POR DECIDIR FICOU, NO REGRESSO DA "CONVALESCENÇA" EM CASTELO MELHOR, ONDE ESTIVE DE FEVEREIRO A MAIO DE 1954, SE IRIA RETOMAR OS ESTUDOS, DECISÃO QUE, EM ULTIMA INSTÂNCIA, CABERIA AO MEU IRMÃO E "TUTOR"! É ESTE PERIODO QUE FICOU, ASSIM, REGISTADO:
REGRESSO A LISBOA
(Retoma ou não dos livros)
I
A primeira
tentativa para retomar a vida escolar oficial, neste caso no horário pôs
laboral, foi em mil novecentos e cinquenta e quatro, no regresso de Castelo
Melhor, onde estive a convalescer de uma pneumonia, durante cerca de três
meses.
Voltei à
mesma casa onde trabalhava antes de ir mudar de ares. E, para meu espanto,
tinha sido aumentado o meu salário, passando de setenta para cento e vinte
escudos mensais, durante a minha forçada ausência. Incluía, como antes,
alimentação e alojamento.
Três meses
em Castelo Melhor, aos cuidados da minha Mãe, deram-me a robustez física que me
faltava, quando ela me foi buscar a Lisboa. no dia sete de Fevereiro de mil
novecentos e cinquenta e quatro.
O
estabelecimento de mercearia e frutas, situado no Largo de Santa Bárbara, tinha
como vizinho, no primeiro e único andar, o Centro Escolar Doutor Salgueiro de
Almeida, que formava técnicos de contabilidade e afins.
Conheci as
condições de admissão e no fim de semana, ou melhor, no domingo seguinte, da
parte da tarde, era este o descanso semanal, apenas a tarde de domingo! Nos
restantes dias da semana o horário era levantar às cinco e trinta, para
estarmos na Ribeira às seis, comprar o que era necessário e alguma novidade que
houvesse! Às sete abria o Mercado Abastecedor de Frutas e aí se adquiriam as
frutas que houvesse, todas nacionais, quase sempre apresentadas em cabazes de
verguinha que, dependendo do fruto que contivesse, raramente ultrapassava os
vinte quilogramas; era esta a rotina semanal, mensal e anual.
No domingo à
tarde, como estava a dizer, comuniquei ao meu irmão a intenção de ir estudar à
noite. A resposta foi negativa e acho que ele tinha razão, seria muito difícil
de conciliar, mesmo só em termos físicos, um horário das cinco e trinta até às
sete, horário de fecho do estabelecimento, e ainda mais cerca de uma hora para
arrumar tudo e limpar para no dia seguinte tudo estar em ordem. As aulas seriam
das dezanove e trinta até às vinte e três horas, de segunda a sexta feiras.
Perante esta
realidade não houve matricula e a decisão pareceu-me acertada e para mais
acentuar no Inverno de cinquenta e cinco, tive de voltar às "termas"
de Castelo Melhor com os brônquios maltratados e por conselho do doutor França
Borges, tendo em conta os resultados do ano anterior; por lá estive cerca de um
mês, servindo para mais acentuar as razões invocadas pelo meu "tutor".
Quando
voltei já não fui para Santa Bárbara, mas para a Rua dos Prazeres e depois para
São Bento. E assim foi sendo adiada a intenção, mas nunca esquecida, de voltar
aos livros! Aguardava apenas oportunidade.
II
Não havia
escola, mas havia outras atividades: inicialmente foi o atletismo a partir dos
torneios que o SCP-Sporting Club de Portugal organizava e que um deles
designaram como Primeiro Passo; classifiquei-me para a velocidade e o salto em
altura; depois se veria; e quase assim ficou: depois se veria!
Como na Rua
de São Bento o Club Nacional de Natação tinha as suas instalações desportivas, onde
me inscrevi como sócio, tendo o número três mil novecentos e sessenta e três. A
ideia não era apenas usar a piscina, mas ter mesmo aulas de natação, quando as
houvesse; não fui longe aqui também. Como não havia piscina aquecida, só no
Verão funcionava e não deu para aprender; aquilo que via fazer e ia ensaiando é
o que ainda hoje sei.
Em mil
novecentos e cinquenta e sete passei a exercer a minha atividade na Rua Rodrigo da Fonseca, no mesmo ramo ou
quase, frutas e legumes e de mercearias só o indispensável. O proprietário veio
a ser compadre do meu irmão e "tutor" e era em casa dele que a
família de meu irmão morava há não sei quanto tempo. Nasceu um filho ao casal
que tinha já uma filha com cinco ou seis anos e foi deste que o meu irmão veio
a ser padrinho, talvez por estar a jeito e assim não precisar de ir convidar
outra pessoa. A residência do meu tutor e patrão eram em Campolide, passando a
ser também a minha, a partir do momento em que comecei a trabalhar para ele,
Continuava a
ir a Alvalade sempre que podia, mas sempre que havia amigos que conhecia antes,
como o José Manuel Santos que conhecia da Rua dos Prazeres e era
"aviador" como eu, um ano mais velho e que vim a reencontrar em
Luanda, enfermeiro no Hospital Militar e antes de ser mobilizado era enfermeiro
no Hospital Militar perto da Estrela e outros que se iam juntando durante os
treinos: nunca houve qualquer vinculo com o SCP-Sporting Club de Portugal,
exatamente por falta de assiduidade aos treinos e não dar o rendimento exigido.
Em Outubro
de cinquenta e oito inscrevi-me no Campolide Atlético Club para poder
frequentar a sede e participar num curso de ginástica para todas as idades, uns
iniciados, outros para fazer manutenção e um já adiantado, filho do diretor do
clube e que dava apoio ao orientador do curso, um oficial da Força Aérea e que
mais tarde foi dirigir o antigo INEF-Instituto Nacional de Educação Física.
No inicio de
Dezembro desse ano, começámos a preparar-nos para o Sarau, que iria ter lugar
no Ginásio Clube Português num dos primeiros dias de Janeiro.
O entusiasmo
era grande e todos procuravam fazer o melhor que sabia o conjunto dos
exercícios. O filho do diretor, já com muitos anos de experiência, era o que
fechava as sequências, com um ou dois mortais, para nós bem executados.
No meio
deste entusiasmo e num dos saltos executado com ajuda de trampolim e
desenvolvimento sobre o plinto e saída no tapete, com duas cambalhotas sobre
ele, devo ter executado mal um dos movimentos e bati, com alguma violência, na
saída do plinto, com a região lombo-sagrada e a inevitável queda.
Feita a
assistência possível, pareceu não ser nada de grave e de facto não era, mas não
deixou de provocar um traumatismo doloroso que me levou a ter de recorrer ao
então muito falado "endireita da Esperança".
A
aconselhada radiografia não revelou quaisquer lesões ósseas, mas por algumas
semanas teria de esquecer a ginástica,
foi a "sentença" Para mim lá se foi a presença no sarau previsto para
o inicio de Janeiro.
