TERÁ SIDO, FEITO O BALANÇO, O PERIODO MAIS FÉRTIL : EM APRENDIZAGEM, EM EMOÇÕES, EM SOCIEDADE, EM DESPORTO, EM CULTURA, ANTES DAS GUERRAS COLONIAIS! A DESIGNAÇÃO QUE TITULA O TEXTO, NADA TEM A VER COM ALGUMA OUTRA QUE POSSA HAVER! É A MINHA E O SUPORTE ESTÁ NO TEXTO!
DA
CIDADE ALTA
I
Foi
mal resolvido o conflito sobre questões de honra, entre mim e o terceiro
patrão, o sr. David, digo de honra porque disso se tratava, já que naquele
tempo conflitos laborais não eram frequentes e se algum havia a guarda
pretoriana de então, visível ou invisível, se encarregava de os não deixar criar ramos; os patrões de então,
tal como hoje os empresários ou empregadores, bem o sabiam e com o sistema
contavam para, sem vergonha, explorarem a mão-de-obra infantil ou outra, sempre
a bem do Corporativismo e da Nação, mas cujos lucros da exploração revertiam,
tal como hoje, para engrossar as suas contas bancárias e ampliar o seu
património.
A
ditadura feroz e mentalmente atrasada, era quem ditava as leis e as fazia
cumprir; a exploração de hoje, ou deste tempo mais recente, foi em nome do
“socialismo democrático”, também conhecido por “de rosto humano” e de
social-democracia, apoiados todos, então e agora, no indispensável estado de
direito para legalizar, não é legitimar, todas as perversões que o sistema e a
nova organização económica vão impondo, tendo atingido o estado demencial com o
incensado e glorificado neoliberalismo, já bem elaborado e melhor ocultado
daqueles que hoje, como antes, lhe sofreram as consequências e vão pagar, estão
já a fazê-lo, bem caro, as despesas da “crise” para a qual em nada contribuíram
e se vem arrastando há mais de duas décadas, mas que só agora foi oficialmente
declarada, só depois de os responsáveis se colocarem e ao seu património, a
salvo, protegidos por leis que à sua medida foram sendo feitas, deixando para
trás meia dúzia de “esqueletos”, ressequidos e sem carpideiras para os
chorarem; outros, muitos, aí continuam, cantando e rindo, tal como há décadas
faziam nas paradas de farda da mocidade portuguesa e ainda outros revestindo-se
de guerreiros, mas sem guerras para travar, pois quando estas surgem são sempre
outros, mercenários ou não, quem as trava e eles as pagam, melhor dizendo, eles
as subsidiam e mantêm como mais uma fonte de negócio altamente lucrativo.
E
quem têm sido os capatazes deste nefando negócio?! Exatamente os que a seguir
ao Abril da esperança, a maior parte deles filhos de sangue ou de ideologia dos
traficantes de todo o tipo que temos vindo a falar, deixaram a farda castanha e
verde, trocando-a por calças de ganga e camisa aos quadrados, deixaram crescer
barba e cabelo e encheram as paredes da urbe de pinturas e provocações, em nome
do marxismo-leninismo, do maoismo, trotskismo e estalinismo! Uma choldra!
Mas
este tema, o do sistema dito neoliberal e seus nefandos efeitos, outros os irão
tratando, pior ou melhor, mas que talvez venhamos a saber os resultados,
mais-dia-menos-dia, depois de aprovados pelos tais conselhos de administração
do costume, como é hábito velho nesta dança de interesses e fortunas sombrias,
em espasmos demoníacos de fim de ciclo.
II
Os
cenários da minha vida profissional mudavam sempre que o meu “tutor” e família
mudavam; nunca percebi qual das situações arrastava a outra: Santa Bárbara
coincidiu com a Travessa de Campo de Ourique, depois a Eduardo Coelho com São
Bento e Prazeres com a Silva Carvalho (não garanto que seja este o nome da rua)
e a Rodrigo da Fonseca com Campolide. Não é pormenor que valha a pena explorar.
