quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A CIDADE ALTA



TERÁ SIDO, FEITO O BALANÇO, O PERIODO MAIS FÉRTIL : EM APRENDIZAGEM, EM EMOÇÕES, EM SOCIEDADE, EM DESPORTO, EM CULTURA, ANTES DAS GUERRAS COLONIAIS! A DESIGNAÇÃO QUE TITULA O TEXTO, NADA TEM A VER COM ALGUMA OUTRA QUE POSSA HAVER! É A MINHA E O SUPORTE ESTÁ NO TEXTO!


                                    DA CIDADE ALTA

                                                I

Foi mal resolvido o conflito sobre questões de honra, entre mim e o terceiro patrão, o sr. David, digo de honra porque disso se tratava, já que naquele tempo conflitos laborais não eram frequentes e se algum havia a guarda pretoriana de então, visível ou invisível, se encarregava de os  não deixar criar ramos; os patrões de então, tal como hoje os empresários ou empregadores, bem o sabiam e com o sistema contavam para, sem vergonha, explorarem a mão-de-obra infantil ou outra, sempre a bem do Corporativismo e da Nação, mas cujos lucros da exploração revertiam, tal como hoje, para engrossar as suas contas bancárias e ampliar o seu património.
A ditadura feroz e mentalmente atrasada, era quem ditava as leis e as fazia cumprir; a exploração de hoje, ou deste tempo mais recente, foi em nome do “socialismo democrático”, também conhecido por “de rosto humano” e de social-democracia, apoiados todos, então e agora, no indispensável estado de direito para legalizar, não é legitimar, todas as perversões que o sistema e a nova organização económica vão impondo, tendo atingido o estado demencial com o incensado e glorificado neoliberalismo, já bem elaborado e melhor ocultado daqueles que hoje, como antes, lhe sofreram as consequências e vão pagar, estão já a fazê-lo, bem caro, as despesas da “crise” para a qual em nada contribuíram e se vem arrastando há mais de duas décadas, mas que só agora foi oficialmente declarada, só depois de os responsáveis se colocarem e ao seu património, a salvo, protegidos por leis que à sua medida foram sendo feitas, deixando para trás meia dúzia de “esqueletos”, ressequidos e sem carpideiras para os chorarem; outros, muitos, aí continuam, cantando e rindo, tal como há décadas faziam nas paradas de farda da mocidade portuguesa e ainda outros revestindo-se de guerreiros, mas sem guerras para travar, pois quando estas surgem são sempre outros, mercenários ou não, quem as trava e eles as pagam, melhor dizendo, eles as subsidiam e mantêm como mais uma fonte de negócio altamente lucrativo.
E quem têm sido os capatazes deste nefando negócio?! Exatamente os que a seguir ao Abril da esperança, a maior parte deles filhos de sangue ou de ideologia dos traficantes de todo o tipo que temos vindo a falar, deixaram a farda castanha e verde, trocando-a por calças de ganga e camisa aos quadrados, deixaram crescer barba e cabelo e encheram as paredes da urbe de pinturas e provocações, em nome do marxismo-leninismo, do maoismo, trotskismo e estalinismo! Uma choldra!
Mas este tema, o do sistema dito neoliberal e seus nefandos efeitos, outros os irão tratando, pior ou melhor, mas que talvez venhamos a saber os resultados, mais-dia-menos-dia, depois de aprovados pelos tais conselhos de administração do costume, como é hábito velho nesta dança de interesses e fortunas sombrias, em espasmos demoníacos de fim de ciclo.