O meu tutor,
que à época já o era menos, ficou danado com o diagnóstico do Endireita e num
rasgo de coragem e franqueza, ou de pequena vingança, por eu ter recusado, um
ano e tal antes, a proposta de sociedade
que ele e o seu compadre e meu patrão, tinham engendrado para um outro
estabelecimento que tomaria de trespasse, sendo a partir dessa recusa que eu ao
atletismo a ginástica, desabafou:
" era
preferível andares a estudar do que a dar cabo do canastro lá na
ginástica!"
Acho que
tens razão, respondi! E saí porta fora , comprei o Diário de Noticias e indo
direito à publicidade, procurei a coluna das explicações.
A primeira
hipótese, na Joaquim António de Aguiar, ali perto do local de trabalho, era o
que dava jeito, mas foi logo posta de lado no momento da entrevista com o
professor; era demasiado brusco para o meu feitio, conclusão tirada da forma
como ele falou para um miúdo que a ele se dirigiu para tirar qualquer dúvida.
Despedi-me e disse-lhe que daria a resposta depois. Não dei.
A outra
hipótese, bem mais distante, propunha mais ou menos isto: "preparam-se
alunos para exame do ciclo preparatório e na área das ciências até à
faculdade", Ficava junto à Praça do Chile. Para lá me dirigi, subi ao
quarto andar no elevador.
Era o dia
vinte e dois de Dezembro de cinquenta e oito. Atendeu-me o doutor Diniz.
Acertámos as condições, nomeadamente preço e horários; estava dentro do meu
tempo disponível e capacidade financeira; acabada a entrevista, propôs-me:
"se quiser ir conhecer os colegas de turma e assistir a uma aula de
geometria, pode aproveitar" Assim, sem mais adornos, como eu gosto, lá fui
conhecer os colegas: três senhoras, com idades entre os vinte e os trinta anos
e os homens, dois deles dentro do escalão das senhoras e um deles perto dos
quarenta.
A mais velha
das três era minha conhecida, queria fazer o ciclo preparatório para poder
melhorar na carreira que tinha escolhido e que só agora tinham sido dadas
condições, era já auxiliar de enfermagem, mas não passava daquela categoria com
apenas a quarta classe; as outras duas eram empregadas de escritório e queriam
mudar, mas só com o ciclo preparatório feito. Dos homens, o mais velho era para
poder mudar de escalão, o mais novo não trabalhava, mas gostava de ser toureiro
o do meio apenas queria saber mais, trabalhava mas nada tinha a ver com a
melhoria profissional.
A colega
mais velha e minha conhecida, vim a saber por ela a seguir ao Natal, morava em
Campolide e no mesmo prédio que eu, no andar de cima, o segundo.
Todos eles
tinham aulas desde Outubro e isso fiz notar ao professor, se não iria
traumatizante para mim e perturbador para eles, mas ele me tranquilizou,
dizendo que se estava sempre a rever matéria dada antes e ele se encarregaria
de me ajudar a integrar.
As aulas
foram interrompidas durante ou dois dias de Natal e no dia vinte e seis já tive
a aula completa.
O mais velho
desistiu cerca de duas semanas depois, ou melhor, em Janeiro não voltou.
Num desses
primeiros dias, no elevador, a minha conhecida e vizinha perguntou se não
eramos vizinhos? Respondi que morava na General Taborda, no primeiro andar do
número dez, respondendo ela que morava no andar de cima, com o marido e a mãe.
A mãe conheço bem, mas a vós e marido não me lembro mesmo, devendo ser devido
aos horários; saio de madrugada, almoçar a correr e as noites tinha-as sempre
ocupadas, ora com o atletismo, ora com a ginástica, mas agora uma das
modalidades vai ter de ser sacrificada, uma vez que as aulas eram até às onze
da noite e três por semana. Vai ter que ser a ginástica, uma vez que estou numa
pausa de recuperação.
Esclarecidos
quanto a residência e família, nos dias seguintes começámos a fazer o trajeto
no mesmo elétrico até Campolide e depois a pé até casa. Era, sobretudo, das
aulas que falávamos e foi assim que fiquei a saber que ela e quase todos os
outros colegas já tinham aulas desde Outubro e um ou dois desde Setembro;
falou-me das dificuldades que alguns sentiam e sobre nós não havia grandes
aberturas, talvez por termos diferentes profissões e certamente também por não
ser suficientemente curioso-
Alguns dias
separávamo-nos em Campolide, ela seguia para casa e eu ia até ao Clube para ver
como decorriam as coisas por lá e cavaquear com alguns amigos que sempre
paravam por ali.
Os tempos de
proximidade chegaram de várias formas, mas sobretudo por passarmos a conhecer
melhor. Entrámos mesmo em confidências, ela querendo saber se eu tinha ou não
namorada e dela fiquei a saber que era casada há sete anos e o marido era
dezoito anos mais velho! Perante o meu espanto acrescentou que a Mãe, viúva,
com duas filhas e apenas a pensão do falecido Pai, não tinha grande margem de
manobra financeira, certamente terá sido por isso que procurou que as filhas
casassem cedo e sem grande preocupação,
como foi o seu caso, de estar claramente ausente na decisão.
Tinha ela
vinte e sete anos e eu dezanove quando nos conhecemos. O que ela apreciava em e
eu nela só mais tarde viemos a analisá-lo, não com a clara intenção de análise.
Era
elegantíssima, vestia-se com gosto para a
época e tinha um sorriso de rara beleza, trincando a ponta da língua ao mesmo
tempo que o som surgia, dando-lhe um ar gaiato e trocista que seduzia e era
difícil esquecer aquele conjunto de rosto tão invulgarmente desenhado.
Algo estava
a passar-se e que ia além da simples amizade entre colegas ou vizinhos, ou
mesmo ambas as realidades. Com a chegada da Primavera e as noites mais tépidas
o percurso a pé, com calçado de salto alto, que sempre fora cansativo, foi
melhorado com a entrada das sabrinas, muito na moda então; levava as sabrinas
na bolsa e quando acabavam as aulas descalçava os sapatos e calçava as leves e
flexíveis luvas para os pés, ao mesmo tempo que dizia: caminhar sim, mas não
estragar o prazer com os pés a doer! Excelente! Não mais quisemos outra
modalidade, só alterada quando, de todo, o tempo o não o permitia.
Perto do fim
de Abril ou inicio de Maio, as três colegas notaram que estavam a ficar
atrasadas no Português e Francês e combinaram arranjar quem lhes desse uma
ajuda. Encontraram perto da Estefânia, a cinquenta metros do Jardim de Cesário
Verde.
A ginástica,
devido à pancada, estava em suspenso e o curso também, por o professor Nelson
Correia Mendes não ter sido reconduzido, por que razão não sei. Assim fiquei só
com as três aulas por semana; as outras três noites passei a ir estudar num
café do Largo de Dona Estefânia, esperava que a colega terminasse a aula,
mudava de calçado e lá íamos fazer o nosso passeio nocturno até Campolide,
Foram tempos
de muita beleza que chegaram com a Primavera e que enfeitaram as nossas noites.
Não tardou
que o “passeio” fosse feito de mão dada, sem outra promessa ou envolvimento
para além da nossa saudável amizade e juventude.
Até dava
para inventar amuos para de seguida os esclarecer e ver aumentar a nossa espontânea
alegria.