Fica assim.
Aquele
conjunto de ruas que vai da Joaquim António de Aguiar, a sul e a Marquês de
Fronteira, a Norte, formado por edifícios que raramente iam além dos quatro
andares ou então cinco, quando o rés-do-chão, e friso este pormenor, não por
que tenha especial relevância, mas só para aclarar haver uns que o são e outros
que não e que por vezes, por distração, podem originar confusão, como foi o
caso do meu primeiro encontro com a Conceição.
A
Leste acabava no parque Eduardo VII, sendo a rua Castilho a sua confinante e a
Oeste era a rua Artilharia Um quem delimitava este retângulo, tendo como única
paralela, mais ou menos a meio das duas anteriores, a Rodrigo da Fonseca.
Havia
quatro perpendiculares a este trio: a primeira, mais a Sul, de que não recordo
o nome e o mapa o omite, obliquava com a Joaquim António de Aguiar, era
paralela, a Norte. Com a Sampaio e Pina, esta com a Padre António Vieira e esta
com a D. Francisco Manuel de Melo. Fica assim feito o balanço, atabalhoado, do
enquadramento a que decidi chamar de “Cidade Alta”.
III
Os
bairros mais antigos, sem as condições de conforto, que as novas gerações de profissionais dos serviços,
sobretudo ligados ao Estado uma boa parte deles, criados pela burocracia e
funcionamento das instituições da orgânica corporativa exigiam, foram sendo
abandonados pelos herdeiros dos mais antigos moradores.
A
baixa pombalina, construída para ser habitada pelos desalojados do terramoto e
outros que acorreram para a construir, alguns se tornaram donos do novo espaço,
outros aproveitando o novo espaço de excelência para o comércio em expansão do
que era tradicional e mais tarde aproveitado para instalar as sedes de bancos e
Serviços do Estado; esta última invasão deu-se sobretudo no séc. XX. Cada banco
que se instalava ia expulsando os naturais moradores e o comércio seguia-lhe o
exemplo, mas apenas nos pisos térreos, mas logo vieram, como fazendo parte da
mesma família de predadores, os prestadores de serviços: advogados, notários,
médicos, escritórios de contabilidade, de cá e de outros lás, pensões, bordéis,
toda uma fauna de intermediários burocratas, parasitando na flora entre quem
produz e quem vende, entre quem produz e quem consome.
Samora
Machel, presidente da Frelimo à data da independência de Moçambique,
referindo-se aos estudantes preguiçosos, dizia que não podiam andar a parasitar
no “lombo do povo”; este dirigente da Frelimo morreu num acidente de aviação
nunca explicado, mas todos sabendo o que sucedeu; na baixa pombalina caíram
“frotas” inteiras de “aviões” que o Estado Novo fecundara e se reproduziram até
à exaustão do espaço, forçando à deserção quase total dos endémicos moradores.
E
só a nova ordem financeira, mais parasita que a anterior, mas mais ostentatória
do balofo que a formaria, procurou exibir-se para os novos espaços ocupados,
quer por hotéis, sedes de multinacionais, de grandes bancos de todo o mundo
ocidental, o dito mundo rico e que a ironia dos tempos demonstrou que a
prosápia improdutiva dos negociantes do capital intensivo se transformou, não
por acidente, mas naturalmente, no maior logro e fraude que a história registou
e que outra coisa não é senão a desintegração do sistema que tantos
acarinharam, protegeram, dele beneficiaram e que agora, coisa inédita, nem se
lembram de a tal terem pertencido, numa amnésia de cobardes para tentarem
escapar às responsabilidades, chegando mesmo a invocarem, na linguagem sempre
polida dos seus representantes, a sua inimputabilidade, atitude que os sem
vergonha sempre adotam quando chega a hora de prestarem algumas contas, mesmo
que só para do “processo constar”, pois sabem bem que da abertura do processo à
barra do tribunal, quando à barra do tribunal algum chega, vai uma tal
distância de “legais” “leis” que os causídicos, defensores ou acusadores agora,
antes as elaboraram e de modo a que os julgadores nada ou quase nada possam
fazer, tal o cerco murado que lhes prepararam.