                                                 II

Os cenários da minha vida profissional mudavam sempre que o meu “tutor” e família mudavam; nunca percebi qual das situações arrastava a outra: Santa Bárbara coincidiu com a Travessa de Campo de Ourique, depois a Eduardo Coelho com São Bento e Prazeres com a Silva Carvalho (não garanto que seja este o nome da rua) e a Rodrigo da Fonseca com Campolide. Não é pormenor que valha a pena explorar. Fica assim.
Aquele conjunto de ruas que vai da Joaquim António de Aguiar, a sul e a Marquês de Fronteira, a Norte, formado por edifícios que raramente iam além dos quatro andares ou então cinco, quando o rés-do-chão, e friso este pormenor, não por que tenha especial relevância, mas só para aclarar haver uns que o são e outros que não e que por vezes, por distração, podem originar confusão, como foi o caso do meu primeiro encontro com a Conceição.
A Leste acabava no parque Eduardo VII, sendo a rua Castilho a sua confinante e a Oeste era a rua Artilharia Um quem delimitava este retângulo, tendo como única paralela, mais ou menos a meio das duas anteriores, a Rodrigo da Fonseca.
Havia quatro perpendiculares a este trio: a primeira, mais a Sul, de que não recordo o nome e o mapa o omite, obliquava com a Joaquim António de Aguiar, era paralela, a Norte. Com a Sampaio e Pina, esta com a Padre António Vieira e esta com a D. Francisco Manuel de Melo. Fica assim feito o balanço, atabalhoado, do enquadramento a que decidi chamar de “Cidade Alta”.

                                                 III

Os bairros mais antigos, sem as condições de conforto, que as  novas gerações de profissionais dos serviços, sobretudo ligados ao Estado uma boa parte deles, criados pela burocracia e funcionamento das instituições da orgânica corporativa exigiam, foram sendo abandonados pelos herdeiros dos mais antigos moradores.
A baixa pombalina, construída para ser habitada pelos desalojados do terramoto e outros que acorreram para a construir, alguns se tornaram donos do novo espaço, outros aproveitando o novo espaço de excelência para o comércio em expansão do que era tradicional e mais tarde aproveitado para instalar as sedes de bancos e Serviços do Estado; esta última invasão deu-se sobretudo no séc. XX. Cada banco que se instalava ia expulsando os naturais moradores e o comércio seguia-lhe o exemplo, mas apenas nos pisos térreos, mas logo vieram, como fazendo parte da mesma família de predadores, os prestadores de serviços: advogados, notários, médicos, escritórios de contabilidade, de cá e de outros lás, pensões, bordéis, toda uma fauna de intermediários burocratas, parasitando na flora entre quem produz e quem vende, entre quem produz e quem consome.
Samora Machel, presidente da Frelimo à data da independência de Moçambique, referindo-se aos estudantes preguiçosos, dizia que não podiam andar a parasitar no “lombo do povo”; este dirigente da Frelimo morreu num acidente de aviação nunca explicado, mas todos sabendo o que sucedeu; na baixa pombalina caíram “frotas” inteiras de “aviões” que o Estado Novo fecundara e se reproduziram até à exaustão do espaço, forçando à deserção quase total dos endémicos moradores.
E só a nova ordem financeira, mais parasita que a anterior, mas mais ostentatória do balofo que a formaria, procurou exibir-se para os novos espaços ocupados, quer por hotéis, sedes de multinacionais, de grandes bancos de todo o mundo ocidental, o dito mundo rico e que a ironia dos tempos demonstrou que a prosápia improdutiva dos negociantes do capital intensivo se transformou, não por acidente, mas naturalmente, no maior logro e fraude que a história registou e que outra coisa não é senão a desintegração do sistema que tantos acarinharam, protegeram, dele beneficiaram e que agora, coisa inédita, nem se lembram de a tal terem pertencido, numa amnésia de cobardes para tentarem escapar às responsabilidades, chegando mesmo a invocarem, na linguagem sempre polida dos seus representantes, a sua inimputabilidade, atitude que os sem vergonha sempre adotam quando chega a hora de prestarem algumas contas, mesmo que só para do “processo constar”, pois sabem bem que da abertura do processo à barra do tribunal, quando à barra do tribunal algum chega, vai uma tal distância de “legais” “leis” que os causídicos, defensores ou acusadores agora, antes as elaboraram e de modo a que os julgadores nada ou quase nada possam fazer, tal o cerco murado que lhes prepararam.