Alguns
domingos de tarde, era o meu descanso semanal e nem sempre o era, ou porque o
patrão precisava de tratar de algum assunto, ou até para ir passear com a
família e lá ficava eu mais uma semana sem tempo de descanso; quando tinha
mesmo a tarde disponível a colega, alegando e era verdade, que os exames se
aproximavam e que eu lhe podia dar uma ajuda na matemática, passámos a ir para
casa duma prima sua, que morava na Travessa da Fábrica dos Pentes, junto do
Jardim das Amoreiras, sozinha.
Reparei que
a senhora, relativamente nova, não mais de quarenta anos, mal nós chegávamos,
dava sempre uma qualquer explicação para sair e só umas duas ou mais horas
depois é que regressava.
Houve, da
parte da colega, várias tentativas para alterar a harmonia daquela relação de
amizade tão invulgarmente bela, mas a cada avanço eu fingia que não percebia e
tudo voltava ao normal, ou assim me parecia.
Não era
assim, ela não tinha perdido a intenção de deixar a situação ganhar raízes sem
que o seu objectivo fosse alcançado e eu estava a ficar sem vontade de resistir
a um assédio que chegava a ser doloroso.
Uma noite,
no regresso da aula dela de português, disse que não iria para casa quando
chegasse a Campolide, por precisar de ir ao Clube tratar das minhas quotas;
ficou amuada, não mais falou e nem respondeu ao meu desejo de boa noite. Ela
iniciou o percurso pela Rua de Campolide, para depois virar para a esquerda
pela General Taborda e eu espicaçado com o amuo dela, em vez de ir para o clube
fui pela Rua de Campolide e não segui atrás, acelerando o passo virei pela rua
Victor Bastos e logo a seguir pela nossa rua, a Leandro Braga e entrei para o
prédio onde fiquei a aguardar a sua chegada, sem acender a luz e desejar que
ninguém saísse do prédio àquela hora; mal empurrou a porta, para ela não se
assustar, eu passei para a zona iluminada pela luz da rua; deixando escorregar
para o chão a carteira e os compêndios, caímos nos braços um do outro e um
beijo sôfrego, quase violento e escaldante, o primeiro e sofrido beijo.
Deixei os livros
em cima da caixa de correio e saí, alegre como um adolescente que desse o
primeiro beijo, indo vaguear por Lisboa, não queria que o sono apagasse aquele
sabor e só voltei horas depois, cansado mas radiante.
Eram quase
quatro da manhã. A colega estava à janela e esboçou um leve aceno de despedida.
III
Tínhamos
que, como externos, requerer exame e um professor diplomado que a exame nos
propusesse. Cada professor só podia propor um determinado número de alunos,
sendo o irmão do doutor Dinis, explicador na área das letras, quem nos propôs,
enquanto que o nosso professor, Dinis também, tinha já proposto as duas outras
colegas para um liceu de Lisboa, penso que tenha sido o Camões e dois dos
colegas, o terceiro tinha desistido, a favor da festa brava, os touros de seus
sonhos!
Alguém terá
dito, à colega e vizinha, que no liceu de Oeiras eram menos exigentes do que a
maioria dos de Lisboa. Só que esta hipótese criava um outro problema, o da
residência: para ali podermos fazer exame teríamos de morar na área do
concelho; a colega se encarregou de tratar, através de uma família sua parente
que lá morava, arranjar um atestado de residência para cada um e com este
pequeno truque de ilegalidade lá nos apresentámos a exame, iniciando-se no dia
vinte e dois de Junho pelas provas escritas de português e francês, por esta
ordem.
No intervalo
encontrámo-nos no átrio do liceu, ambos tendo confirmado qua a prova nos tinha
corrido bem.
Quando a
prova de francês terminou e eu cheguei ao átrio, estranhei que ela já ali
estivesse à minha espera. Nem tempo tive para perguntar nada, ela se encarregou
de me por ao corrente: tinha desistido a meio da prova, na parte da tradução,
tendo bloqueado ao não se lembrar do correspondente em português para atermo
"àne". Enervou-se e desistiu. Fiquei sem saber o que dizer, porque de
vez em quando era isso que chamávamos uns aos outros, sempre na brincadeira,
claro.
No comboio
para Lisboa conversámos e consegui convencê-la a requerer exame para a segunda
chamada, por não ser razoável perder um ano de trabalho e despesas! De igual
modo prometeu que a partir de Setembro retomaríamos o trabalho e os nossos
encontros.
No Cais do
Sodré apanhámos o autocarro para Campolide e diretos para sua casa, pois tinha
que mudar de roupa devido ao muito calor que estava e o ter-se enervado com a
desistência.
A blusa de
seda num tom de rosa-violeta muito suave, era abotoada nas costas e era uma
fiada de botões, forrados do mesmo tecido e muito próximos uns dos outros,
partindo da nuca até um pouco abaixo da cintura, sem botões seriam cerca de dez
ou quinze centímetros. A seu pedido foram por mim desabotoados, com toda a
calma possível, mas ambos estávamos psicologicamente abatidos e embora
estivesse na mente de ambos bem mais, na verdade é que não fomos além de um
abraço de muita amizade e ternura que a ambos soube bem e isso mesmo declarámos
durante o almoço ligeiro que ingerimos sem sequer o apreciarmos.
Foi muito
mau tudo o que se passou a partir das onze da manhã daquele dia e penso que nos
terá afetado a ambos.
Nos dias
seguintes continuaram para mim as restantes provas, ou seja, a matemática, as
ciências e o desenho. Tudo sem problemas a não ser a parte do desenho que era
designada por composição decorativa, que muito mal decorada ficou, mas já nada
havia a fazer!
Como a
colega tinha pedido férias para o período dos exames, encontrávamo-nos sempre depois de eu chegar de Oeiras, indo
mesmo lanchar na Baixa.
Num dos
dias, ou vinte e nove ou trinta sairiam as pautas com os resultados dos exames
da prova escrita. Como eu tinha que me apresentar no Regimento de Caçadores
Cinco, em Campolide, para a inspeção militar, foi ela a Oeiras ver os
resultados e, se eu tivesse passado, ver quando eram as orais.
No regresso,
ao almoço, festejámos a passagem à oral com a média de treze e duas décimas,
tendo sido o desenho e a composição decorativa, sobretudo, já que no geométrico
tive dezoito, quem me obrigou a ir fazer as provas orais. Nesse ano a dispensa
era a partir dos treze e meio.
Há males que
vêm por bem, como adiante veremos, com as orais.
- E na
inspeção? perguntou.
Estou
aprovado para todo o serviço militar. Como ela continuava de férias,
continuávamos a encontrar-nos ao fim do dia e à noite aproveitava para fazer
algumas revisões com o doutor Dinis, nomeadamente o francês que era o que
poderia trazer algumas dificuldades na oral.
E assim foi.
Na primeira prova, exatamente o francês, coube-me uma professora de francês,
bastante jovem, falando de forma tal que as fragilidades do doutor Dinis sabia
ter, pois era mais virado para as ciências, em que se formou! Mas o que aprendi
chegou para fazer a prova sem constrangimentos. Foi exatamente nas ciências,
onde cheguei à oral com média de dezasseis e meio, um pouco menos do que na
matemática, mas que poderia ter deitado tudo a perder.
