvidas.
No desenho, além do doutor Dinis, tive a ajuda de um oficial da Marinha, penso que contra-almirante, na situação de reserva, que morava na Rua Castilho, onde veio a ser construída a sede da Caixa Central de Crédito Agrícola e era casada com a dona Fernanda, parente em grau afastado de Fontes Pereira de Melo, fidalgo da Casa Real, deputado e ministro, ligado às Obras Públicas, tendo o seu nome em diversas infraestruturas um pouco por todos os pontos do País. O oficial da Marinha, na reserva, era um dos administradores da Diamang, tinha um neto que, como eu, andava na mesma faina dos livros, mas no horário normal. Esta família era cliente do estabelecimento, assim como a que morava no primeiro andar, a  Castro Caldas,  talvez a melhor cliente, por ter uma familia numerosa, com cozinheira própria e empregada de quartos, assim era designada.
Em Fevereiro saíram os editais da incorporação militar. Como queria não interromper as aulas, alguém me sugeriu que devia fazer um pedido para ficar num dos quartéis de Lisboa.
Por coincidência, em casa do meu irmão e senhor Virgílio, morava também, num quarto com direito a serventia de cozinha, uma senhora já idosa, viúva de um militar que falecera devido a ferimentos na I Guerra Mundial, vivendo duma pensão de sobrevivência por morte do marido; quando ouviu falar do meu caso, prontificou-se a indicar-me um senhor brigadeiro a quem ela podia colocar o problema e saber se havia alguma possibilidade.
A senhora tratou de tudo e eu só tive que ir à residência do senhor brigadeiro buscar um cartão de visita dirigido a um outro oficial, de quem dependia a decisão. E assim foi. O Distrito de Recrutamento era perto de Santa Apolónia e o cartão terá sido a alavanca ou então não havia qualquer problema em conceder a satisfação do meu pedido. Eu próprio escolhi o Regimento de Artilharia Ligeira Um, pertinho do local de trabalho, podendo mesmo fazer algumas horas quando o tempo o permitisse.
E no dia quatro de Abril de mil novecentos e sessenta assentei praça no quartel escolhido. Tive de corrigir as habilitações por conselho de um furriel que estava a registar as entradas, porque, dizia ele e com razão, para poder requerer tempo para exames ao Ministério, teria que indicar as habilitações anteriores.
O pedido tão facilmente satisfeito a escolher o quartel, teve um efeito de pouca duração; logo num dos primeiros dias de Maio fui mandado para Vendas Novas onde iria especializar-me em Meteorologia.
Recordo de, a certa altura, ter apostado com o doutor Dinis, devido a um exercício de ótica, que na aula anterior tínhamos estado a resolver, tendo ela concluído que só era resolúvel pelo método algébrico de equação, penso que do segundo ou terceiro grau, a três incógnitas e que eu em casa tinha resolvido pelo geométrico, baseado na teoria da igualdade de triângulos. A aposta era uma garrafa de espumoso bruto. Provada a minha solução, ficou assente que a beberíamos para comemorar o nascimento do filho.
Deste período ficaram como marcos inesquecíveis: o doutor Dinis, a colega do andar de cima e o doutor João, professor em Oeiras.


                                                           V


Quando, em Maio cheguei a Vendas Novas, já com registo de alguns incidentes no RAL 1 - Regimento de Artilharia Ligeira Um, sobretudo do primeiro dia de instrução, naturalmente iniciando pelos deveres e direitos dentro da instituição militar. O alferes, para marcar bem a questão dos deveres, sentenciou:
" A partir deste momento, terão que conhecer e saudar, todos os oficiais e sargentos desta unidade, mesmo trajando à civil!"
Como é possível, meu alferes, se não vi mais que dois ou três e fardados, certamente bem diferentes quando se apresentassem à civil?
"É o que diz o RDM- Regulamento de Disciplina Militar e as ordens cumprem-se e não se discutem!"
E se não estivermos de acordo com a ordem temos que a cumprir? perguntei. E se me mandar subir ao telhado do edificio e me mandar atirar dele abaixo ou meter-me à frente do comboio até ser feito em pedaços?
"Se essa ordem for dada, atira-se!"