                                                 IV

No que antes eram as quintas e palácios da burguesia agrária e alguma aristocracia, mal esta abriu mão de pedaços do seu alargado espaço, logo foi invadido pelas ruas alinhadas de prédios, tal como acontecera décadas antes com a Lapa e a Estrela.
E para ali rumaram, alguns aturdidos pelas novas construções e pelos horizontes que de algumas se disfrutava. Eram sobretudo os quadros superiores do Estado, também alguns industriais e comerciantes melhor sucedidos e as Embaixadas, mais as de fora da Europa, com seus técnicos e conselheiros.
O Ritz já ali assentou alicerces, parece que não muito firmes, em meados da década de cinquenta, foi crescendo e ainda o vi a funcionar e a receber “ilustres” hóspedes tais como: o Xá da Pérsia, Hailé Selassié, a convite do seu homólogo, almirante Américo Tomás e o refugiado de Cuba, Fulgêncio Baptista, ambos ditadores nos seus respectivos países. Seus, deles, porque do Povo não eram os países, mas estas coisas do ser à força não dura eternamente e, assim, em Cuba o Fidel e o povo, mal ou bem ainda por lá andam, apesar do mais idiota e desumano bloqueio que o seu vizinho “rico e iluminado” tem conduzido desde a vergonha por que passou na Baía dos Porcos em sessenta e um e que parece… parece, estar agora a desanuviar-se; na Pérsia, hoje Irão, foram os lideres religiosos quem, mal ou bem também, apoiados e armados em troca do petróleo, como o fora o Xá, pelo iluminado país que logo os ostracizou, mal disseram que com os antes aliados contra o Xá nada queriam e agora sofrem, como os seus vizinhos já sofreram e continuam a sofrer, mais desde o inicio do sec. XXI, com a chegada ao poder da família Bush, pai e filho e já só no mundo como única potência bélica que restou da Guerra Fria.
Voltando à cidade alta.
O polo de maior dinamismo era, sem dúvida, o liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, só para meninas, filhas, quase todas da classe alta e média-alta.
Chegavam de manhã em carros, hoje topo de cama, alemães, franceses, ingleses e americanos, os de países asiáticos ou da Cortina de Ferro (muito gostava de ter visto esta cortina), não eram aceites pelos senhores do governo a Bem da Nação, conduzidos por chauffeurs fardados, de boné e polidos botões metálicos, quase sempre de cor cinzenta, abotoados até ao pescoço e luvas brancas, saiam quase em passo de corrida para, solícitos e reverentes, irem abrir a porta traseira do lado direito, de boné na mão esquerda e ensaiando uma vénia que nunca percebi se bem ou se mal executada, deixavam passar as meninas, algumas já mulheres em envergadura física; voltavam a colocar o boné e regressavam ao volante, não antes de olhar bem a sua transportada, para se certificarem, provavelmente, de que não se enganavam na porta de entrada. Este movimento sucedia pela hora de almoço, chegavam os mercedes e outros só com o motorista fardado, saiam e ficavam ao lado do carro esperando que aparecesse a sua menina para então de descobrirem e com a mesma vénia da manhã e porta aberta esperavam que a menina se sentasse e só então, com todo o cuidado, a fecharem e em passo acelerado regressavam ao volante e partiam, sempre descendo em direcção à baixa, porque assim tinha de ser uma vez que a Rodrigo da Fonseca tinha dois sentidos de trânsito e placa central com árvores já bem crescidas.
Regressavam uma hora ou mais, as meninas já de estômago aconchegado e os condutores também e o ritual da manhã se repetia, assim como no final das aulas, penso que por volta das cinco da tarde, agora com algumas diferenças, eram menos os carros e tinham tempo para conversar uns com os outros, fumando o seu cigarro e rindo alto iam-se metendo com quem passava. Aguardavam.