O examinador
devia ser professor de ciências, mas de uma ou duas disciplinas bem definidas,
pelo que vim concluindo durante os exames a que fui assistindo nos dias
anteriores. Ele fazia as perguntas a partir de um bloco, já amarelecido, que
devia ter a pergunta e a resposta ao lado, ficando mesmo convencido que o bloco
tinha um picotado a separar cada pergunta, ou grupo de perguntas-respostas.
Quando à
terceira ou quarta pergunta me coloca aquela que no dia anterior tinha posto a
uma rapariga, que só naquele dia tinha visto, e a pergunta era: " diga-me
o que é uma savana?"; a reação foi tal que, ao encolher as bruscamente
pernas por debaixo da carteira, o tampo se ia desprendendo.
Respondi com
a calma que consegui, mal disfarçada devido ao movimento da carteira: a
pergunta feita é sobre matéria que não faz parte do programa! O professor,
espantado, talvez por estarmos numa sala quase cheia de alunos e assistentes,
fez a deriva da pergunta: " se eu me não teria esquecido de estudar esta
parte da matéria?!" Respondi, agora disposto a tudo, que não fazia parte
do programa-
Mudou de
tema, já com a dúvida a ganhar forma, e o resto do exame foi desde os
movimentos da Terra, as fases da Lua e seus efeitos e algo mais que não
recordo, decorrendo com normalidade.
Mal acabou a
prova saí e fui tentar encontrar alguém que tivesse o compêndio, uma vez que eu
o não tinha levado; nem o de ciências nem qualquer outro.
Uma família
de Oeiras que tinha a filha em exames também, propôs-se ir a casa buscar o
compêndio. E quando o doutor João Santos, penso que era este o apelido, deixava
o liceu para ir almoçar, é por mim interrompido, de compêndio na mão e a tentar
demonstrar-lhe que a razão estava do meu lado. O senhor, simpaticamente, coloca
a sua mão esquerda no meu ombro direito e diz: " que já tinha confirmado a
minha afirmação durante a prova e que fora decidido retirar aquela e outras
perguntas que não eram do programa atual". Esclareceu, sem que eu
perguntasse, que era professor dos ciclos secundário e complementar e que só
estava naquela função por solicitação do liceu e para substituir um colega que
estava de baixa médica.
Fiz-lhe
sentir que, pelo menos na tarde do dia anterior e na manhã daquele dia já
outros alunos tinham sido questionados sobre aquela matéria e, talvez por
nervosismo, responderam que não sabiam; esclareci ainda o doutor João de que a
mim não me prejudicava muito, não estudava por me fazer falta o diploma para
qualquer promoção ou coisa parecida, mas uma das pessoas examinadas ontem de
tarde, segundo soube, se não passar vai ter de repetir e a promoção no serviço
onde trabalha, vai-se definitivamente por água abaixo o que lhe trazia grande
perturbação.
O doutor
João apertou-me a mão, deu duas palmadas no ombro e garantiu-me que iria rever
toda a situação e que nenhum dos alunos antes examinados seria prejudicado por
causa da matéria agora questionada.
E deve tê-lo
feito. Passaram os três do dia anterior e os dois da manhã em que eu levantei o
problema.
Uma ou duas
semanas depois cruzei-me com o doutor João, vinha eu do mercado das frutas e
ele ia apanhar o comboio para Oeiras no Cais do Sodré.
Seriam umas
sete e trinta da manhã. Ele morava em Lisboa, na Estrela.
Fez-me uma
grande festa, elogiou a minha determinação no exame, colocou-se à disposição
para o que pudesse e eu precisasse e fomos tomar café. Daí em diante, mais que
um dia por semana, tomámos café juntos .
O doutor
João só existiu a partir do dia do exame e o amigo cerca de uma semana depois.
Desejei-lhe
um bom percurso profissional e ele desejou-me felicidades e a mensagem de que
continuasse a bater-me, sempre que as achasse justas, pelas causas que a vida
não deixaria de me colocar
IV
O doutor
Dinis fez umas curtas férias de Verão, com a esposa grávida e em Setembro, logo
no inicio do mês, retomámos o trabalho.
Tinha-me
dado, antes de ir para férias, uma lista do que iria para o segundo ciclo (
terceiro, quarto e quinto anos ) dos liceus; alguém me sugeriu que a livraria da
Trindade costumava ter livros escolares em segunda mão e sempre seriam mais
baratos do que se fossem novos. Assim fiz. Alguns dos compêndios já não eram em
segunda mão, mas em terceira e até em quarta, pois tinham vários nomes escritos
na contra capa. Comprei todos os compêndios a alguns cadernos de exercícios, só
não tendo os compêndios de desenho e de matemática.
Fiquei um
tanto assustado com a pilha de livros, mas não havia recuo possível, tanto mais
que o doutor Dinis e a colega do ano anterior me deram um empurrão, dizendo que
eu era capaz de ultrapassar alguma dificuldade, se a houvesse.
Eram dois
amigos que seria difícil encontrar noutras circunstâncias e que pareciam mais
certos das minhas capacidades do que eu, que não era coisa em que pensasse.
E lá
continuámos, com entusiasmo. A partir de Outubro teria já mais dois colegas,
guardas da GNR-Guarda Nacional Republicana, que precisavam de aprender as bases
da eletricidade para poderem ser promovidos. Passaram tormentos! A eletricidade
que eles precisavam aprender envolvia equações do segundo grau e eles não
sabiam mais do que a aritmética da quarta classe. Dois meses depois,
desistiram.
A minha
aprendizagem decorria a um ritmo razoável, sendo certo que aproveitava todos os
tempos vagos, mesmo durante a hora de serviço, sobretudo de tarde, em que havia
menos que fazer; tirar apontamentos, fazer exercícios, corrigir falhas, eram a
ocupação desses períodos do dia e à noite, com o doutor Dinis. era para avançar
com novas matérias e tirar dúvidas.
No desenho,
além do doutor Dinis, tive a ajuda de um oficial da Marinha, penso que
contra-almirante, na situação de reserva, que morava na Rua Castilho, onde veio
a ser construída a sede da Caixa Central de Crédito Agrícola e era casada com a
dona Fernanda, parente em grau afastado de Fontes Pereira de Melo, fidalgo da
Casa Real, deputado e ministro, ligado às Obras Públicas, tendo o seu nome em
diversas infraestruturas um pouco por todos os pontos do País. O oficial da
Marinha, na reserva, era um dos administradores da Diamang, tinha um neto que, como
eu, andava na mesma faina dos livros, mas no horário normal. Esta família era
cliente do estabelecimento, assim como a que morava no primeiro andar, a Castro Caldas, talvez a melhor cliente, por ter uma familia
numerosa, com cozinheira própria e empregada de quartos, assim era designada.
Em Fevereiro
saíram os editais da incorporação militar. Como queria não interromper as
aulas, alguém me sugeriu que devia fazer um pedido para ficar num dos quartéis
de Lisboa.