IV
No
que antes eram as quintas e palácios da burguesia agrária e alguma
aristocracia, mal esta abriu mão de pedaços do seu alargado espaço, logo foi
invadido pelas ruas alinhadas de prédios, tal como acontecera décadas antes com
a Lapa e a Estrela.
E
para ali rumaram, alguns aturdidos pelas novas construções e pelos horizontes
que de algumas se disfrutava. Eram sobretudo os quadros superiores do Estado,
também alguns industriais e comerciantes melhor sucedidos e as Embaixadas, mais
as de fora da Europa, com seus técnicos e conselheiros.
O
Ritz já ali assentou alicerces, parece que não muito firmes, em meados da
década de cinquenta, foi crescendo e ainda o vi a funcionar e a receber
“ilustres” hóspedes tais como: o Xá da Pérsia, Hailé Selassié, a convite do seu
homólogo, almirante Américo Tomás e o refugiado de Cuba, Fulgêncio Baptista,
ambos ditadores nos seus respectivos países. Seus, deles, porque do Povo não
eram os países, mas estas coisas do ser à força não dura eternamente e, assim,
em Cuba o Fidel e o povo, mal ou bem ainda por lá andam, apesar do mais idiota
e desumano bloqueio que o seu vizinho “rico e iluminado” tem conduzido desde a
vergonha por que passou na Baía dos Porcos em sessenta e um e que parece… parece,
estar agora a desanuviar-se; na Pérsia, hoje Irão, foram os lideres religiosos
quem, mal ou bem também, apoiados e armados em troca do petróleo, como o fora o
Xá, pelo iluminado país que logo os ostracizou, mal disseram que com os antes
aliados contra o Xá nada queriam e agora sofrem, como os seus vizinhos já
sofreram e continuam a sofrer, mais desde o inicio do sec. XXI, com a chegada
ao poder da família Bush, pai e filho e já só no mundo como única potência
bélica que restou da Guerra Fria.
Voltando
à cidade alta.
O
polo de maior dinamismo era, sem dúvida, o liceu Maria Amália Vaz de Carvalho,
só para meninas, filhas, quase todas da classe alta e média-alta.
Chegavam
de manhã em carros, hoje topo de cama, alemães, franceses, ingleses e
americanos, os de países asiáticos ou da Cortina de Ferro (muito gostava de ter
visto esta cortina), não eram aceites pelos senhores do governo a Bem da Nação,
conduzidos por chauffeurs fardados, de boné e polidos botões metálicos, quase
sempre de cor cinzenta, abotoados até ao pescoço e luvas brancas, saiam quase
em passo de corrida para, solícitos e reverentes, irem abrir a porta traseira
do lado direito, de boné na mão esquerda e ensaiando uma vénia que nunca
percebi se bem ou se mal executada, deixavam passar as meninas, algumas já
mulheres em envergadura física; voltavam a colocar o boné e regressavam ao
volante, não antes de olhar bem a sua transportada, para se certificarem,
provavelmente, de que não se enganavam na porta de entrada. Este movimento
sucedia pela hora de almoço, chegavam os mercedes e outros só com o motorista
fardado, saiam e ficavam ao lado do carro esperando que aparecesse a sua menina
para então de descobrirem e com a mesma vénia da manhã e porta aberta esperavam
que a menina se sentasse e só então, com todo o cuidado, a fecharem e em passo
acelerado regressavam ao volante e partiam, sempre descendo em direcção à
baixa, porque assim tinha de ser uma vez que a Rodrigo da Fonseca tinha dois
sentidos de trânsito e placa central com árvores já bem crescidas.
Regressavam
uma hora ou mais, as meninas já de estômago aconchegado e os condutores também
e o ritual da manhã se repetia, assim como no final das aulas, penso que por
volta das cinco da tarde, agora com algumas diferenças, eram menos os carros e
tinham tempo para conversar uns com os outros, fumando o seu cigarro e rindo
alto iam-se metendo com quem passava. Aguardavam.
Era
um deslumbramento de juventude, sobraçando os compêndios das disciplinas desse
dia, subiam ou desciam a Rodrigo da Fonseca, em grupo ou sós, sobretudo as mais
crescidas, e quase sempre se dirigiam para os lados do Parque Eduardo VII,
algumas dando instruções aos motoristas que, ou ficavam aguardando ou partiam,
em função da ordem recebida.
Atravessavam
a Rua Castilho e como aves em Primavera, gargalhavam com a alegria natural das
suas idades e sem problemas que as preocupassem. Iam ocupando os bancos vazios
e alguns estavam já ocupados ou reservados por alguém que esperava. Era a
descoberta, por vezes acelerada, de novos saberes, algumas vezes bem mais úteis
que os das aulas, ao conhecerem, sem que fosse fugazmente, o galã pobre e
atrevido, ou atrevido porque pobre, que as cumulavam de piropos, nem sempre os
mais delicados.
Algumas,
caloiras, coravam até “à raiz do cabelo”, como se diz na gíria do vermelhão
espontâneo ou forçado; mas outras, mais velhas e habituadas já, não só não
coravam, como até correspondiam aos piropos, mesmo os mais atrevidos e até
ensaiavam voos perigosos de que não raras vezes algumas se arrependiam.
Eram
as aulas possíveis da hoje educação sexual, onde a pedagogia era esquecida e só
a prática prevalecia.
Xoxoxoxoxoxox
No
polo inverso ou oposto, de onde raramente entrava ou saía alguém, a não ser no
início da manhã para trabalharem ou então nas horas de mudança de turno, uma ou
duas vezes durante o dia, estava a Cadeia Penitenciária, com seus altos muros a
fazer de fronteira com a avenida Marquês de Fronteira, numa extensão de uns
duzentos metros, com seu portão e guarita com a respetiva sentinela e mais umas
quatro no alto do muro, apenas tendo uma pequena vigia à altura dos olhos dos
guardas, para poderem vigiar o interior e exterior da muralha, nem sempre com
êxito total, já que, pelo menos duas vezes, o mesmo recluso, terá subido a
muralha por dentro e descido pelo lado de fora, com auxilio de pedaços de
lençol atados a servir de corda; o mais estranho é que o recluso, em vez de
correr andava pelo passeio, calma e descontraidamente; alguém terá afirmado que
o recluso nunca teve intenção de fugir, gostando apenas de provocar o alarido
dos guardas e deixar-se reconduzir à sua cela. Constava também que a única reação,
quando o pegavam, era cuspir para os pés dos guardas recaptores.
Coisas
de cadeia: lendas, umas e reais, outras.
Nada
mais se sabia ao certo o que lá dentro se passava, mas o mais certo seria nada
se passar que fosse digno de registo, se esquecermos que se tratava de uma
cadeia penitenciária, destinada a privar de liberdade, condenados ou não,
cidadãos que a justiça e as leis que a regiam tinham sob a sua alçada.
Um
dos reclusos, penso que de apelido Saavedra, seria um bom cliente do
estabelecimento onde eu trabalhava; sobretudo fruta de qualidade era ali
comprada pela pessoa que o iria visitar, uma senhora com traços de andaluza,
alta e de porte fino; por vezes fazia a encomenda pelo telefone e eu ia
entregar na portaria da cadeia que depois a faria chegar ao Saavedra.
Penso
que nunca o vi, apenas constando que não era um vulgar criminoso, mas sim um
contestatário do regime e o regime não gostava mesmo nada desta “graça”;
dizia-se que estes presos, ditos políticos, eram por norma pior tratados do que
os de delito comum, mas isto se passaria mais, antes de serem enclausurados na
penitenciária.
V
Num
meio como o descrito havia sempre estórias, mais ou menos secretas, a circular:
que certo individuo era agente da Pide, aqueloutro era bufo, outros eram também
legionários; certo, certo, só os vi, nem sempre os mesmos, estou a referir-me
aos da Pide, três indivíduos à civil, na Rua Dom Francisco Manuel de Melo,
edifício junto à oficina com lavagem de automóveis, onde estava instalada a
Embaixada da Venezuela.
Um
à entrada do prédio, outro no saguão e um terceiro no patamar da escada mais
próximo da entrada da Embaixada, onde se teria refugiado um politico “sem
nome”.
Ali
estiveram semanas e certa noite desapareceram; o que se passou nunca se soube
ao certo, pois só os boatos circulavam à “boca pequena”, que na época bocas
grandes eram mal ouvidas ou mal se ouviam; que o asilado se evadiu da
Embaixada, iludindo a guarda disfarçado de canalizador; que os guardas forçaram
a entrada na Embaixada e filaram o escondido politico; que o disfarce para a
fuga foi de criada de servir, de sopeira à época; que terá conseguido chegar ao
telhado e de telhado em telhado se ter escapulido por um dos prédios da Rua
Castilho, mesmo à vista do sentinela da Penitenciária, que nada fez porque
estava ignorante de tal asilado e, bem vistas as coisas, ele estava ali de
sentinela aos prisioneiros, não aos políticos em fuga, em liberdade não era,
porque quem está em liberdade pode correr, mas fugir não; mas a mais corrente
versão era a de que o asilado ou exilado, farto daquela forma delusão, se
atirara da janela para o saguão e morrera frente au pide que cá em baixo o
guardava.
Alguns
dias passados apareceram dois dos “vigilantes” da Embaixada da Venezuela e
levaram um lavador de automóveis que trabalhava na oficina do rés-do-chão; mas
não foi para ficar preso, o que toda a gente estranhou quando no dia seguinte
voltou ao trabalho e alguns mais estranharam quando ele respondia, quando algum
lhe perguntava: “ foi por engano que me levaram”.
VI
Bem
ou mal olhadas as coisas, do ponto de vista sociológico,
aquela zona da cidade não era apenas alta, era a cidade da alta!
Ali
residia e operava a única representante da alta-costura da época, a costureira
Ana Maravilhas;
Ali
tinha o seu salão a cabeleireira Estrela, no prédio oposto ao da Ana
Maravilhas, do outro lado da Rodrigo da Fonseca, ambos fazendo gaveto com a
Avenida Marquês de Fronteira, que penteava a nata da sociedade, tendo a
encabeçar a lista das famosas a primeira-dama, Berta Craveiro Lopes.
Se
a Maravilhas terá desaparecido do mundo da alta-costura levando a fama para a
última morada, não se nota a sua falta, pois são hoje às dezenas os criadores e
criadoras da moda, já o salão da cabeleireira Estrela, cliente como a Ana
Maravilhas do estabelecimento onde eu trabalhava e amiga por simpatia, ainda
ostenta a placa no mesmo sitio, mas da minha admiradora e suas colaboradoras do
final da década de cinquenta e inicio da sessenta, só mesmo em sonho por lá
andarão, assim como as suas famosas ou afamadas clientes! Só fantasmas em
confidências de secador por lá devem pairar.
Outras
duas senhoras se destacavam no campo das artes, de quem os nomes não recordo,
nem me parece importante: uma delas, esposa de um jubilado, professor
catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutor Manuel
Heleno, que acidentalmente descobriu a sua sensibilidade artística para a
escultura! Um conhecido artista terá sido encarregado de fazer um alto-relevo
do busto de professor e para tanto instalou, provisoriamente, o atelier em casa
da família, na Rua de Artilharia Um, no prédio de cinco andares que faz gaveto
com aquela Rua e a Dom Francisco Manuel de Melo.
Ao
fim do dia, com o trabalho não terminado, mas já adiantado, despediu-se do
casal para no dia seguinte retomar a obra.
Não
terá sido pequena a surpresa do mestre quando chegou a casa do Professor e entrou
no seu provisório atelier!...! Como se por ali tivesse passado Cristo ou a
excelsa esposa de Dom Dinis, um fazendo os milagres do pão, do vinho e dos
peixes, talvez não por esta ordem e a Rainha Santa Dona Isabel apenas um
milagre fez, o de transformar rosas em pão e o dava às multidões, só não ficou
claro no poema se eram famintos os que o recebiam, o mestre escultor encontrou
não um que no final do dia anterior deixara quando interrompeu o trabalho, mas
dois bustos inacabados do Professor, gémeos naturais, só que um deles, não se
sabia bem qual, só tinha pai e o outro, segundo concluiu depois, de boca aberta
de espanto, era só mãe que tinha, a esposa do “retratado” e, logo, filho
ilegítimo do Professor.
-
E agora, qual deles acabo? Perguntava-se o mestre, de braços cruzados e cabeça
de lado a tentar achar alguma diferença entre os gémeos.
O
professor, homem de poucos sorrisos, sugeriu: como ambos são para me recordar,
acabe aquele que lhe pareça dar menos trabalho e depois a minha esposa, visto
ter sido ela quem fez até ao ponto que estão, acabará o outro.
Da
conversa havida entre o catedrático e o mestre resultou que devam convencer a
senhora, cujo nome continua no campo do esquecimento, a inscrever-se nas aulas
das Belas Artes e resultou de tal forma bem que a própria Sociedade das Belas
Artes a premiou pelo busto do filho em mármore preto, feito pela mãe e que
ocupava em casa um espaço de relevo entre outros trabalhos que foram sendo
feitos. Não consta que tenha feito uma carreira marcante dentro do mundo das
artes, a idade ao despertar era já de modo a não permitir grandes voos. Mas o
exemplo ficou e a encheu de orgulho.
A
outra descoberta, neste caso na área da pintura a óleo, foi a esposa do então
director da Junta Nacional da Cortiça, tendo iniciado a sua vocação artística a
copiar um dos quadros da família: uma cena de guerra em alto-mar, no tempo das
caravelas e do áureo período de Portugal, o dos Descobrimentos, dando novos
mundos ao mundo.
O
trabalho foi executado com tal pormenor e rigor que ao ser visto por
especialistas logo a aconselharam a frequentar aulas das Belas Artes, como o
escultor fez no caso da esposa do catedrático das Letras. Mais para dominar a
técnica das misturas das cores. Esta fez carreira, não por ser mais nova, mas
porque os museus que tinham obras antigas em mau estado de conservação e deviam
ser muitos, todos queriam que fosse a talentosa senhora a fazer o trabalho de
restauro.
Entre
as famílias da arte, não de “gabarito”, que não conhecia, nem sei muito bem em
que tal se traduz, talvez por gostar de todos os géneros, destaco mais três,
não por ordem hierárquica da área ou importância social, mas por serem todos
meus conhecidas e clientes da casa onde trabalhava e que todos os dias visitava
em suas casas: na Castilho e no rés-do-chão do prédio que faz esquina com a rua
D. Francisco Manuel de Melo e onde hoje está instalada a sede da Caixa de
Crédito Agrícola, morava uma talvez trineta do nomeado Fontes Pereira de Melo,
ministro das obras públicas do Marquês de Pombal e ele, marido da D.
Fernandinha, contra-almirante na situação de reserva e administrador da Diamang
em Lisboa e a quem devo quase tudo o que aprendi, juntamente com um neto do
casal, sobre desenho geométrico e que não foi pouco, a que correspondiam as
notas que fui tendo; a D. Fernandinha, parente afastada do ministro do marquês
de Pombal, era de um rigor, quase doentio, nas contas, somando mentalmente os
valores da lista das compras, por vezes com dez ou mais parcelas e fazia
questão de garantir que não se enganava quando o valor mentalmente encontrado
por ela era diferente daquele que eu ou o senhor Alfredo tínhamos somado, o que
raramente sucedia, mas nunca uma conta foi paga sem que antes ela a tivesse
somado com a calculadora que tinha escondida e a desse como aprovada! E se no
troco um tostão tivesse a menos tinha que ir busca-lo e só depois se despedia
educadamente.
No
primeiro andar mora a família Castro Caldas, ele director dos Hospitais Civis
de Lisboa e ela sem profissão, pelo menos assim recordo; era uma família
abastada, de vários membros, com cozinheira africana, esta muito rigorosa
também e uma criada dos quartos; a família em questão, ou sejam os filhos que
na altura conheci e os filhos destes, andam aí pelas politicas e pela medicina,
mas num caso e no outro, tal como na época, sem grandes alaridos sociais, mas
de grandes competências nas suas áreas.
A
terceira família, morando na Marquês de Fronteira e quase já a chegar à rua de
Artilharia Um, era a do general Venâncio Deslandes, que poucas vezes vi fardado
e que nunca cheguei a ver em Angola, quando ali esteve como Governador Geral,
sendo depois substituído pelo coronel Silvino Silvério Marques, que ainda lá
ficou quando regressei, isto se a memória me não trai.
Mas
havia também o Manel leiteiro, afamado conquistador de tudo o que era criadagem
da zona alta da cidade! O seu transporte e das bilhas do leite era feito numa
moto BMW de duzentos e cinquenta centímetros cúbicos de cilindrada, em
linguagem decalcada pois de motos e outros rodantes nada sabia nem sei; ainda
de madrugada começava a bater às portas das clientes para aviar meio ou um
litro de leite ou os que fossem pedidos; noutros casos, as freguesas deixavam a
cafeteira, que devia chamar-se leiteira, ou mesmo o fervedor à entrada da porta
e ele alí deixava a quantidade pedida no inicio, para depois passar a ser a
habitual, pois os hábitos, bons e maus eram fruta da época naquela época, de
ausência total dos supermercados onde cada um agora escolhe a quantidade e
qualidade do leite que quer, já medido e embalado. Hábitos! Manias, dirão
alguns.
A
BMW que de manhã servia para transportar as bilhas do leite, à noite as
transportadas eram as “namoradas” que ía conquistando com sua lábia de vendedor
ao domicilio de um produto que servia de tema-base para as conversas mais
arrojadas e atrevidas da sedução das moçoilas mais afoitas.
Dávamo-nos
bem e chegámos a apostar quem seria o primeiro a cair nas graças duma nova
criadita chegada ao nosso comum espaço geográfico.
Um
outro de que me recordo era empregado na Imprensa Nacional, na tipografia, que
só laborava até às cinco da tarde. A noite passava-a a seduzir adolescentes
para os iniciar na “nobre arte da bebedeira” de que fazia gala ser professor.
Tive uma só aula com ele e foi tão intensa a parte prática que logo concluí não
ir conseguir acabar a aprendizagem sem incidentes graves, por isso desisti, com
alguma tristeza dele.
Muitos
outros e outras pessoas deviam constar deste trabalho escrito, pois foi o mais
dinâmico que vivi antes da ida para Angola e depois de constituir família.
Um
caso particular e que deixou marcas profundas foi tratado em texto separado e
ainda mais dois, menos importantes, mas de muita beleza, estão dispersos pelos
lugares e tempos em que ocorreram e registei.
O
resto daria para escrever centenas de páginas, mas para tanto era preciso ter
tempo e, sobretudo, mais sensibilidade do que a que terei atualmente.
Ficará
assim. Bem ou mal.
Reis
Caçote
1989
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PAVILHÃO DOS DESPORTOS, HOJE CARLOS LOPES |
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AQUI AINDA ERA PAVILHÃOS DOS DESPORTOS |
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A DESIGNAÇÃO DA FOTO É: CRISE NO PARQUE |
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O PALACE HOTEL BEM CONHECIDO |
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O LICEU MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO, NA ÉPOCA APENAS PARA "MENINAS" |
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