Era um deslumbramento de juventude, sobraçando os compêndios das disciplinas desse dia, subiam ou desciam a Rodrigo da Fonseca, em grupo ou sós, sobretudo as mais crescidas, e quase sempre se dirigiam para os lados do Parque Eduardo VII, algumas dando instruções aos motoristas que, ou ficavam aguardando ou partiam, em função da ordem recebida.
Atravessavam a Rua Castilho e como aves em Primavera, gargalhavam com a alegria natural das suas idades e sem problemas que as preocupassem. Iam ocupando os bancos vazios e alguns estavam já ocupados ou reservados por alguém que esperava. Era a descoberta, por vezes acelerada, de novos saberes, algumas vezes bem mais úteis que os das aulas, ao conhecerem, sem que fosse fugazmente, o galã pobre e atrevido, ou atrevido porque pobre, que as cumulavam de piropos, nem sempre os mais delicados.
Algumas, caloiras, coravam até “à raiz do cabelo”, como se diz na gíria do vermelhão espontâneo ou forçado; mas outras, mais velhas e habituadas já, não só não coravam, como até correspondiam aos piropos, mesmo os mais atrevidos e até ensaiavam voos perigosos de que não raras vezes algumas se arrependiam.
Eram as aulas possíveis da hoje educação sexual, onde a pedagogia era esquecida e só a prática prevalecia.
                                Xoxoxoxoxoxox
No polo inverso ou oposto, de onde raramente entrava ou saía alguém, a não ser no início da manhã para trabalharem ou então nas horas de mudança de turno, uma ou duas vezes durante o dia, estava a Cadeia Penitenciária, com seus altos muros a fazer de fronteira com a avenida Marquês de Fronteira, numa extensão de uns duzentos metros, com seu portão e guarita com a respetiva sentinela e mais umas quatro no alto do muro, apenas tendo uma pequena vigia à altura dos olhos dos guardas, para poderem vigiar o interior e exterior da muralha, nem sempre com êxito total, já que, pelo menos duas vezes, o mesmo recluso, terá subido a muralha por dentro e descido pelo lado de fora, com auxilio de pedaços de lençol atados a servir de corda; o mais estranho é que o recluso, em vez de correr andava pelo passeio, calma e descontraidamente; alguém terá afirmado que o recluso nunca teve intenção de fugir, gostando apenas de provocar o alarido dos guardas e deixar-se reconduzir à sua cela. Constava também que a única reação, quando o pegavam, era cuspir para os pés dos guardas recaptores.
Coisas de cadeia: lendas, umas e reais, outras.
Nada mais se sabia ao certo o que lá dentro se passava, mas o mais certo seria nada se passar que fosse digno de registo, se esquecermos que se tratava de uma cadeia penitenciária, destinada a privar de liberdade, condenados ou não, cidadãos que a justiça e as leis que a regiam tinham sob a sua alçada.
Um dos reclusos, penso que de apelido Saavedra, seria um bom cliente do estabelecimento onde eu trabalhava; sobretudo fruta de qualidade era ali comprada pela pessoa que o iria visitar, uma senhora com traços de andaluza, alta e de porte fino; por vezes fazia a encomenda pelo telefone e eu ia entregar na portaria da cadeia que depois a faria chegar ao Saavedra.
Penso que nunca o vi, apenas constando que não era um vulgar criminoso, mas sim um contestatário do regime e o regime não gostava mesmo nada desta “graça”; dizia-se que estes presos, ditos políticos, eram por norma pior tratados do que os de delito comum, mas isto se passaria mais, antes de serem enclausurados na penitenciária.