Por coincidência,
em casa do meu irmão e senhor Virgílio, morava também, num quarto com direito a
serventia de cozinha, uma senhora já idosa, viúva de um militar que falecera
devido a ferimentos na I Guerra Mundial, vivendo duma pensão de sobrevivência
por morte do marido; quando ouviu falar do meu caso, prontificou-se a
indicar-me um senhor brigadeiro a quem ela podia colocar o problema e saber se
havia alguma possibilidade.
A senhora
tratou de tudo e eu só tive que ir à residência do senhor brigadeiro buscar um
cartão de visita dirigido a um outro oficial, de quem dependia a decisão. E
assim foi. O Distrito de Recrutamento era perto de Santa Apolónia e o cartão
terá sido a alavanca ou então não havia qualquer problema em conceder a
satisfação do meu pedido. Eu próprio escolhi o Regimento de Artilharia Ligeira
Um, pertinho do local de trabalho, podendo mesmo fazer algumas horas quando o
tempo o permitisse.
E no dia
quatro de Abril de mil novecentos e sessenta assentei praça no quartel
escolhido. Tive de corrigir as habilitações por conselho de um furriel que
estava a registar as entradas, porque, dizia ele e com razão, para poder
requerer tempo para exames ao Ministério, teria que indicar as habilitações
anteriores.
O pedido tão
facilmente satisfeito a escolher o quartel, teve um efeito de pouca duração;
logo num dos primeiros dias de Maio fui mandado para Vendas Novas onde iria
especializar-me em Meteorologia.
Recordo de,
a certa altura, ter apostado com o doutor Dinis, devido a um exercício de
ótica, que na aula anterior tínhamos estado a resolver, tendo ela concluído que
só era resolúvel pelo método algébrico de equação, penso que do segundo ou
terceiro grau, a três incógnitas e que eu em casa tinha resolvido pelo
geométrico, baseado na teoria da igualdade de triângulos. A aposta era uma
garrafa de espumoso bruto. Provada a minha solução, ficou assente que a
beberíamos para comemorar o nascimento do filho.
Deste
período ficaram como marcos inesquecíveis: o doutor Dinis, a colega do andar de
cima e o doutor João, professor em Oeiras.
V
Quando, em
Maio cheguei a Vendas Novas, já com registo de alguns incidentes no RAL 1 -
Regimento de Artilharia Ligeira Um, sobretudo do primeiro dia de instrução,
naturalmente iniciando pelos deveres e direitos dentro da instituição militar.
O alferes, para marcar bem a questão dos deveres, sentenciou:
" A
partir deste momento, terão que conhecer e saudar, todos os oficiais e
sargentos desta unidade, mesmo trajando à civil!"
Como é possível,
meu alferes, se não vi mais que dois ou três e fardados, certamente bem
diferentes quando se apresentassem à civil?
"É o
que diz o RDM- Regulamento de Disciplina Militar e as ordens cumprem-se e não
se discutem!"
E se não
estivermos de acordo com a ordem temos que a cumprir? perguntei. E se me mandar
subir ao telhado do edificio e me mandar atirar dele abaixo ou meter-me à
frente do comboio até ser feito em pedaços?
"Se
essa ordem for dada, atira-se!"
Não sei, meu
alferes, tenho mesmo muitas dúvidas!
Fiquei com a
ideia, naquele primeiro dia, de que aquela gente não era para levar muito a
sério! E com este suporte defensivo lá fui aprendendo as diversas formas de
preparação para a defesa da Pátria!
No Ral, em
Lisboa, dizia-se que em Vendas Novas a disciplina era implacável e que ao mais
pequeno deslise estávamos tramados!
Não foi
difícil a adaptação, ao contrário do que se dizia. A Bateria de Referenciação
foi, ao que me pareceu, mas sem confirmação oficial, um projeto pioneiro,
parecendo-se com uma escola de formação dos tempos correntes da União Europeia:
formava artilheiros, meteorologistas, ferreiros, carpinteiros, cozinheiros, e
outras especializações.
Os
comandante e sub comandante eram, respetivamente, os tenentes Loureiro dos
Santos e Leiria Pires; enquanto este não mais ouvi falar dele, com aquele ainda
me encontrei em Luanda, onde apareceu a comandar uma Bateria de Artilharia Anti
Aérea, que ficou aquartelada no GACL, onde eu estava desde Julho de sessenta e
um e depois de eu ter terminado foi ministro do primeiro governo de iniciativa
presidencial, mais tarde Chefe do Estado Maior do Exercito e, já na reserva,
comentador de televisão para as questões estratégicas das guerras e com vários
livros publicados sobre estratégia politico militar.
Os instrutores
das várias especialidades que a na Bateria de Referenciação formava , eram
alferes da Escola do Exército que iriam fazer o tirocínio para a futura
promoção a tenente. Do único que falarei, naturalmente, será do instrutor de
meteorologia, o alferes Pires Nunes, era um amigo que muito estimo, um militar
de pequenos voos, um humanista, com quem me cruzei em Luanda por duas vezes, já
como capitão e depois em Leiria, durante uma distribuição de propaganda
politica das primeiras eleições, para a Assembleia Legislativa, já como major!
A partir daí nunca mais soube dele.
Era um
oficial de trato afável, da idade de todos os instruendos, e tinha o tique de
trincar o interior do canto da boca, que o devia perturbar quando nele
pensasse, mas não o conseguia evitar. Chegava a ser divertido reparar no
esforço que ele fazia para dominar o tique!
Além de
instrutor, naquele caso de meteorologia, era também um desportista,
nomeadamente, segundo ele dizia, do lançamento do peso, sendo mesmo o melhor do
seu curso na Escola do Exército. E como eu tinha experimentado, no torneio
Primeiro Passo, esta modalidade, sem êxito, cheguei a acompanhá-lo nos treinos
na traseira das casernas e no espaço entre o edifício onde eram dadas as aulas,
refeitório e camaratas do curso de oficiais milicianos, mais usado na linguagem
corrente o COM, iniciais do curso, e registado no meu melhor lançamento, cerca
de um metro a mais.
Foi este
oficial que me ajudou na última parte da álgebra, nas inequações, matéria que
não tinha sido dada pelo doutor Dinis.
O pedido de
autorização, feito ao Comando da Escola para requerer exames em Junho, por
qualquer razão que não ficou nunca muito clara, não chegou a tempo a
autorização e lá se foi a possibilidade de nesse ano fazer nesse ano de
sessenta os as provas das ciências do quito ano, para as quais me sentia mais
que preparado.
A
Meteorologia ia de vento em popa, terminando a primeira fase com dezanove e
seis décimas, de ponto! Meteu galhardete, ser o porta bandeira nas cerimónias
do juramento de bandeira; nas provas de preparação física tive direito, mais
não sei quantos, à medalha de primeira classe.
A bateria de
Referenciação tinha as suas instalações nos edifícios da Escola, separados do
conjunto mais antigo por uma rua que ia dar acesso à estação de caminhos de
ferro, onde se juntaram os cursos de oficiais milicianos (COM) e de Sargentos
milicianos(CSM).