Não sei, meu alferes, tenho mesmo muitas dúvidas!
Fiquei com a ideia, naquele primeiro dia, de que aquela gente não era para levar muito a sério! E com este suporte defensivo lá fui aprendendo as diversas formas de preparação para a defesa da Pátria!
No Ral, em Lisboa, dizia-se que em Vendas Novas a disciplina era implacável e que ao mais pequeno deslise estávamos tramados!
Não foi difícil a adaptação, ao contrário do que se dizia. A Bateria de Referenciação foi, ao que me pareceu, mas sem confirmação oficial, um projeto pioneiro, parecendo-se com uma escola de formação dos tempos correntes da União Europeia: formava artilheiros, meteorologistas, ferreiros, carpinteiros, cozinheiros, e outras especializações.
Os comandante e sub comandante eram, respetivamente, os tenentes Loureiro dos Santos e Leiria Pires; enquanto este não mais ouvi falar dele, com aquele ainda me encontrei em Luanda, onde apareceu a comandar uma Bateria de Artilharia Anti Aérea, que ficou aquartelada no GACL, onde eu estava desde Julho de sessenta e um e depois de eu ter terminado foi ministro do primeiro governo de iniciativa presidencial, mais tarde Chefe do Estado Maior do Exercito e, já na reserva, comentador de televisão para as questões estratégicas das guerras e com vários livros publicados sobre estratégia politico militar.
Os instrutores das várias especialidades que a na Bateria de Referenciação formava , eram alferes da Escola do Exército que iriam fazer o tirocínio para a futura promoção a tenente. Do único que falarei, naturalmente, será do instrutor de meteorologia, o alferes Pires Nunes, era um amigo que muito estimo, um militar de pequenos voos, um humanista, com quem me cruzei em Luanda por duas vezes, já como capitão e depois em Leiria, durante uma distribuição de propaganda politica das primeiras eleições, para a Assembleia Legislativa, já como major! A partir daí nunca mais soube dele.
Era um oficial de trato afável, da idade de todos os instruendos, e tinha o tique de trincar o interior do canto da boca, que o devia perturbar quando nele pensasse, mas não o conseguia evitar. Chegava a ser divertido reparar no esforço que ele fazia para dominar o tique!
Além de instrutor, naquele caso de meteorologia, era também um desportista, nomeadamente, segundo ele dizia, do lançamento do peso, sendo mesmo o melhor do seu curso na Escola do Exército. E como eu tinha experimentado, no torneio Primeiro Passo, esta modalidade, sem êxito, cheguei a acompanhá-lo nos treinos na traseira das casernas e no espaço entre o edifício onde eram dadas as aulas, refeitório e camaratas do curso de oficiais milicianos, mais usado na linguagem corrente o COM, iniciais do curso, e registado no meu melhor lançamento, cerca de um metro a mais.
Foi este oficial que me ajudou na última parte da álgebra, nas inequações, matéria que não tinha sido dada pelo doutor Dinis.
O pedido de autorização, feito ao Comando da Escola para requerer exames em Junho, por qualquer razão que não ficou nunca muito clara, não chegou a tempo a autorização e lá se foi a possibilidade de nesse ano fazer nesse ano de sessenta os as provas das ciências do quito ano, para as quais me sentia mais que preparado.
A Meteorologia ia de vento em popa, terminando a primeira fase com dezanove e seis décimas, de ponto! Meteu galhardete, ser o porta bandeira nas cerimónias do juramento de bandeira; nas provas de preparação física tive direito, mais não sei quantos, à medalha de primeira classe.
A bateria de Referenciação tinha as suas instalações nos edifícios da Escola, separados do conjunto mais antigo por uma rua que ia dar acesso à estação de caminhos de ferro, onde se juntaram os cursos de oficiais milicianos (COM) e de Sargentos milicianos(CSM).
Terminada a recruta passámos, os militares da Bateria de Referenciação, para as instalações antigas para frequentar o que era designado por Escola de Quadros (EQ).
O instrutor da Meteorologia passou a ser um tenente, de apelido Neves, oficial de trato difícil, injusto e vingativo. Como professor era uma lástima! Nunca percebi bem porquê "tomou-me de ponta" e eu correspondi de igual modo. Nunca aceitou a forma como eu era tratado na BR, quer pelo alferes Pires Nunes, quer pelos dois tenentes do comando, Loureiro dos Santos, comandante e Leiria Pires, subcomandante e talvez se tenha juntado o facto de ele saber que só estaria naquela fase do curso até vir a juntar-me aos milicianos do Curso de Sargentos, no segundo ciclo.
Tudo fez por me provocar uma reação em que pudesse pegar-me e eu, com os cuidados suficientes, nada fiz para lhe facilitar a vida desde a primeira semana. E, logo no primeiro teste, sendo a matéria a mesma dada na primeira fase, baixei a nota para os sete e meio, no segundo para sete e no terceiro apenas seis.
Com alguma frequência me cruzava com o tenente Loureiro dos Santos e mais não fazíamos do que regulamentar saudação militar; no inicio da semana seguinte à da minha nota de seis, os testes eram à sexta feira de manhã, cruzei-me no corredor de acesso à parte antiga e após as continências ele, já parado, interpelou-me:
- O que se está a passar, Monteiro? Perguntou.
Como não percebi o alcance da pergunta, respondi: desculpe, meu tenente, mas não estou a entender!
- O que se passa entre ti e o tenente Neves? Esclareceu.
Ah, desculpe meu tenente, mas não estava a entender, não pensei que fosse esse o assunto! Em meu entender nada se passa declaradamente!
- E não declaradamente ? insistiu.
Bem, aí há um conflito latente que não será fácil saná-lo!
- Não vou entrar em pormenores, mas desde já te aviso que se não alterares a tua atitude é mais que certo que o tenente Neves te vai levantar um processo disciplinar!
E eu vou correr esse risco, meu tenente, e logo se verá o que no final sucede.
Nessa semana chegou a ordem da minha passagem para o Curso de Sargentos Milicianos, faltando apenas vir na OS -Ordem de Serviço.
No teste dessa semana, sabendo já que na segunda feira ia transitar para o CSM, a nota foi de dezoito, o que enfureceu ainda mais o tenente Neves.
"Não mais me cruzei com este oficial e só muito tempo depois, já em Luanda, um dos sargentos que acabara de chegar, com destino a uma das baterias aquarteladas algures na zona de intervenção, estando em transito, portanto, se lembrou das peripécias de Vendas Novas, me perguntou se sabia alguma coisa sobre o tenente Neves? Não, não ouvi sequer falar em tal criatura. Foi encontrado morto no seu gabinete, na Escola Prática, com um tiro na cabeça, não era ainda conhecido se terá sido suicídio ou homicídio. A noticia chocou-me profundamente, mas não admirado, conhecendo o oficial como conheci e sua injusta conduta em relação aos subordinados".
Retomando Vendas Novas.
Na segunda feira seguinte voltei ao inicial espaço da EPA e fui integrado na segunda bateria, estando a preparar-se os exercícios finais - os segundos, estes só para os Cursos - COM e CSM.
Quando as especialidades foram definidas e onde cada uma delas ia ser tirada, a mim coube-me a de Munições de Artilharia e seria tirada em Sacavém, no Regimento de Artilharia Pesada número Um.
Mas, para que não perca alguns dos momentos bem mais marcantes do que a rotina das paradas, das aulas, vou tratar um ou dois assuntos em separado.


                                                           VI

Primeiro - Ainda na Bateria de Referenciação, já quase no final de recruta, acabámos a aula de preparação fisica e, logo de seguida havia um exercicio em parada, como sempre precedido de formatura.
Por qualquer troca de movimentos, ao mudar de farda, o tempo era tangencial entre um e outro dos exercícios, atrasei-me e mais dois camaradas, cerca de três segundos.
O tenente Loureiro dos Santos intimou os três faltosos a irem ao seu gabinete, no final da parada, para falar connosco, individualmente.
Depois de acentuar que os horários eram para ser cumpridos e de ter feito uma resenha do que poderia suceder em três segundos e do que podia ser evitado se não chegasse atrasado, tudo isto enquadrado numa situação de guerra, perguntou-me o que eu achava que devia fazer? Perante a explicação dada e o meu convencimento, acho que devo ser punido. Mandou -me retirar e não soube o que terá dito aos outros dois faltosos, mas na palestra da sexta-feira seguinte, o comandante voltou à questão dos atrasos às formaturas ou a outra qualquer situação, para frisar que um dos três faltosos no dia anterior, não citando nomes, um dos soldados achou que devia ser punido.
Não fui punido, não foi nenhum dos três.
Segundo - penso que era às quintas feiras de manhã, semana sim, semana não, havia uma aula de canto coral, conduzida por um segundo sargento de cavalaria, que ali se deslocava para o efeito.
A formatura era em "U" e o local era entre a caserna da segunda bateria e a da Bateria de Referenciação, que ainda era a minha, sendo os dois braços do "U" formados pelas duas escolas do CSM e a base pela Referenciação.
O sargento instrutor revelou, logo no primeiro dia, um tique que se prestava às mil maravilhas para ser plagiado por um ou outro dos diversos brincalhões que entre os cerca de duzentos e cinquenta jovens havia..
Depois de referir o que iria ser cantado acertava o tom com aquela pequena gaita de beiços que é usada apenas para exemplificar o som de cada uma das notas musicais, cuja designação não recordo. De seguida fazia a sua demonstração oral e esta sequência era interrompida com um pst, pst, pst, mais para pedir atenção ao coro e de seguida ensaiar, para logo parar dizendo que havia algumas vozes fora de tom.
Iriamos na terceira ou quarta aula. O ritual era o mesmo, o espraiar do tema, a gaitinha, a sua demonstração oral, o pst, pst, pst e mais um pst que soou desgarrado da boca de um dos alunos que só saberiam quem foi os que estavam juntos. O maestro não gostou da irreverência, pois só disso se podia tratar e nunca perturbar o trabalho do maestro.
Numa atitude de excessiva e até descabida autoridade, deu ordem para a posição de sentido, posição rígida e que colidia com o Regulamento ou o pervertia, usando uma linguagem de caserna "em sentido não mexe nem fala" e se não se fala também se "não canta".  Esta deve ter sido a interpretação que o coletivo fez mentalmente, mas algo mais profundo varreu a formatura em sentido.
O maestro repetiu todos os gestos do costume, a gaita, os pst. pst, os  prontos? e agora todos: Só que, do todos, só se ouviram as primeiras notas articuladas por duas ou três bocas, que de imediato silenciaram. O sargento, desconheço que conclusão tirou, mas voltou ao principio, fez uso do pequeno ritual e "agora todos". Nada se ouviu! Como se a ordem fosse interpretada ao contrário, em vez do agora todos, tivesse sido dada a ordem do "agora nenhum"! Cerca de quatrocentos homens, alunos de cursos diferenciados interpretam o Regulamento duma forma mais correta do que um sargento do Quadro Permanente.
O caos instalou-se e o nervosismo do sargento cantador era notório frente a uma formatura em sentido e em completo silêncio.
Chamou o faxina a quem deu ordem para procurar o oficial de dia e pedir-lhe para ir aos Cursos.
Chegou um tenente, de braçal vermelho, conferenciaram  oficial e maestro e de seguida deu a ordem para a formatura passar à posição de descansar.
O sargento lá retomou a aula e quando mandou "agora todos", com uma ou duas fífias, até nem correu mal. Em todas as vezes anteriores a última atuação foi sempre o hino Nacional e tinha chegado o momento de o maestro regressar, anunciou  "vamos agora cantar o Hino Nacional" e quando deu a tal ordem do "agora todos", mais pareceu uma voz de comando a ordenar a posição de sentido! Ouviu-se um batimento de calcanhares quase unânime e perfeito, assim se iniciando a interpretação do Hino Nacional.
O oficial de dia  ouviu em sentido o hino da Nação e quando passou à posição de descansar, a formatura procedeu desse modo também.
Oficial e sargento trocaram algumas palavras e virando-se para formatura mandou destroçar.
Resultado deste incidente: não mais houve canto coral!
Ao perdermos o canto coral, perdeu também o cabo Calapez um dos temas para exercitar o seu gosto pela pintura e pelo desenho, que todos os dias expunha em seus placards de papel de cenário. O cartoon para o canto coral era, por regra, uma parada de militares de boca aberta, de onde saíam as notas musicais de claves de Sol a subirem para um céu pertinho, talvez para que as notas não se perdessem, o que seria uma pena por serem tão sentidas. Foi o melhor cartoonista que tive o prazer de ver em plena criação. E foi pena que aquele motivo desaparecesse!
Era, sem dúvida, um grupo de grande qualidade e de difícil comando aquele de mil novecentos e sessenta.
Tinha de tudo! E estou a imaginar que alguns cérebros videntes militares, já escutavam, nas lonjuras de África, o toque frenético dos tambores das rebeliões em movimento em direção a um futuro incerto, mas futuro.  E não tardou muito para que se sentissem, mas estes não ouvidos por estarem longe demais, na India.
A chamada às fileiras, antes rigorosamente vigiada e selecionada pelos mais diversos truques, passou a ser feita quase a eito e a esmo. Havia que defender, mesmo que à custa da vida dos seus mais próximos, os altos interesses agora ameaçados.
Mas o grupo mais amplo de que fazia parte, todo o de sessenta, veio a ser cindido em grupos mais pequenos e dispersos pelo País, para as ditas especialidades.
A meteorologia não fazia parte dessas especializações, por aí ficando o saber acumulado e que tanto me tinha divertido, sobretudo quando aplicada à balística! Com os meios disponíveis, que eram nulos, fazer um diagrama para uma série de tiros, quase dava tempo para negociar a paz! Por isso nos divertia e se comentava: "uma guerra feita por nós, ou durava uma eternidade ou então os contendores se cansavam de esperar e desistiam de se guerrear".
O grupo de que eu fazia parte, era constituído por dez ou doze instruendos e foi mandado para Sacavém, para o RAP 1- Regimento de Artilharia Pesada Um, onde iria formar-se em munições de artilharia.
Se não recordo ao certo qual o número dos elementos do grupo, não esqueci e espero não esquecer alguns deles:
- O Dias, o mais exímio caricaturista que conheci e com quem de perto privei e admirei;
- O Araújo, figura inteira do homem da Ribeira, sempre disposto a gozar com tudo o que não fosse do Porto;
O Malsa, míope, usando óculos de lentes altamente graduadas, mas que bem precisava de outros meios de ajuda para corrigir defeitos bem mais graves, sendo ao mesmo tempo divertido e tolo;
- O Contreiras, o inefável Contreiras, definitivamente convalescente, mais mental do que físico. Este amigo e camarada de armas tinha ou fingia ter, um medo atávico de tudo o que, na preparação física, lhe cheirasse a saltos ou exercícios de equilíbrio; nunca saltou o muro, mesmo no ponto mais baixo, a paliçada nem pensar era bom e no galho,  só de pensar nele ficava com suores gelados, confessava. Até um dia! O almoço tinha sido cozido à portuguesa ( comia-se bem, nos cursos, em Vendas Novas!) e a bebida o vinho, este sempre feito a martelo, ou seja, de má qualidade. O Contreiras deve ter comido bem e bebido muito. Estavas em vias de não terminar o CSM por causa dos dificuldades com as provas físicas. Deve ter  sido no final do almoço, com a "coragem" que a bebida transmite, que decidiu ir mesmo saltar o galho, prova que mais o horrorizava. E assim fez. Vi-o passar, vindo da caserna, vestido só com botas, cuecas e capacete e dirigir-se para o espaço dos obstáculos, por detrás das casernas e refeitório. O pessoal ria, naturalmente, com a figura que o Contreiras fazia devido ao equipamento selecionado. E as apostas de que agora é que o Contreiras iria transpor todos os obstáculos e perder os medos. Formaram claque, mas todos estavam convencidos de que faria o que sempre fez: subiria, a tremer como "vara verde", agarrava-se às tábuas que formavam o apoio para se chegar à prancha, uma espécie de púlpito para as predicas ou pragas de última hora, e tirá-lo de lá era com dificuldade.
Desta vez não! O diabo, em forma de vinho, tinha entrado no Contreiras e os vapores cresceram mal se levantou da mesa. Subiu as escada de madeira com uma destreza nunca vista nele e quando chegou à altura da prancha puxou-a toda para trás, para a posição das provas de primeira classe, ou seja, ficou no ponto mais distante do obstáculo. Formou o salto, voou pesadamente para o tronco, a mão esquerda ainda ficou no galho, mas o corpo, pesado como era, passou è direita do tronco e com o impulso o corpo ensaiou o balanço de sino, a mão não aguentou e a queda, de cabeça para baixo, foi o resultado.
Um calafrio percorreu a assistência, pois o Contreiras ficara imóvel e a respirar muito mal.
Chamada a ambulância que o levou para a enfermaria, mas logo seguiu em direção a Lisboa, onde permaneceu em coma mais de dois meses. Quando saiu do coma e tomou consciência (terá tomado?!) do que se passara, deve ter feito tudo para convencer os técnicos de que estaria pronto para continuar.
Regressou a Vendas Novas quase na altura de partirmos para as especialidades e lá tive o Contreiras como colega de munições, que terminou com aproveitamento, ao mesmo tempo que escrevia o livro, todas as noites retomado e espero tenha sido já publicado e com êxito.
Vários outros eram interessantes, mas fica só o Trafaria, alcunha por dali ter vindo, cantor lírico, habituado a mimos que a tropa não proporcionava. Quando era ele o indicado para comandar a parada, que também fazia parte da nossa aprendizagem, ele queixava-se sempre de que não podia gritar as ordem de comando por lhe forçar as cordas vocais; o capitão, que não nasceu para as coisas da guerra, aturava-lhe esta excentricidade, aliás, ele aturava tudo a todos; mas houve um dia em que a aula foi dada por um tenente e quando o Trafaria iniciava a sua chorada desculpa, o tenente, que não devia ser fã de ópera,  mandou-o atravessar a parada, que mais não era que o campo de futebol e do outro lado é que iria dar as ordens de comando; nunca mais o Trafaria invocou a sua qualidade de tenor! Espero que ele tenho chegado aos palcos do mundo, depois de ter voltado da guerra.
Dispersos pelas unidades, uma vez acabadas as especialidades, viemos a encontrar-nos, alguns meses mais tarde e um de cada vez, em Luanda, de onde quase não saí:
- o Malsa, vindo do Norte, com aquele seu ar de louco profissional, orgulhoso  de ter comprado, por vinte angolares, a virgindade de várias crianças, uma delas com apenas sete anos! Foi o fim, nunca mais o vi, mas desejo que tenha voltado e tenha sido tratado;
- o Contreiras, com o seu habitual ar de perdido, a passar férias em Luanda e sem condições de acabar o seu livro e o Crime do Padre Amaro, que me pedira emprestado em Sacavém, já há meses o não via, confessou;
- O Araújo, que dele voltarei a falar no apontamento dedicado à Operação Esmeralda, no Úcua o encontrei, em pleno centro da guerra, da qual ele não era parte interessada;
- O Chucha e o Zé Maria, mobilizados ambos com a Bateria de Artilharia cento e quarenta e sete, aos quais me juntei, nos primeiros dias de Setembro para irmos fazer a guerra da Pedra Verde;
- o capitão Pires Nunes, meu primeiro professor de Meteorologia, um tanto confuso com a vida noturna de Luanda e ainda com o tique de Vendas Novas;
- O capitão Loureiro dos Santos, chegou a Luanda à frente da primeira Bateria de Artilharia Antiaérea, importada da Metrópole e que ficou aquartelada, mais a sua ferramenta de guerra, um obus de sete e meio, que terá feito a guerra dos Alpes, a II Grande Guerra! Seria uma das táticas militares a antecipação, assim se justificando a chegada da Antiaérea, quando os "terroristas" já tinham inventado o canhangulo; a catana, que terá sido a primeira arma usada na guerra deles, estava há muito inventada e noutros fins usada! O que não constava  era que os "turras", diminutivo de terroristas,  tivessem já aviões.
Mas voltemos a Vendas: acabadas as especialidades, perto do fim de Janeiro, agrupados não sei por que método e com guia de marcha para diversos pontos do País onde houvesse uma unidade de artilharia, já como cabos milicianos.
O grupo a que pertencia, de cerca de sessenta recém formados, foi mandado para Leiria, com alegria para alguns, supostamente bem informados, de que desse quartel ninguém era mobilizado, por o mesmo  estar integrado num dos organismos da Nato, o SHAPE- Supreme Headquarters Allied Powers Europe.  Ainda pensei que seria para proteger o ou os filhos de alguém, mas este raciocínio não tinha consistência ou a perdia, mal eu recuasse até me lembrar de quem eram filhos alguns dos alunos dos Cursos.
Nos primeiros dias de Janeiro já constava, à boca pequena, que havia problemas em Angola, com sublevações e greves nas explorações de algodão, mas que foram logo reprimidas.
A vinte e dois de Janeiro, Henrique Galvão e o seu grupo, tomaram de assalto o paquete Santa Maria. Mal chegámos ao RAL a unidade entrou em prevenção, com saídas limitadas e guarda reforçada.
As mobilizações devem ter-se iniciado em Março, logo após as escaramuças junto ao cemitério de Luanda e no dia quatro de Fevereiro, com o assalto à Casa de Reclusão de Luanda, onde estavam presos os políticos anti . regime.
As mobilizações devem ter começado pela Infantaria e Cavalaria, mas rapidamente a artilharia foi chamada, tal como as outras armas, uma vez que a filosofia do regime era "Depressa e em Força".
As ordens de Serviço quase todos os dias traziam novas mobilizações, de poucos militares de cada vez. Até que a parada fosse formada para ser lida a tal Ordem de Serviço só se viam grupinhos a cochichar, mas esta prática que inicialmente deve ter sido recomendada como "arma mobilizadora", veio a ser abandonada por ter um efeito perverso. As cenas de real ou teatralizado desespero eram de toda a ordem: gritos, fugas da formatura, desmaios e ataques de fúria que faziam impressão e em vez de serem mobilizadoras  eram de efeito contrário, com algumas deserções confirmadas. Ainda foi ensaiada a formula de o cabo serviço subir a uns degraus que conduziam ao terraço existente por decima da cozinha e o pessoal ia se queria ouvir se o seu nome vinha na lista. Também não resultou esta modalidade. As cenas sucediam-se e chegou a haver tentativa de agressão ao cabo leitor. A fórmula final foi a de afixar as folhas de papel e cada um ia consulta-las quando queria. A rotina foi a arma  que serviu para curar todos os impulsos.
Estava de sargento de dia quando alguém leu o meu nome e me foi informar! Abandonei o braçal e entreguei-o, "com os cumprimentos da família" na secretaria, ao sargento "Siga, Siga", da primeira bateria, onde cheguei a prestar serviço e com o sargento não me dava bem nem mal; ameaçou-me de que iria participar o abandono de serviço de dia ao regimento e ficou desesperado quando lhe perguntei se a punição vinha a tempo de eu embarcar, ou se me condenaria a ír para Angola? Era para este território que eu iria ser mandado, depois de um mês de férias a que todos tinham direito.
As deserções aumentaram com o que da guerra se ia sabendo e algumas unidades partiram com falta de elementos, alguns era na véspera que desapareciam.
As trocas entre mobilizados por não mobilizados era frequente e não constava que alguém se opusesse, mas muitas vezes não tinham nenhum efeito prático, como sucedeu com dois do meu curso. Fizeram a troca, um pagou dez contos a outro e chegaram no mesmo dia a Luanda, um no Vera Cruz, destinado todo a Angola e outro na estreia do Príncipe Perfeito, que atracou cerca de meia hora depois, com destino a Moçambique, mas deixando alguns em Luanda. Isto no dia seis de Julho de sessenta e um.
E com estas ou outras peripécias, era só uma questão de dias e lá partíamos, pois todos eram poucos para defender a Pátria, una e indivisível.

Reis Caçote
Nov/2002-dig.11/14
                                                                                                                                                
                                                                                                                                 
                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

           
































                                                

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