                                                           V

Num meio como o descrito havia sempre estórias, mais ou menos secretas, a circular: que certo individuo era agente da Pide, aqueloutro era bufo, outros eram também legionários; certo, certo, só os vi, nem sempre os mesmos, estou a referir-me aos da Pide, três indivíduos à civil, na Rua Dom Francisco Manuel de Melo, edifício junto à oficina com lavagem de automóveis, onde estava instalada a Embaixada da Venezuela.
Um à entrada do prédio, outro no saguão e um terceiro no patamar da escada mais próximo da entrada da Embaixada, onde se teria refugiado um politico “sem nome”.
Ali estiveram semanas e certa noite desapareceram; o que se passou nunca se soube ao certo, pois só os boatos circulavam à “boca pequena”, que na época bocas grandes eram mal ouvidas ou mal se ouviam; que o asilado se evadiu da Embaixada, iludindo a guarda disfarçado de canalizador; que os guardas forçaram a entrada na Embaixada e filaram o escondido politico; que o disfarce para a fuga foi de criada de servir, de sopeira à época; que terá conseguido chegar ao telhado e de telhado em telhado se ter escapulido por um dos prédios da Rua Castilho, mesmo à vista do sentinela da Penitenciária, que nada fez porque estava ignorante de tal asilado e, bem vistas as coisas, ele estava ali de sentinela aos prisioneiros, não aos políticos em fuga, em liberdade não era, porque quem está em liberdade pode correr, mas fugir não; mas a mais corrente versão era a de que o asilado ou exilado, farto daquela forma delusão, se atirara da janela para o saguão e morrera frente au pide que cá em baixo o guardava.
Alguns dias passados apareceram dois dos “vigilantes” da Embaixada da Venezuela e levaram um lavador de automóveis que trabalhava na oficina do rés-do-chão; mas não foi para ficar preso, o que toda a gente estranhou quando no dia seguinte voltou ao trabalho e alguns mais estranharam quando ele respondia, quando algum lhe perguntava: “ foi por engano que me levaram”.

                                                 VI

Bem ou mal olhadas as coisas, do ponto de vista      sociológico, aquela zona da cidade não era apenas alta, era a cidade da alta!
Ali residia e operava a única representante da alta-costura da época, a costureira Ana Maravilhas;
Ali tinha o seu salão a cabeleireira Estrela, no prédio oposto ao da Ana Maravilhas, do outro lado da Rodrigo da Fonseca, ambos fazendo gaveto com a Avenida Marquês de Fronteira, que penteava a nata da sociedade, tendo a encabeçar a lista das famosas a primeira-dama, Berta Craveiro Lopes.
Se a Maravilhas terá desaparecido do mundo da alta-costura levando a fama para a última morada, não se nota a sua falta, pois são hoje às dezenas os criadores e criadoras da moda, já o salão da cabeleireira Estrela, cliente como a Ana Maravilhas do estabelecimento onde eu trabalhava e amiga por simpatia, ainda ostenta a placa no mesmo sitio, mas da minha admiradora e suas colaboradoras do final da década de cinquenta e inicio da sessenta, só mesmo em sonho por lá andarão, assim como as suas famosas ou afamadas clientes! Só fantasmas em confidências de secador por lá devem pairar.
Outras duas senhoras se destacavam no campo das artes, de quem os nomes não recordo, nem me parece importante: uma delas, esposa de um jubilado, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutor Manuel Heleno, que acidentalmente descobriu a sua sensibilidade artística para a escultura! Um conhecido artista terá sido encarregado de fazer um alto-relevo do busto de professor e para tanto instalou, provisoriamente, o atelier em casa da família, na Rua de Artilharia Um, no prédio de cinco andares que faz gaveto com aquela Rua e a Dom Francisco Manuel de Melo.
Ao fim do dia, com o trabalho não terminado, mas já adiantado, despediu-se do casal para no dia seguinte retomar a obra.
Não terá sido pequena a surpresa do mestre quando chegou a casa do Professor e entrou no seu provisório atelier!...! Como se por ali tivesse passado Cristo ou a excelsa esposa de Dom Dinis, um fazendo os milagres do pão, do vinho e dos peixes, talvez não por esta ordem e a Rainha Santa Dona Isabel apenas um milagre fez, o de transformar rosas em pão e o dava às multidões, só não ficou claro no poema se eram famintos os que o recebiam, o mestre escultor encontrou não um que no final do dia anterior deixara quando interrompeu o trabalho, mas dois bustos inacabados do Professor, gémeos naturais, só que um deles, não se sabia bem qual, só tinha pai e o outro, segundo concluiu depois, de boca aberta de espanto, era só mãe que tinha, a esposa do “retratado” e, logo, filho ilegítimo do Professor.
- E agora, qual deles acabo? Perguntava-se o mestre, de braços cruzados e cabeça de lado a tentar achar alguma diferença entre os gémeos.
O professor, homem de poucos sorrisos, sugeriu: como ambos são para me recordar, acabe aquele que lhe pareça dar menos trabalho e depois a minha esposa, visto ter sido ela quem fez até ao ponto que estão, acabará o outro.
Da conversa havida entre o catedrático e o mestre resultou que devam convencer a senhora, cujo nome continua no campo do esquecimento, a inscrever-se nas aulas das Belas Artes e resultou de tal forma bem que a própria Sociedade das Belas Artes a premiou pelo busto do filho em mármore preto, feito pela mãe e que ocupava em casa um espaço de relevo entre outros trabalhos que foram sendo feitos. Não consta que tenha feito uma carreira marcante dentro do mundo das artes, a idade ao despertar era já de modo a não permitir grandes voos. Mas o exemplo ficou e a encheu de orgulho.
A outra descoberta, neste caso na área da pintura a óleo, foi a esposa do então director da Junta Nacional da Cortiça, tendo iniciado a sua vocação artística a copiar um dos quadros da família: uma cena de guerra em alto-mar, no tempo das caravelas e do áureo período de Portugal, o dos Descobrimentos, dando novos mundos ao mundo.
O trabalho foi executado com tal pormenor e rigor que ao ser visto por especialistas logo a aconselharam a frequentar aulas das Belas Artes, como o escultor fez no caso da esposa do catedrático das Letras. Mais para dominar a técnica das misturas das cores. Esta fez carreira, não por ser mais nova, mas porque os museus que tinham obras antigas em mau estado de conservação e deviam ser muitos, todos queriam que fosse a talentosa senhora a fazer o trabalho de restauro.
Entre as famílias da arte, não de “gabarito”, que não conhecia, nem sei muito bem em que tal se traduz, talvez por gostar de todos os géneros, destaco mais três, não por ordem hierárquica da área ou importância social, mas por serem todos meus conhecidas e clientes da casa onde trabalhava e que todos os dias visitava em suas casas: na Castilho e no rés-do-chão do prédio que faz esquina com a rua D. Francisco Manuel de Melo e onde hoje está instalada a sede da Caixa de Crédito Agrícola, morava uma talvez trineta do nomeado Fontes Pereira de Melo, ministro das obras públicas do Marquês de Pombal e ele, marido da D. Fernandinha, contra-almirante na situação de reserva e administrador da Diamang em Lisboa e a quem devo quase tudo o que aprendi, juntamente com um neto do casal, sobre desenho geométrico e que não foi pouco, a que correspondiam as notas que fui tendo; a D. Fernandinha, parente afastada do ministro do marquês de Pombal, era de um rigor, quase doentio, nas contas, somando mentalmente os valores da lista das compras, por vezes com dez ou mais parcelas e fazia questão de garantir que não se enganava quando o valor mentalmente encontrado por ela era diferente daquele que eu ou o senhor Alfredo tínhamos somado, o que raramente sucedia, mas nunca uma conta foi paga sem que antes ela a tivesse somado com a calculadora que tinha escondida e a desse como aprovada! E se no troco um tostão tivesse a menos tinha que ir busca-lo e só depois se despedia educadamente.
No primeiro andar mora a família Castro Caldas, ele director dos Hospitais Civis de Lisboa e ela sem profissão, pelo menos assim recordo; era uma família abastada, de vários membros, com cozinheira africana, esta muito rigorosa também e uma criada dos quartos; a família em questão, ou sejam os filhos que na altura conheci e os filhos destes, andam aí pelas politicas e pela medicina, mas num caso e no outro, tal como na época, sem grandes alaridos sociais, mas de grandes competências nas suas áreas.
A terceira família, morando na Marquês de Fronteira e quase já a chegar à rua de Artilharia Um, era a do general Venâncio Deslandes, que poucas vezes vi fardado e que nunca cheguei a ver em Angola, quando ali esteve como Governador Geral, sendo depois substituído pelo coronel Silvino Silvério Marques, que ainda lá ficou quando regressei, isto se a memória me não trai.
Mas havia também o Manel leiteiro, afamado conquistador de tudo o que era criadagem da zona alta da cidade! O seu transporte e das bilhas do leite era feito numa moto BMW de duzentos e cinquenta centímetros cúbicos de cilindrada, em linguagem decalcada pois de motos e outros rodantes nada sabia nem sei; ainda de madrugada começava a bater às portas das clientes para aviar meio ou um litro de leite ou os que fossem pedidos; noutros casos, as freguesas deixavam a cafeteira, que devia chamar-se leiteira, ou mesmo o fervedor à entrada da porta e ele alí deixava a quantidade pedida no inicio, para depois passar a ser a habitual, pois os hábitos, bons e maus eram fruta da época naquela época, de ausência total dos supermercados onde cada um agora escolhe a quantidade e qualidade do leite que quer, já medido e embalado. Hábitos! Manias, dirão alguns.
A BMW que de manhã servia para transportar as bilhas do leite, à noite as transportadas eram as “namoradas” que ía conquistando com sua lábia de vendedor ao domicilio de um produto que servia de tema-base para as conversas mais arrojadas e atrevidas da sedução das moçoilas mais afoitas.
Dávamo-nos bem e chegámos a apostar quem seria o primeiro a cair nas graças duma nova criadita chegada ao nosso comum espaço geográfico.
Um outro de que me recordo era empregado na Imprensa Nacional, na tipografia, que só laborava até às cinco da tarde. A noite passava-a a seduzir adolescentes para os iniciar na “nobre arte da bebedeira” de que fazia gala ser professor. Tive uma só aula com ele e foi tão intensa a parte prática que logo concluí não ir conseguir acabar a aprendizagem sem incidentes graves, por isso desisti, com alguma tristeza dele.
Muitos outros e outras pessoas deviam constar deste trabalho escrito, pois foi o mais dinâmico que vivi antes da ida para Angola e depois de constituir família.
Um caso particular e que deixou marcas profundas foi tratado em texto separado e ainda mais dois, menos importantes, mas de muita beleza, estão dispersos pelos lugares e tempos em que ocorreram e registei.
O resto daria para escrever centenas de páginas, mas para tanto era preciso ter tempo e, sobretudo, mais sensibilidade do que a que terei atualmente.
Ficará assim. Bem ou mal.
Reis Caçote
1989 
PAVILHÃO DOS DESPORTOS, HOJE CARLOS LOPES

AQUI AINDA ERA PAVILHÃOS DOS DESPORTOS

A DESIGNAÇÃO DA FOTO É: CRISE NO PARQUE
ESTE EDIFICIO MUITO DE BELO E DE MEU: MORAVAM 2 FAMILIAS QUE NÃO ESQUECEREI: A FAMILIA CASTRO CALDAS NO 1º ANDAR E A NETA/BISNETA DE FONTES PEREIRA DE MELO! O CONTRA-ALMIRANTE, ADMINISTRADOR DA DIAMANG, DEU-ME AULAS DE DESENHO GEOMÉTRICA, TENDO COMO COLEGA O NETO! 


O PALACE HOTEL BEM CONHECIDO

O LICEU MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO, NA ÉPOCA APENAS PARA "MENINAS"

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