Terminada a
recruta passámos, os militares da Bateria de Referenciação, para as instalações
antigas para frequentar o que era designado por Escola de Quadros (EQ).
O instrutor
da Meteorologia passou a ser um tenente, de apelido Neves, oficial de trato
difícil, injusto e vingativo. Como professor era uma lástima! Nunca percebi bem
porquê "tomou-me de ponta" e eu correspondi de igual modo. Nunca
aceitou a forma como eu era tratado na BR, quer pelo alferes Pires Nunes, quer
pelos dois tenentes do comando, Loureiro dos Santos, comandante e Leiria Pires,
subcomandante e talvez se tenha juntado o facto de ele saber que só estaria
naquela fase do curso até vir a juntar-me aos milicianos do Curso de Sargentos,
no segundo ciclo.
Tudo fez por
me provocar uma reação em que pudesse pegar-me e eu, com os cuidados
suficientes, nada fiz para lhe facilitar a vida desde a primeira semana. E,
logo no primeiro teste, sendo a matéria a mesma dada na primeira fase, baixei a
nota para os sete e meio, no segundo para sete e no terceiro apenas seis.
Com alguma
frequência me cruzava com o tenente Loureiro dos Santos e mais não fazíamos do
que regulamentar saudação militar; no inicio da semana seguinte à da minha nota
de seis, os testes eram à sexta feira de manhã, cruzei-me no corredor de acesso
à parte antiga e após as continências ele, já parado, interpelou-me:
- O que se
está a passar, Monteiro? Perguntou.
Como não
percebi o alcance da pergunta, respondi: desculpe, meu tenente, mas não estou a
entender!
- O que se
passa entre ti e o tenente Neves? Esclareceu.
Ah, desculpe
meu tenente, mas não estava a entender, não pensei que fosse esse o assunto! Em
meu entender nada se passa declaradamente!
- E não
declaradamente ? insistiu.
Bem, aí há
um conflito latente que não será fácil saná-lo!
- Não vou
entrar em pormenores, mas desde já te aviso que se não alterares a tua atitude
é mais que certo que o tenente Neves te vai levantar um processo disciplinar!
E eu vou
correr esse risco, meu tenente, e logo se verá o que no final sucede.
Nessa semana
chegou a ordem da minha passagem para o Curso de Sargentos Milicianos, faltando
apenas vir na OS -Ordem de Serviço.
No teste
dessa semana, sabendo já que na segunda feira ia transitar para o CSM, a nota
foi de dezoito, o que enfureceu ainda mais o tenente Neves.
"Não
mais me cruzei com este oficial e só muito tempo depois, já em Luanda, um dos
sargentos que acabara de chegar, com destino a uma das baterias aquarteladas
algures na zona de intervenção, estando em transito, portanto, se lembrou das
peripécias de Vendas Novas, me perguntou se sabia alguma coisa sobre o tenente
Neves? Não, não ouvi sequer falar em tal criatura. Foi encontrado morto no seu
gabinete, na Escola Prática, com um tiro na cabeça, não era ainda conhecido se
terá sido suicídio ou homicídio. A noticia chocou-me profundamente, mas não
admirado, conhecendo o oficial como conheci e sua injusta conduta em relação
aos subordinados".
Retomando
Vendas Novas.
Na segunda
feira seguinte voltei ao inicial espaço da EPA e fui integrado na segunda
bateria, estando a preparar-se os exercícios finais - os segundos, estes só
para os Cursos - COM e CSM.
Quando as
especialidades foram definidas e onde cada uma delas ia ser tirada, a mim
coube-me a de Munições de Artilharia e seria tirada em Sacavém, no Regimento de
Artilharia Pesada número Um.
Mas, para
que não perca alguns dos momentos bem mais marcantes do que a rotina das
paradas, das aulas, vou tratar um ou dois assuntos em separado.
VI
Primeiro -
Ainda na Bateria de Referenciação, já quase no final de recruta, acabámos a
aula de preparação fisica e, logo de seguida havia um exercicio em parada, como
sempre precedido de formatura.
Por qualquer
troca de movimentos, ao mudar de farda, o tempo era tangencial entre um e outro
dos exercícios, atrasei-me e mais dois camaradas, cerca de três segundos.
O tenente
Loureiro dos Santos intimou os três faltosos a irem ao seu gabinete, no final
da parada, para falar connosco, individualmente.
Depois de
acentuar que os horários eram para ser cumpridos e de ter feito uma resenha do
que poderia suceder em três segundos e do que podia ser evitado se não chegasse
atrasado, tudo isto enquadrado numa situação de guerra, perguntou-me o que eu
achava que devia fazer? Perante a explicação dada e o meu convencimento, acho
que devo ser punido. Mandou -me retirar e não soube o que terá dito aos outros
dois faltosos, mas na palestra da sexta-feira seguinte, o comandante voltou à
questão dos atrasos às formaturas ou a outra qualquer situação, para frisar que
um dos três faltosos no dia anterior, não citando nomes, um dos soldados achou
que devia ser punido.
Não fui
punido, não foi nenhum dos três.
Segundo - penso
que era às quintas feiras de manhã, semana sim, semana não, havia uma aula de
canto coral, conduzida por um segundo sargento de cavalaria, que ali se
deslocava para o efeito.
A formatura
era em "U" e o local era entre a caserna da segunda bateria e a da
Bateria de Referenciação, que ainda era a minha, sendo os dois braços do
"U" formados pelas duas escolas do CSM e a base pela Referenciação.
O sargento
instrutor revelou, logo no primeiro dia, um tique que se prestava às mil
maravilhas para ser plagiado por um ou outro dos diversos brincalhões que entre
os cerca de duzentos e cinquenta jovens havia..
Depois de
referir o que iria ser cantado acertava o tom com aquela pequena gaita de
beiços que é usada apenas para exemplificar o som de cada uma das notas
musicais, cuja designação não recordo. De seguida fazia a sua demonstração oral
e esta sequência era interrompida com um pst, pst, pst, mais para pedir atenção
ao coro e de seguida ensaiar, para logo parar dizendo que havia algumas vozes
fora de tom.
Iriamos na
terceira ou quarta aula. O ritual era o mesmo, o espraiar do tema, a gaitinha,
a sua demonstração oral, o pst, pst, pst e mais um pst que soou desgarrado da
boca de um dos alunos que só saberiam quem foi os que estavam juntos. O maestro
não gostou da irreverência, pois só disso se podia tratar e nunca perturbar o
trabalho do maestro.
Numa atitude
de excessiva e até descabida autoridade, deu ordem para a posição de sentido,
posição rígida e que colidia com o Regulamento ou o pervertia, usando uma
linguagem de caserna "em sentido não mexe nem fala" e se não se fala
também se "não canta". Esta
deve ter sido a interpretação que o coletivo fez mentalmente, mas algo mais
profundo varreu a formatura em sentido.
O maestro
repetiu todos os gestos do costume, a gaita, os pst. pst, os prontos? e agora todos: Só que, do todos, só
se ouviram as primeiras notas articuladas por duas ou três bocas, que de
imediato silenciaram. O sargento, desconheço que conclusão tirou, mas voltou ao
principio, fez uso do pequeno ritual e "agora todos". Nada se ouviu!
Como se a ordem fosse interpretada ao contrário, em vez do agora todos, tivesse
sido dada a ordem do "agora nenhum"! Cerca de quatrocentos homens,
alunos de cursos diferenciados interpretam o Regulamento duma forma mais
correta do que um sargento do Quadro Permanente.
O caos
instalou-se e o nervosismo do sargento cantador era notório frente a uma
formatura em sentido e em completo silêncio.
Chamou o
faxina a quem deu ordem para procurar o oficial de dia e pedir-lhe para ir aos
Cursos.
Chegou um
tenente, de braçal vermelho, conferenciaram
oficial e maestro e de seguida deu a ordem para a formatura passar à
posição de descansar.
O sargento
lá retomou a aula e quando mandou "agora todos", com uma ou duas fífias,
até nem correu mal. Em todas as vezes anteriores a última atuação foi sempre o
hino Nacional e tinha chegado o momento de o maestro regressar, anunciou "vamos agora cantar o Hino
Nacional" e quando deu a tal ordem do "agora todos", mais
pareceu uma voz de comando a ordenar a posição de sentido! Ouviu-se um
batimento de calcanhares quase unânime e perfeito, assim se iniciando a
interpretação do Hino Nacional.
O oficial de
dia ouviu em sentido o hino da Nação e
quando passou à posição de descansar, a formatura procedeu desse modo também.
Oficial e
sargento trocaram algumas palavras e virando-se para formatura mandou
destroçar.
Resultado
deste incidente: não mais houve canto coral!
Ao perdermos
o canto coral, perdeu também o cabo Calapez um dos temas para exercitar o seu
gosto pela pintura e pelo desenho, que todos os dias expunha em seus placards
de papel de cenário. O cartoon para o canto coral era, por regra, uma parada de
militares de boca aberta, de onde saíam as notas musicais de claves de Sol a
subirem para um céu pertinho, talvez para que as notas não se perdessem, o que
seria uma pena por serem tão sentidas. Foi o melhor cartoonista que tive o
prazer de ver em plena criação. E foi pena que aquele motivo desaparecesse!
Era, sem
dúvida, um grupo de grande qualidade e de difícil comando aquele de mil
novecentos e sessenta.
Tinha de
tudo! E estou a imaginar que alguns cérebros videntes militares, já escutavam,
nas lonjuras de África, o toque frenético dos tambores das rebeliões em
movimento em direção a um futuro incerto, mas futuro. E não tardou muito para que se sentissem, mas
estes não ouvidos por estarem longe demais, na India.
A chamada às
fileiras, antes rigorosamente vigiada e selecionada pelos mais diversos truques,
passou a ser feita quase a eito e a esmo. Havia que defender, mesmo que à custa
da vida dos seus mais próximos, os altos interesses agora ameaçados.
Mas o grupo
mais amplo de que fazia parte, todo o de sessenta, veio a ser cindido em grupos
mais pequenos e dispersos pelo País, para as ditas especialidades.
A
meteorologia não fazia parte dessas especializações, por aí ficando o saber
acumulado e que tanto me tinha divertido, sobretudo quando aplicada à
balística! Com os meios disponíveis, que eram nulos, fazer um diagrama para uma
série de tiros, quase dava tempo para negociar a paz! Por isso nos divertia e
se comentava: "uma guerra feita por nós, ou durava uma eternidade ou então
os contendores se cansavam de esperar e desistiam de se guerrear".
O grupo de
que eu fazia parte, era constituído por dez ou doze instruendos e foi mandado
para Sacavém, para o RAP 1- Regimento de Artilharia Pesada Um, onde iria
formar-se em munições de artilharia.
Se não
recordo ao certo qual o número dos elementos do grupo, não esqueci e espero não
esquecer alguns deles:
- O Dias, o
mais exímio caricaturista que conheci e com quem de perto privei e admirei;
- O Araújo,
figura inteira do homem da Ribeira, sempre disposto a gozar com tudo o que não
fosse do Porto;
O Malsa,
míope, usando óculos de lentes altamente graduadas, mas que bem precisava de
outros meios de ajuda para corrigir defeitos bem mais graves, sendo ao mesmo
tempo divertido e tolo;
- O
Contreiras, o inefável Contreiras, definitivamente convalescente, mais mental
do que físico. Este amigo e camarada de armas tinha ou fingia ter, um medo
atávico de tudo o que, na preparação física, lhe cheirasse a saltos ou
exercícios de equilíbrio; nunca saltou o muro, mesmo no ponto mais baixo, a
paliçada nem pensar era bom e no galho,
só de pensar nele ficava com suores gelados, confessava. Até um dia! O
almoço tinha sido cozido à portuguesa ( comia-se bem, nos cursos, em Vendas
Novas!) e a bebida o vinho, este sempre feito a martelo, ou seja, de má
qualidade. O Contreiras deve ter comido bem e bebido muito. Estavas em vias de
não terminar o CSM por causa dos dificuldades com as provas físicas. Deve
ter sido no final do almoço, com a
"coragem" que a bebida transmite, que decidiu ir mesmo saltar o
galho, prova que mais o horrorizava. E assim fez. Vi-o passar, vindo da
caserna, vestido só com botas, cuecas e capacete e dirigir-se para o espaço dos
obstáculos, por detrás das casernas e refeitório. O pessoal ria, naturalmente,
com a figura que o Contreiras fazia devido ao equipamento selecionado. E as
apostas de que agora é que o Contreiras iria transpor todos os obstáculos e
perder os medos. Formaram claque, mas todos estavam convencidos de que faria o
que sempre fez: subiria, a tremer como "vara verde", agarrava-se às
tábuas que formavam o apoio para se chegar à prancha, uma espécie de púlpito
para as predicas ou pragas de última hora, e tirá-lo de lá era com dificuldade.
Desta vez
não! O diabo, em forma de vinho, tinha entrado no Contreiras e os vapores
cresceram mal se levantou da mesa. Subiu as escada de madeira com uma destreza
nunca vista nele e quando chegou à altura da prancha puxou-a toda para trás,
para a posição das provas de primeira classe, ou seja, ficou no ponto mais
distante do obstáculo. Formou o salto, voou pesadamente para o tronco, a mão
esquerda ainda ficou no galho, mas o corpo, pesado como era, passou è direita
do tronco e com o impulso o corpo ensaiou o balanço de sino, a mão não aguentou
e a queda, de cabeça para baixo, foi o resultado.
Um calafrio
percorreu a assistência, pois o Contreiras ficara imóvel e a respirar muito
mal.
Chamada a
ambulância que o levou para a enfermaria, mas logo seguiu em direção a Lisboa,
onde permaneceu em coma mais de dois meses. Quando saiu do coma e tomou
consciência (terá tomado?!) do que se passara, deve ter feito tudo para
convencer os técnicos de que estaria pronto para continuar.
Regressou a
Vendas Novas quase na altura de partirmos para as especialidades e lá tive o
Contreiras como colega de munições, que terminou com aproveitamento, ao mesmo
tempo que escrevia o livro, todas as noites retomado e espero tenha sido já
publicado e com êxito.
Vários
outros eram interessantes, mas fica só o Trafaria, alcunha por dali ter vindo,
cantor lírico, habituado a mimos que a tropa não proporcionava. Quando era ele
o indicado para comandar a parada, que também fazia parte da nossa
aprendizagem, ele queixava-se sempre de que não podia gritar as ordem de
comando por lhe forçar as cordas vocais; o capitão, que não nasceu para as
coisas da guerra, aturava-lhe esta excentricidade, aliás, ele aturava tudo a
todos; mas houve um dia em que a aula foi dada por um tenente e quando o
Trafaria iniciava a sua chorada desculpa, o tenente, que não devia ser fã de
ópera, mandou-o atravessar a parada, que
mais não era que o campo de futebol e do outro lado é que iria dar as ordens de
comando; nunca mais o Trafaria invocou a sua qualidade de tenor! Espero que ele
tenho chegado aos palcos do mundo, depois de ter voltado da guerra.
Dispersos
pelas unidades, uma vez acabadas as especialidades, viemos a encontrar-nos,
alguns meses mais tarde e um de cada vez, em Luanda, de onde quase não saí:
- o Malsa,
vindo do Norte, com aquele seu ar de louco profissional, orgulhoso de ter comprado, por vinte angolares, a virgindade
de várias crianças, uma delas com apenas sete anos! Foi o fim, nunca mais o vi,
mas desejo que tenha voltado e tenha sido tratado;
- o
Contreiras, com o seu habitual ar de perdido, a passar férias em Luanda e sem
condições de acabar o seu livro e o Crime do Padre Amaro, que me pedira
emprestado em Sacavém, já há meses o não via, confessou;
- O Araújo,
que dele voltarei a falar no apontamento dedicado à Operação Esmeralda, no Úcua
o encontrei, em pleno centro da guerra, da qual ele não era parte interessada;
- O Chucha e
o Zé Maria, mobilizados ambos com a Bateria de Artilharia cento e quarenta e
sete, aos quais me juntei, nos primeiros dias de Setembro para irmos fazer a
guerra da Pedra Verde;
- o capitão
Pires Nunes, meu primeiro professor de Meteorologia, um tanto confuso com a
vida noturna de Luanda e ainda com o tique de Vendas Novas;
- O capitão
Loureiro dos Santos, chegou a Luanda à frente da primeira Bateria de Artilharia
Antiaérea, importada da Metrópole e que ficou aquartelada, mais a sua ferramenta
de guerra, um obus de sete e meio, que terá feito a guerra dos Alpes, a II
Grande Guerra! Seria uma das táticas militares a antecipação, assim se
justificando a chegada da Antiaérea, quando os "terroristas" já
tinham inventado o canhangulo; a catana, que terá sido a primeira arma usada na
guerra deles, estava há muito inventada e noutros fins usada! O que não
constava era que os "turras",
diminutivo de terroristas, tivessem já
aviões.
Mas voltemos
a Vendas: acabadas as especialidades, perto do fim de Janeiro, agrupados não
sei por que método e com guia de marcha para diversos pontos do País onde
houvesse uma unidade de artilharia, já como cabos milicianos.
O grupo a
que pertencia, de cerca de sessenta recém formados, foi mandado para Leiria,
com alegria para alguns, supostamente bem informados, de que desse quartel
ninguém era mobilizado, por o mesmo
estar integrado num dos organismos da Nato, o SHAPE- Supreme
Headquarters Allied Powers Europe. Ainda
pensei que seria para proteger o ou os filhos de alguém, mas este raciocínio
não tinha consistência ou a perdia, mal eu recuasse até me lembrar de quem eram
filhos alguns dos alunos dos Cursos.
Nos
primeiros dias de Janeiro já constava, à boca pequena, que havia problemas em
Angola, com sublevações e greves nas explorações de algodão, mas que foram logo
reprimidas.
A vinte e
dois de Janeiro, Henrique Galvão e o seu grupo, tomaram de assalto o paquete
Santa Maria. Mal chegámos ao RAL a unidade entrou em prevenção, com saídas
limitadas e guarda reforçada.
As
mobilizações devem ter-se iniciado em Março, logo após as escaramuças junto ao
cemitério de Luanda e no dia quatro de Fevereiro, com o assalto à Casa de
Reclusão de Luanda, onde estavam presos os políticos anti . regime.
As
mobilizações devem ter começado pela Infantaria e Cavalaria, mas rapidamente a
artilharia foi chamada, tal como as outras armas, uma vez que a filosofia do
regime era "Depressa e em Força".
As ordens de
Serviço quase todos os dias traziam novas mobilizações, de poucos militares de
cada vez. Até que a parada fosse formada para ser lida a tal Ordem de Serviço
só se viam grupinhos a cochichar, mas esta prática que inicialmente deve ter
sido recomendada como "arma mobilizadora", veio a ser abandonada por
ter um efeito perverso. As cenas de real ou teatralizado desespero eram de toda
a ordem: gritos, fugas da formatura, desmaios e ataques de fúria que faziam
impressão e em vez de serem mobilizadoras
eram de efeito contrário, com algumas deserções confirmadas. Ainda foi
ensaiada a formula de o cabo serviço subir a uns degraus que conduziam ao
terraço existente por decima da cozinha e o pessoal ia se queria ouvir se o seu
nome vinha na lista. Também não resultou esta modalidade. As cenas sucediam-se
e chegou a haver tentativa de agressão ao cabo leitor. A fórmula final foi a de
afixar as folhas de papel e cada um ia consulta-las quando queria. A rotina foi
a arma que serviu para curar todos os
impulsos.
Estava de
sargento de dia quando alguém leu o meu nome e me foi informar! Abandonei o
braçal e entreguei-o, "com os cumprimentos da família" na secretaria,
ao sargento "Siga, Siga", da primeira bateria, onde cheguei a prestar
serviço e com o sargento não me dava bem nem mal; ameaçou-me de que iria
participar o abandono de serviço de dia ao regimento e ficou desesperado quando
lhe perguntei se a punição vinha a tempo de eu embarcar, ou se me condenaria a
ír para Angola? Era para este território que eu iria ser mandado, depois de um
mês de férias a que todos tinham direito.
As deserções
aumentaram com o que da guerra se ia sabendo e algumas unidades partiram com
falta de elementos, alguns era na véspera que desapareciam.
As trocas
entre mobilizados por não mobilizados era frequente e não constava que alguém
se opusesse, mas muitas vezes não tinham nenhum efeito prático, como sucedeu
com dois do meu curso. Fizeram a troca, um pagou dez contos a outro e chegaram
no mesmo dia a Luanda, um no Vera Cruz, destinado todo a Angola e outro na
estreia do Príncipe Perfeito, que atracou cerca de meia hora depois, com
destino a Moçambique, mas deixando alguns em Luanda. Isto no dia seis de Julho
de sessenta e um.
E com estas
ou outras peripécias, era só uma questão de dias e lá partíamos, pois todos
eram poucos para defender a Pátria, una e indivisível.
Reis Caçote
Nov/2002-dig.11/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário