sábado, 30 de dezembro de 2017

OS VEICULOS E EU...

ALGUMAS PESSOAS ME PERGUNTAVAM POR QUE NÃO CONDUZIA E COMO NÃO TEREI QUALQUER POSSIBILIDADE DE EXPLICAR ORALMENTE, DECIDI ESCREVER SOBRE O TEMA, ASSIM:




                         OS VEICULOS E EU...


                                          I


Também nesta área, familiares e amigos tentaram, com verdadeiros esforço e boa vontade, perceber a minha relutância ou falta de entusiasmo em relação aos mais comuns meios de locomoção individuais
 Eu próprio queria perceber melhor, até que ponto é real ou apenas uma reação num momento de choque violento. Vamos avançar.
Na aldeia, é verdade, tudo começa na aldeia, como eu, só havia: nem meia dúzia de carros de vacas (isto no início da década de cinquenta), duas bicicletas, a do Viterbo e a da filha do senhor Aleixo, e um jeep, o do senhor Aníbal Soares que, mesmo sendo jeep, era com alguma dificuldade que fazia o trajeto da Quinta do Custódio para Castelo Melhor, ou o inverso. Sobretudo a seguir às bátegas de água que deixavam os caminhos com buracos de muito respeito, uns senhores buracos!
Como terá sucedido com outros de sempre, também os da minha idade fizeram carros com rodas de tábuas, mas ou menos circulares, tal como fizeram aviões de papel e respetivos e até balões, como os das festas, não como meio de transporte, nem com outra intenção senão a de tentar imitar o que víamos e nos despertava mais curiosidade. Só muito mais tarde, nem sei bem onde, soube que um luso-brasileiro, no inicio do século XVIII um balão que poderia ser um meio de transporte.
Um projeto que nunca abandonámos e que teria sido a nossa grande criação espetacular, pois pretendia transportar pessoas, teve a sua intransponível dificuldade no fracasso em fixar quatro "raios" de madeira, em aros de pneus, aquela parte dos rebordos onde estão umas dezenas de fios de arame de aço, onde os pregos, para segurar os tais raios de madeira,  que no centro levaria o eixo, foi um obstáculo que nunca conseguimos vencer, aquela barreira de fios de aço.
Primeiro fracasso!
Quando cheguei a Lisboa, isto para não perder tempo com pormenores que nada trazem de melhoria ao discurso, já lá havia um pouco de tudo: bicicletas de corrida, sobretudo usadas pelos boletineiros da Marconi para entregarem os telegramas, dos quais eu gostava especialmente, quando nos seus arrepiantes slalons por entre as filas de automóveis, caótico por vezes, ultrapassavam todos, pela esquerda ou pela direita, raramente parando; havia também as pasteleiras, pesadonas, mas andavam; e as motos, de várias marcas e cilindradas, mas sobretudo as Harleys, as Norton e as BMW.
Das que mais gostava, pelo ruído que faziam em aceleração, eram as Norton quinhentos! Até pela velocidade, como uma única vez assisti, aquilo não era exercício para repetir muitas vezes       , um hoje motoqueiro, a descer a avenida Almirante Reis, ultrapassando tudo o que lhe aparecia pela frente, pela esquerda ou pela direita, até o perder de vista, já na Rua da Palma.
E havia os automóveis, de várias marcas e modelos, sendo os Citroen arrastadeira, os "carochas" da WW, os Fiat's seiscentos e os Mercedes, a maioria destes pintados de preto e verde, eram as cores dos táxis, os de maior implantação.
A certa altura apareceram as Vespas e a seguir as Lambrettas, mais vagarosas que as motos, mas muito menos barulhentas.
E dei comigo a "sonhar" com a entrada em Castelo Melhor, montado numa Norton quinhentos, a toda a velocidade e espantar aquela gente toda! O sonho era tão mal sonhado que não tinha ponta por onde se pegasse! A toda a velocidade a fazer a curva do Ferrão Barrão era mais que certo que me espalhava, não ao comprido como se costuma dizer, mas de lambas e atravessado contra a barreira do medo (o medo do Ferrão Barrão, único medo daquela zona e região) e já nem chegava a Castelo Melhor e como a distância, não sendo grande, o monte do carrascal fazia de barreira e ninguém se aperceberia e só seria encontrado, vivo ou morto, esparramado no meio dos calhaus!
Outro obstáculo que o sonho não teve em conta, tal era o entusiasmo, de que ainda havia a Cascalheira, que vai do ribeiro até à casa da minha tia rica e do meu padrinho, rico também, repleta de cascalho, por isso teria aquele nome, aquela que o senhor Bispo da Guarda desceu às pressas no jeep da Guarda Republicana, não creio que a gritar," oh da guarda" como se costumava fazer quando metidos em sarilhos e a levar traulitada, porque ainda não era usado o "quem m'acode", nem o "help, help", por um lado, por que um senhor bispo sabe o suficiente para calcular que, a uns oitenta quilómetros de lonjura, ninguém o ouviria, por muito forte que fosse o seu grito e se o fizesse, por estar acagaçado e com medufa, seria deixar mal colocada a Guarda que o acompanhava na fuga!
Quando a conversa descampa para aquela cena de um bispo a fugir como o diabo foge da cruz, se é que verdade é, na cruz ainda acredito, mas no diabo...diabos me carreguem se acredito em tal coisa e ainda por cima a fugir duma cruz, que nem é dito de que material era feita...enfim, fica assim porque senão ainda acabo por me perder outra vez! Estaria na parte do sonho em que esqueci a cascalheira, onde me espatifava contra um dos muros sem subir sequer vinte metros! Ainda se fosse uma daquelas que há hoje e que até voam com o motoqueiro em cima ou por baixo dela, então formava a carreira cá bem antes de chegar e assim que chegasse à ponte, que serve para passar duma margem para a outra do ribeiro, tal como cantou e acho que ainda a canta a pedido e para fechar o espetáculo, e que fala do casario e da serra do Pilar e da ponte que atravessa o rio ( é o Douro, mas não digam nada, deixem o artista cantar!), acabando ou estribilhando, para os que não saibam o que é ou para que serve uma ponte, " A ponte é uma passagem, p'rá outra margem" e não interessa para que lado é porque é para os dois, dava à mota aquele sinal,  não deve ser com as esporas como na equitação, a mota encabritava-se, como se cavalo fosse, levantava voo, bem acima dos muros laterais e poisava mesmo no ponto onde o Reinaldo leu o responso de boas vindas ao senhor bispo, meio a cair, meio a endireitar-se e em travagem fazia em meio peão a curva para a rua Larga, aqui sim já podia meter prego a fundo, atropelar duas galinhas que desfizeram em penas e gritos piados, mas logo se calaram e o moto acelera também, mal embateu num porco que fazia a sua caminhada diária por estar a ficar gordo e ficou, muito quieto, sentado e desmaiado, mesmo no degrau da oficina de sapataria do senhor Marcolino, pai do Acácio, aluno do latinório como eu, para usarmos quando o senhor bispo andasse a passear perto do altar mor, mas que se gorou quando eu comuniquei que não ía mais ao latim se era para pegar num dos cantos do manto!
Para quê esta gente há de levar uma capa daquelas a arrastar pelo chão e a encher-se de terra e lama, porque em Abril das águas mil o mais certo era haver lama e mais não seria porque terra mais não havia! Mas para que levei eu tanta reguada se o senhor bispo trazia com ela uma data me aprendizes que passaram uma boa parte do tempo a tirar da cabeça do prelado a boininha, experimentarem para verem como lhes assentava e voltavam a colocar na cabeça do chefe.
Retomando o "sonho" exibicionista, de entrar a toda a brida Castelo Melhor adentro, já o Sérgio tinha deixado o seminário e chegado a Lisboa, tendo sido o meu tutor quem tratou de lhe arranjar emprego e por ali andámos a encontrar-nos ao fim de semana à tarde em casa do nosso tutor, o meu mano Licínio.
Foi num desses fins de semana que resolvemos ir tirar a carta de bicicleta, começando pela condução primeiro e depois...se houvesse depois, se veria! O campo grande era quem tinha o monopólio desta escola, com sede, stand e os veículos, na parte esquerda de quem vai para o Alvalade, a casa do leão; e tinha que ser daquele lado, porque tinha carreirinhos alcatroados para fingirem que não era terra batida, bem melhor ou mais certo seria chamar-lhe terra pisada, andando, com sebes em bucho aparadas, para proteger a relva e alguns canteiros, outro palavrão que merecia melhor atenção dos linguistas, com umas flores ou uma palmeira, desenhando o bucho avenidas, ruas e pequenas praças, todos sabem que praceta é uma praça pequena, que também podia ser pracinha, mas pracinha não soa bem, fica a praceta! Becos não tinha, travessas tinha várias!
Só podia ser do lado esquerdo por que do lado direito eram os elétricos quem punha e dispunha, mas os automóveis que seguiam para o aeroporto também se escapavam, só os mais espertos, como em tudo, evitando o maior tráfego da parte central da avenida e no centro do Campo Grande, era um bom campo antes de ser o que era e do que é hoje! Começava onde acabava a Avenida da República, há cada estranha coisa...para que a Republica, que nunca se soube muito bem o que foi ou o que ainda hoje não é, tal como a democracia, que todos usam como quem usa uma marca de sapatilhas e mais não saberão, mas usar democracia dá um ar distinto, leve, despoluído, elegante mesmo! Entre o fim da República e o começo do Campo Grande semearam, há muitos anos, umas sementes de escultura e quando eu cheguei a Lisboa e fui para aqueles lados, já era do tamanho que hoje tem, um tal canteiro em ponto maior na altura e com uma estrada em toda a roda, porque o campo, como era grande, podiam dividi-lo em vários talhões, o da esquerda para a escola dos duas rodas, ao centro umas árvores grandes, plátanos e choupos que se dão bem e crescem depressa e do lado direito a tal estrada para os elétricos, amarelos, pendurados de uns cabos elétricos, sargentos elétricos ainda não havia, e oficiais elétricos também não.
O Campo Grande era do Largo até à Alameda das Linhas de Torres! Esta é, de todas, a denominação mais abstrusa que nas redondezas existe! Alameda, segundo ensinam as Palavras Cruzadas é uma avenida com álamos, nunca vi lá tal árvore; das linhas de torres que me digam porquê?! As linhas que por lá passam são as dos elétricos que vão para a Calçada de Carriche e de Torres, então é um desastre! Quais torres ?! Há, que eu saiba, as torres das igrejas, as Torres Novas e Velhas, umas perto de Lisboa e outras já no centro do País, a descambar para os lados de Espanha! E desde há uns anos há as Torres das Amoreiras que nasceram para ver se calavam e aquietavam um senhor dos desenhos, que foi o iniciador de toda a bela arte urbana das cidades, por todo o lado se vendo letras e bonecos um tanto pró moderno plasmadas nos muros disponíveis das urbes. O tal pai das pichagens, talvez por ser gente da alta, não pintava muros, mas tudo o que fossa fachada de prédio (ou será empena?), quanto mais alto melhor, lá vinha uma pintura daquele Senhor! Alguém devia estar farto das fachadas coloridas e das tintas que eram gastas e vai de encontrar emprego para o riscador e foi assim que o Senhor se entreteve a desenhar as Torres das Amoreiras, mais parecendo silos para automóveis do que local onde vive e trabalha umas largas centenas, ou mesmo milhares de pessoas!
Eu e o Sérgio fomos até ao Campo Grande e alugámos o veículo por uma hora, não para tirar a carta, era só para aprendermos e a Norton viria depois. De que forma não sei: dinheiro era coisa que não tinha, mas eu estou agora convencido de que o sonho ou era isso mesmo ou não tinha raízes tão profundas. Vamos ver se esta dúvida deixa de o ser. Sempre gostei de ter dúvidas para ter o prazer de as tirar!
Fui o primeiro a ensaiar, talvez por que o Sérgio devia saber já alguma coisa que terá aprendido lá no seminário. Numa das travessas das pequenas avenidas, ladeadas de bucho mal tratado, pela falta de jardineiros e talvez também pelos estragos causados pelas bicicletas e pelos seus condutores armados em Nicolau e Trindade, já desistidos da vida e outros mais próximos e igualmente bons do pedal, o Alves Barbosa, o Ribeiro da Silva e o grande Joaquim Agostinho, estes dois também já nos deixaram, o Silva num acidente de motorizada e o Agostinho em plena prova, por se ter atravessado um canídeo no trajeto e dos danos provocados pela queda não mais recuperou! O Sérgio segurou a bicicleta até eu ficar em equilíbrio instável, mas como era a descer...pois era...a descer, porque assim que me largou o selim, "tem-te, não caias" a bicha entrou em desequilíbrio e quando o Sérgio viu que eu ia experimentar a qualidade do alcatrão de pedrinhas à vista, começou a gritar: "trava, trava"  e eu sem saber onde tal coisa estava, fiz-me ao terreno, eu para a direita, a bicicleta para a esquerda, eu enfiado de cabeça nos arbustos e ela encostada a eles um pouco atrás!
A bicicleta não sofreu danos e eu fiquei um pouco mal tratado; as calças rotas num dos joelhos, o casaco único com dois rasgões, aquele que a pensionista do Largo de Santa Bárbara comprou para me ressarcir do que o hóspede fumador me tinha rapinado depois do incêndio do colchão.
Ali dei por terminada a minha aprendizagem, ficando o Sérgio a gastar o tempo que tínhamos comprado e pago! Longe vai o tempo em que o tempo se comprava! Ou continuará a ser comprado?
Mais tarde, no Largo de Santa Bárbara, que sempre me acompanhou e me livrou das trovoadas, passavam os elétricos que vinham da baixa e iam para o Arco do Cego (estes nomes, ai esta confusão! Para que um cego queria um arco, muito mais aquele onde arco não havia, só podia ter sido sacanice, enganarem o invisual! Ou seria para apontar o dedo a alguém daqueles sítios, que armava em esperto e então o Cego era para justificar o aforismo de que o pior cego é o que não quer ver!), para Campolide e Amoreiras e regressavam os que tinham ido até ao Cego, isto para frisar que havia dois trilhos de carril, curvando mesmo no Largo, os que desciam da Passos Manuel e os que subiam da Egas Moniz para a Passos Manuel!
Era naquele ponto que aliviavam o travão os que desciam e aceleravam os que subiam, sofrendo os carris um desgaste muito maior que nos troços planos; um funcionário da Carris a que designavam por agulheiro, espalhava areia para criar aderência e possibilitar a marcha, não ficando as rodas a patinar em vez de andar.
Foi nesse ponto que uma Vespa, com o condutor e um pendura, vinda da Egas Moniz para subir em direção a uma das ruas, a Passos Manuel ou Conde Redondo, hoje Jacinta Marto, ao iniciar a curva acelerou para iniciar a subida, derrapou nos carris, perdendo o equilíbrio e o controlo, ainda tentou reequilibrar a Vespa, mas acabou por tombar para o lado direito, atirando o pendura que foi embater no lancil da placa triangular ali existente e como não levava capacete, foi a cabeça a embater diretamente na esquina do lancil; o crânio estalou como uma melancia madura quando cai, jorrando sangue para todo o lado, a massa encefálica a espreitar pela brecha e o acidentado deu dois esticões com as pernas e ficou imobilizado para sempre! Um horror!
O condutor a quem a Vespa tinha abandonado, resvalando pelo alcatrão em direção ao café, ao levantar-se, de calças rasgadas e sangue a ver-se pelas janelas dos rasgões, ao olhar o colega e o seu estado, desatou aos berros e a correr aos baldões em direção à rua de Santa Bárbara até perder o equilíbrio e cair, a desfazer-se em pranto.
Decidi naquele instante que não iria de Norton 500 a Castelo Melhor, nem a parte alguma e decidi também que não mais tentaria aprender a andar de bicicleta. E não era por medo, até porque dois ou três anos passados, já na Rodrigo da Fonseca, andei, como pendura, na BMW 250 do Manel leiteiro e até uma noite fomos ao estádio Alvalade ver umas provas de perseguição: entre um Lotus e um Mercedes 300 SL, um Iseta e um Fiat 500 e entre a Norton e a Harley, sendo a Norton conduzida pelo campeão nacional, Ângelo Dinis, amigo do Manel leiteiro que lhe perguntou se me dava uma boleia até Campolide, onde iriamos beber uma cerveja na Goa.
Foi o fim! Não mais andaria de Norton e menos com o campeão, que se notabilizou com a moto Triunph 500.
Mais tarde, voltei a andar, não em alguma das de grande cilindrada, mas numa BMW 250. Já acabado o curso em Vendas Novas, fomos mandados para Leiria uns sessenta, apenas eu "especializado" em munições de artilharia e a maioria de campanha, comunicações e outras. Entre eles veio o "Niki", nunca o conheci por outra designação, mas era inevitável conhecê-lo pela sua genialidade em transformar riscos, por mais retorcidos que fossem, em figuras de banda desenhada ou outras. Horas foram passadas, com vários riscadores juntos ao génio, uns fazendo riscos e ele dar-lhe formas de sua imaginação e nunca demorando mais de cinco minutos.
Nascido em Beja, capital do Baixo Alentejo, filho de um comerciante, para ali se deslocava todos os fins de semana na sua BMW, muitas vezes dando boleia, até Vila Franca de Xira a um colega que partilhava o mesmo quarto, alugado na cidade, junto a uma taberna e o conhecido fotógrafo, Fabião. Por qualquer razão que nunca soube, nem tinha que saber, o Niki e o colega desentenderam-se, ficando o Niki sozinho no quarto.
Sabia que também eu, sempre que podia, fazia o fim de semana em Lisboa, onde ia trabalhar no mesmo estabelecimento onde trabalhei até ir cumprir o serviço militar, recebendo uma quantia que não recordo e alguns produtos alimentares, nomeadamente conservas, para complementar algumas refeições, por ser o rancho de muito má qualidade, havendo uma das refeições que de segunda a sexta-feira era sempre dobrada com feijão branco, miudinho e difícil de comer por ser tão duro.
Foi o Niki quem se ofereceu a dar-me boleia até Vila Franca, tal como fazia com o anterior ex-colega de quarto, uma vez que ele passava para a outra margem do Tejo, pela ponte ali existente a caminho de Beja.
Num dos fins de semana, mal saímos de Leiria, começou a chover, uma chuvinha mole, que foi aumentando e quando chegámos ao Vale Gracioso já era uma chuvada bem densa que nos aconselhou a resguardar no Mosteiro da Batalha, já completamente encharcados e o frio a fazer-se sentir; ao cabo de quase uma hora, sem parar de chover, mal abrandou regressámos a Leiria, ele ia mudar de roupa e regressava à estrada e eu, ficaria por Leiria porque não tinha outra fatiota de reserva.
A última viagem de BMW de Leiria para Lisboa, não teve um início pacífico; saímos frente à entrada para o Parque da cidade como era hábito, a cerca de cem metros tinha que ser passada a ponte frente Hotel Lis. Era a antiga Estrada Nacional número um, por ali passando todo o tráfego que vinha de Lisboa para o Norte, até ao Porto e no sentido inverso. A ponte era estreita para os camiões de carga fazerem a curva para entrar ou sair da ponte, muitas vezes passando por cima do passeio, tendo sido protegido o lancil com uma chapa metálica que, devido ao uso frequente, se foi desgastando ao ponto de abrir uma fissura no vértice do ângulo, por ser a parte mais atingida.
O Niki fez-se à curva, bem encostado ao lancil chapeado, de tal modo que o meu sapato direito, apoiado no pedal e com a biqueira ligeiramente voltada para fora, a sola entrou na fissura da chapa que, como uma faca, cortou toda a cosedura ficando desligada do corpo do sapato! Parou logo à frente, no início da Rua Machado dos Santos e ambos desatámos a rir, ele a gozar o seu naco ao imaginar-me a ir de Vila Franca para Lisboa, com a sola a fazer cloc, cloc, a cada passo dado! O meu riso, menos entusiástico, estava já misturado com a busca da solução. Foi ele ao mercado de Santana pedir um bocado de guita, atei o sapato e seguimos para Vila Franca, com o ar a entrar pela pequenina abertura e a deixar-me o pé a ficar desagradavelmente frio, mas fizemos a viagem, tirando o bilhete até Sacavém, onde saía e voltava a entrar na carruagem apinhada e sempre pela porta mais distante do revisor, fazendo sempre a viagem de borla, como aprendi em Sacavém durante o tempo do curso, cuja duração foi de cerca de seis meses.
Ainda recordo duma outra viagem, de Leiria para Fátima e regresso, no fim da tarde de doze de Maio, por não sabermos o que fazer e ele nunca ter ido a Fátima. Ainda não tínhamos chegado ao lugar de Cardosos, quando um furo na roda traseira, um pequeno furo, mas que nos impedia de prosseguir naquelas condições. Para trás não queria voltar e a solução que encontrou, aquele também não ficava perdido em cogitações inúteis, foi a de fazer sinal ao primeiro motociclista a quem pediu a bomba do ar emprestada e lá atestou o pneu, ao mesmo tempo que combinava com o senhor a dar-nos a ajuda enquanto pudesse e que foi até Fátima, sendo esta, também, o destino do simpático motociclista! Consistia no empréstimo da bomba as vezes que fossem necessárias; nós adiantar-nos-íamos até o pneu aguentar, esperávamos por ele, enchíamos o pneu, devolvíamos a bomba e andávamos mais uns quilómetros e em três paragens de “oração” chegámos ao destino: O simpático senhor ainda foi connosco a um vendedor de pneus que se comprometeu a remendar o furo, não cobrava nada “vocês andam sempre tesos!”, disse o comerciante e ainda nos facilitou a visita ao dizer “vão descansados que eu deixo a moto além” apontando um telheiro onde guardava os pneus velhos! Agradecemos ao motociclista e ao comerciante de pneus e cada um foi à sua vida!
Havia muita gente nas ruas a deambular, vendo o pouco que havia para ver naquela época. A noite estava amena, as ruas muito iluminadas, era o primeiro dia das celebrações anuais, o dia da primeira epifania!
Numa das ruas bem iluminadas e com gente a cruzar-se sem pressas, vi a uns metros à frente, de costas, uma senhora, aparentemente jovem, vestindo uma saia muito travada, era esta a forma como era designada, num tecido verde, todo aos “borbotos” e que se meneava duma forma que seria normalíssima, mas que me pareceu um pouco fora do comum, estava farto de ver aquelas saias em Lisboa, bem incómodas nalgumas situações! Apenas a que mais me suscitou essa ideia de incomodidade: estava, com outras pessoas, a esperar a chegado do autocarro para a Praça do Chile! Entraram duas pessoas, sem problemas, mas uma terceira contorcia-se para chegar com o pé direito ao estribo para depois se elevar com a ajuda do pequeno corrimão da porta! Não conseguia de maneira nenhuma chegar ao estribo e não tomava a iniciativa de subir a saia acima dos joelhos, talvez por saber que só passaria descosida! Como não atava nem desatava, peguei-lhe pelas axilas e com ela a ajudar, entrou e a seguir todos os que esperavam! Não me recordo se agradeceu ou refilou, era coisa em que não pensava nem penso hoje! Mas voltemos a Fátima…!
Recordado da cena do autocarro, em Lisboa, dei um pequeno toque com o cotovelo no braço do Niki e comentei: de certeza que aquela agitação verde que ali vai não veio cumprir promessa nenhuma! “É verdade!” , acrescentou ele! E nesta atitude descontraída, quando passávamos pela saia azul, eu pela esquerda e o Niki pela direita, dei uma peque palmada e de imediato a modelo de saia verde, em plena passerelle, rodou para a direita e deu uma valente estalada na cara do Niki e continuou! Nós é que parámos, com o Niki com a mão a cobrir face esquerda e eu a rir da cena e ele a dizer, fingindo uma zanga que não tinha: “quer dizer, tu palpas o cú à mulher e quem leva uma estalada a sério, sou eu!”
Nunca pensei que tivesse esta reacção, no meio de tanta gente, alguns de boca aberta e um deles, juiz de primeira instância, perguntou, olhando para mim e para o Niki: “mas que raio se passou? Pergunta o curioso. Nada de importante, respondi, apenas uma pequena confusão Já sanada!
Cumprida a promessa de ir a Fátima na sua moto e espreitar a multidão, de vela na mão e a orar à Virgem, cada um por seu motivo, outros sem motivo algum, no ar pairava um forte cheiro a cera e uma zoada como se ao longe estivesse a ser executada uma sinfonia em que só os baixos entravam. A primeira vez que estive na Cova da Iria foi em missão de apoio aos peregrinos, através da Bateria de Referenciação, eleito pala escola de Meteorologia, juntamente com outros, um de cada especialidade e sempre gostei do ambiente místico que enchia todo o recinto e transbordava para fora dele.
Quando achámos que estava na hora de regressar fomos buscar a moto, viu se estava tudo bem com os pneus e mal entrámos na estrada e ligou os faróis, nada sucedeu, repetiu a operação e o resultado foi o mesmo! E agora, camarada?!
- Temos de a levar para Leiria e como luz não temos, vamos à boleia! respondeu.
Á boleia?! De quem? perguntei.
- Já vais ver! Respondeu, naquele tom de voz calmo e de acentuado sotaque do Alentejo.
Mal apareceu o primeiro carro arrancou e tentou manter-se a uma distância que permitia alguma visibilidade e assim percebi o que era ir à boleia.
O automobilista, deve ter pensado que íamos a persegui-lo e acelerou, depressa ficámos sem boleia; mas logo veio outro, que nos ultrapassou depois de fazer os respetivos sinais e continuou, connosco atrás, mas em cada curva ficávamos sem luz e tínhamos de parar, perdendo a boleia. Assim percorremos uns dez quilómetros ou mais, até que aparece um terceiro, ultrapassou-nos e parou logo à frente e saindo do carro veio ter connosco e perguntara, mesmo antes de chegar junto a nós:
- Há algum problema, amigos?
Estamos sem luz, somos militares, viemos de Fátima e vamos para Leiria.
- E como chegaram até aqui? Pergunta, com ar de espanto.
Viemos à boleia, atrás dos automóveis, até perdermos a proximidade e termos de parar.
- Mas que temeridade! exclamou. Vamos fazer o seguinte: eu vou à frente, modero a velocidade e nas curvas abrando para não ficarem sem luz! Moro nos lugar dos Cardosos, a uns quilómetros de Leiria, e como não é tarde, vou convosco até à entrada de Leiria!
Isso é uma grande maçada, nós nos desenrascamos! Para Fátima foi um furo do pneu traseiro, tivemos que ír à boleia de um motociclista que nos emprestava a bomba para meter o ar indispensável, andávamos mais uns quilómetros e esperávamos por ele, sempre assim, até Fátima!
- Foram cumprir alguma promessa? perguntou, a sorrir!
Não. Como em Leiria não havia nada para fazer e o camarada alentejano nunca tinha ido a Fátima, resolvemos ir, aproveitando a data e assim ele veria como é aquela terra em dia de Celebração!
- Então foi castigo! Disse o nosso salvador, rindo!
E retomámos a marcha atrás do automóvel, até ao centro da cidade, onde nos despedimos do anjo que devia estar em Fátima e nos seguiu!


                                                           II


O senhor Alfredo, meu último patrão em Lisboa, comprou, de sociedade com um dos irmãos, comerciante do mesmo ramo, com a intenção de economizar, no transporte diário dos produtos adquiridos no mercado da Ribeira e no Mercado Abastecedor das Frutas, um carro antigo, deixando de estarem dependentes da empresa que o transporte e entrega no domicilio, a partir daqueles mercados.
Foi uma calamidade! Nenhum deles tinha carta de condução quando se decidiram pela compra, devendo tê-la conseguido, como tantos o terão feito, subornando alguém. Não que eles o tenham dito, mas quando alguns encartados viam as aselhices que ambos faziam, comentavam, em linguagem chocarreira: "foi comprada, hein?!" e eles riam.
Mas ao cabo de uns meses de asneiras e muitos treinos à noite, quando havia menos trânsito, lá foram acertando com a condução e diminuindo o perigo que no representavam. Os danos provocados a terceiros não foram muitos nem graves, mas o "chaço" em que foram aprendendo foi de tal modo mal tratado que certo dia deixou pura e simplesmente de andar! Encostou à box e por ali ficou.
Resolveram comprar outro veículo e a escolha recaiu numa carrinha Peugeot 203, de caixa aberta, que ainda sofreu a bom sofrer. Por vezes eu transitava ao lado do condutor, isto sucedendo depois de o senhor Alfredo deixar o irmão e os produtos no Bairro Azul e nós seguíamos para a Rodrigo da Fonseca. Foi assim que, com ele a gerir os pedais e a caixa de velocidades, eu aprendi a manobrar o volante e ganhei alguma noção de conduzir.
No ano seguinte veio a tropa e em Angola, sem carta de condução, guiei jipes dentro do quartel e uma vez fora dele, quando fomos levantar seis jipes novos, munido de uma folha de papel tamanho A cinco e apenas o carimbo da Unidade, ao Deposito de Material e Manutenção! Como um dos condutores estava em estado de não poder conduzir, peguei eu no  volante, com o condutor ao lado e de lado tombado, percorrendo cerca de um quilómetro, distância entre o Depósito de Material e o GACL. Como não houve tempo para aprender a usar a caixa de velocidades, o percurso foi feito sempre com a primeira engatada!...
Mas no carro do furriel Carvalho, colega do RACL, um Cônsul de três velocidades, com alavanca no volante, conduzi só ou acompanhados, várias centenas de quilómetros, sem carta de condução, também por que o policiamento ser quase nulo, sobretudo à noite e mesmo de dia não abordavam muito os militares. Só em caso de acidente é que acorriam, mas logo passavam a pasta mal outro militar aparecia e assumia a responsabilidade. Era uma balbúrdia bem organizada! E eu tão inapto era que, com centenas várias de quilómetros percorridos, não conseguia meter a terceira velocidade sem arranhar.
Para evitar algum percalço a mim ou ao Carvalho, dono do Cônsul, decidi aprender para fazer exame de condução; dei a entrada então exigida, mil e quinhentos angolares, mas à quarta lição o proprietário da escola e dos carros, naturalmente, foi detido, acusado de estar a exercer uma sem que estivesse legalizado. Lá se foi o sinal e a carta de condução.
A passagem pelo Tribunal Judicial e pela Instrução Preparatória, logo após o meu regresso de Angola, onde se investigavam a maior parte dos crimes, exceto uma meia dúzia deles, ou nem tanto, que eram da exclusiva competência da Policia Judiciária, a grande maioria dos investigados eram devidos a acidentes de trânsito, de que resultassem ferimentos ou a morte.
Foi tal o número de estropiados  que foram ouvidos, ou no Tribunal, no Hospital ou no domicilio, foram tantas as autópsias a que tive de assistir que, se já era pouco o entusiasmo pela condução, este passou a ser quase nulo.
E de tal forma foi o trauma que só no ano de noventa e três, quando a empresa faliu e a eminência de desemprego era real é que decidi obter a carta de condução, por poder vir a ser útil num novo trabalho.
Inscrevi-me numa das Escolas de Condução e fiz o exame de Código sem dificuldade, mas quando passei à fase da condução os problemas logo vieram ao de cima: o instrutor que teve de ser trocado por outro; no exame o carro que nos foi distribuído tinha problemas de embraiagem de tal ordem que teve de ser levado à oficina antes de os exames terem começado, acabando por chumbar, tal como o que se seguiu a mim e no mesmo carro.
Fui aconselhado, pelo segundo instrutor, a mudar de escola por me terem "tomado de ponta" e seria muito difícil eu passar enquanto o ambiente estivesse como estava.
Mudei, fiz o exame sem grandes problemas, mas sempre tive pouco prazer quando conduzi. A viagem mais longa que fiz foi à Costa Vicentina e regresso, não tendo ao todo conduzido mais que dois mil quilómetros.
Dez anos depois de obtida teria de a renovar, o que não fiz e assim terminou a minha aventura no caso dos transportes.

Reis Caçote
2002/dig.11/14 


















                       




                             


                                                

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

DE SANTA BÁRBARA, O LARGO

A GRANDE CIDADE ME RECEBEU, LUZES ACESAS, ESTAÇÃO DO ROSSIO, A POLICIA ME ESPERAVA: O LICINIO, MEU IRMÃO DO MEIO, POLICIA DE GIRO E POR FIM, SINALEIRO, MEU TUTOR DEFIM DE SEMANA!
- NO LARGO DAS OLARIAS, FORMEI-ME EM AVIADOR ! ACABADO O CURSO, FUI AVIAR PARA O 
- LARGO DE SANTA BÁRBARA, UMA OUTRA FORMAÇÃO!

FICOU, ASSIM, REGISTADO:


               DE SANTA BÁRBARA, O LARGO

                                       I

Quando, passado cerca de um mês da minha chegada a Lisboa, “aterrei” no Largo de Santa Barbara, o que primeiro me veio à ideia, num misto de susto e humor, foi a “quase oração” que aprendi, lá nos confins da Beira Alta, quando os relâmpagos iluminavam fugazmente a festa das nuvens e o estrondear dos trovões ecoava pelas escarpas dos montes, e que era:
     “Santa Bárbara bendita, que no céu estás inscrita, em papel e                 água benta, livrai-nos, Senhor, desta tormenta!”
Repetida no intervalo entre dois trovões, quando a procissão das nuvens ainda estaria no adro! Quando ela estava já bem perto e as dores intestinais das nuvens eram uma urgência meteorológica, a oração era interrompida, muitas vezes ficando só pela Santa Bárbara, outro raio iluminava a noite e logo o choque em cadeia na autoestrada do céu se fazia ouvir, móveis a serem arrastados e atirados uns contra os outros numa confusão apocalíptica, sendo a oração substituída por “ai valha-nos Deus”, “ai valha-nos Deus” não por perda de confiança na Santa Bárbara, lá no alto, fechada na sua pequena orada. E a prova de que a protetora contra as iras atmosféricas estava atenta, mal o resultado do choque em cadeia das nuvens se aproximou da sua casa, os deuses se adoçaram seus maus humores e tudo parecia voltar à sua frágil normalidade, mas não raro era recomeçar tudo e o medo também.

                                                 II

Era Outubro. Os dias vinham minguando desde Junho e a temperatura tinha já feito esquecer o Verão.
O senhor João Carlos Fernandes, acidentalmente meu patrão, tal como eu fui seu acidental empregado, era baixote, a ensaiar uma calvície sem brilho, vermelhuço demais para poder ser considerada uma cor sadia, parecendo estar sempre em estado de apoplexia; caminhava em passo miudinho, biqueiras dos sapatos e dos pés exageradamente voltados para fora, tal como os patos, mas descalços, característica que mais tarde notei em todos os indivíduos, ou quase, que passaram longos anos atrás de um balcão, ensaiando corridinhas, que logo eram suspensas, entre as prateleiras e o balcão ou entre a montra que muitas vezes era no passeio e na entrada do portão, dali até à balança; os olhos eram pequeninos, mas pareciam querer saltar das órbitas a cada instante, o que felizmente nunca sucedeu.

                                                 III

No dito Largo, de Santa Bárbara, para uns quantos estreito, os de largos horizontes, desembocavam ou embocavam, é difícil distinguir qual é o lado da boca das ruas, duma forma “afadistada”, a rua de Arroios, de há muito sem arroios, só prédios de ambos os lados e uma serração de madeira lá mais a norte, de onde ela vem e se queda, sem ousadias ou humildades, no Largo dito de Santa Bárbara;
A Rua de Egas Moniz, bem pequena rua para homenagear tão ilustre cidadão, que liga o Largo à avenida do Almirante Reis, esta sim, grande e comprida, para que o Almirante pensasse no seu amplo mar, indo do Socorro à praça do Areeiro, hoje de Francisco Sá Carneiro (de tudo tem este finado cidadão, que um brutal acidente de aviação roubou à politica deste pequeno País; tem Praças, Ruas, Pontes, Avenidas, aeroporto e…ficamos por aqui, é muito ter para quem nada pode usufruir, a não ser o que todos nós temos garantido: o eterno descanso!);
A Rua dos Anjos, ficam sempre bem juntos aos Santos ou Santas, neste caso era a Santa das Trovoadas, revelando uma saudável forma de convivência, sem disputas de lugar mais próximo de Deus, o que seria, no mínimo um contra senso, uma vez que Deus é omnipresente, tudo e todos à mesma distância e tudo e todos Deus sendo, eu incluído por que não sou um filho, mas também não sou de Deus enteado.
Os anjos são no céu as rosas brancas dos altares terreais, para gáudio Divino. A Rua dos Anjos, dizia, começa ou acaba, emboca ou desemboca na Avenida do Almirante, partindo do Largo que tento trazer à ribalta e vai obliquando, não sei por que razão, talvez para encurtar caminho e se juntar ao almirante mesmo em frente ao que foi o cinema Lis. A avenida do Almirante é comparada ao meu Rio Douro que engole o outro meu Rio, o Côa, alguns dizem que é o abraço de irmãos, mas acho que é boa vontade e alguma conivência com a má matéria de comparação, agora nada tem a ver com as ruas e largos; muitos irmãos teria o Douro desde a serra onde nasce lá em terras de nuestros hermanos até ao Porto onde pelo mar Atlântico é por sua vez tragado; insisto no engolido, comparando com o que se vem passando com as grandes superfícies comerciais que vão engolindo todos os mais pequenos, engordando à custa do seu sacrifício e só aguardo o dia em que encontrem o seu mar que sei qual será, mas não digo.
A Rua do mesmo nome do Largo, Santa Bárbara, começa ou acaba no Largo, entre velhos prédios e o resto de uma duna do lado direito do inicio da rua, indo “desaguar” no Largo dos Passos da Rainha, esqueceram-se de dizer qual, mas deve ter sido devido à pequenez do largo que, mal começa no fim da Rua da Santa Bárbara, logo é absorvido ou assimilado pelo dos Mártires da Pátria, espaço interessante este, amplo e bem iluminado pelo Sol por serem de pequena estatura os prédios que o delimitam, alguns destes de arquitetura rica e sólida; os mártires da Pátria, que tantos foram e continuam outros, bem merecem, na Capital do Reino, um espaço com esta beleza e equilíbrio;
A Ocidente, num plano de acentuada inclinação, acaba ou começa a hoje chamada Rua de Jacinta Marto, do quartel da unidade de Cavalaria da Guarda Nacional Republicana e não sei por que motivo era designado também por Cabeço do Bola. Esta designação só ouvia e não muitas vezes, da boca das residentes mais antigas, de língua afiada algumas delas, quando se referiam a outra pessoa com quem andasse de “candeias às avessas” ou com ela discutiam: “ah, se o teu problema é esse, vai ao Cabeço do Bola que os tens lá de todos os tamanhos!”. Esta Rua, que antes foi de Joaquim Bonifácio, prolonga-se até ao alto do Conde Redondo, onde, do lado direito, está situado o Hospital de Dona Estefânia e que seria a dona daquele belo espaço com o seu palacete onde se terá iniciado a utilização como unidade de doença e algumas de saúde e mesmo no limite, também do lado direito, foi construído o edifício para a Policia Judiciária e que ainda por lá anda!
Não lavei lá atrás o meu protesto contra esta arrogância dos edis que, só porque pensam que ao serem eleitos passam a donos e senhores de tudo o que é municipal ou municipável decidem, sem consultarem os anteriores usufrutuários se prescindem ou não do direito que lhes cabia, se não por herança ao menos respeitando o direito que a Lei de usucapião consagra a quem, durante umas três dezenas de anos, utiliza a propriedade, dela cuidando, usufruindo e pagando os seus impostos! Não tenho nenhuma simpatia especial, foi fazendeiro lá para Campinas no Brasil e chegou a Barão e Visconde de Indaiatuba, Campinas, Brasil, devendo ter sido dele a bela propriedade do Hospital; ou talvez do multimilionário grupo Monteiro Aranha, por ele iniciado, lá no Brasil! O senhor Visconde até podia nem se importar, tanto mais que era para o nome de uma das mais mediáticas, mais a irmão Lúcia dos Segredos, e o Visconde, sendo maçónico, até devia querer mostrar abertura ao pessoal da Opus Dei! Mas isto são considerações que outra intenção não têm do que eu acho, talvez mal, desta falta de respeito pelos que já se foram, tanto mais que a irmã Jacinta Marto nunca revelou tendências de querer ser grande proprietária nem outra qualquer, mesmo a de ser santa, pois a idade com que foi testemunha da aparição era uma criança que guardava umas quantas ovelhas nos montes da Cova da Iria. Não terá ficado muito claro o meu protesto, mas às escuras também não ficou!
No ponto onde a anterior rua começa ou acaba, começa ou acaba outra, fazendo uma perpendicular ou lado do angulo reto, a de Passos Manuel, paralela à Rua de Arroios, a primeira de que falámos, com seu prestigiado Liceu e seus edifícios a mostrarem a bela azulejaria portuguesa!
Este era o cerco do Largo que deu origem ao nome do texto, o de Santa Barbara.

                                                 IV
Se a forma pouco linear, como muitos gostam, do enquadramento paisagístico do Largo de Santa Bárbara é notória, já do ponto de vista religioso e da cultura é digno de nota:
- À Santa Barbara acorreram os Anjos, não os arcanjos porque serão poucos e têm que estar sempre à disposição de Deus! Logo, não poderiam acudir a todos os santos, mesmo que da Santa das Trovoadas se tratasse; os anjos, em geral, como um coro de conselheiros, estão sempre prontos a dar uma ajuda, seja a quem for; mas como eles só por si não bastassem, alguém da terra entendeu que devia levar-lhe mais uma boa vizinha, a testemunha do milagre de Fátima, uma dos três, também eles destinados a apaziguar, em nome do Céu, não as trovoadas das nuvens, mas outras, não menos assustadoras, como o foram a Rússia, mas isso é outra conversa que não irá aqui ser tratado, podendo alegar que tal assunto nada tem a ver com a Santa Bárbara e da tão temida Rússia já pouco resta, para bem do mundo e descanso dos santos todos, vivos e finados; o perigo agora, sendo o mesmo, parece ser de outra ordem, que também não vai ser aqui tratado, já que a vida continua e a história faz-se com a vida em movimento. Ou como o guru da Democracia portuguesa, ainda no activo, o caminho faz-se, caminhando! É um génio este líder!
Mas também os humanos como tal, se juntaram a Santa Bárbara: Egas Moniz, que tanto ser o cientista de renome mundial, prémio Nobel da Medicina, como o respeitável fidalgo do mesmo nome, do principio da nacionalidade, conselheiro do Infante, homem de honra impoluta que, segundo a história, terá ido ajoelhar-se aos pés do Rei de Castela, por o seu discípulo não ter cumprido a palavra dada, em nome da qual ele empenharia as suas barbas! É de homem! Hoje…?!...nem barbas e muito menos cumprir a palavra, já que da honra os tempos mudaram o conceito e as barbas qualquer cidadão as pode usar e até abusar! Tempos…!
E o Passos Manuel, português do seculo XIX, político e mestre no ensino e na economia de então, hoje sem aplicação prática, bem mereceu uma rua como a que lhe foi destinada, nesta partilha um tanto “trolha” que a edilidade vai aplicando.

                                                 V

Não poderá Santa Bárbara queixar-se da ilustre companhia que a envolve e nela converge todos os dias, nesta época do automóvel, eléctrico, autocarro e a maioria a pé; há não muitos anos todos o faziam desta ultima forma: a pé, calçados e descalços, até que a lei proibiu que na rua andassem pessoas descalças, ficando sujeitos a coimas os que prevaricassem. Os burros e machos, melhor dizendo, o gado de raça asinina e muar, para não cair na peca forma de excluir burras, eram os transportes mais comuns; o eléctrico e o automóvel era novidade de não muitos anos! Alguns, poucos, com seu habitual ar marialva, lá se passeavam ou pavoneavam, montando lustrosos e bem arreados equinos!
Do que não poderá Santa Bárbara é dos seus utilizadores actuais, residentes ou simples passantes.
Embora o acordeão, não sei porquê, mas desconfio, nunca terá sido um instrumento que entusiasmasse multidões populares, nem mesmo o restrito grupo dos ditos eruditos, como é o caso do piano ou do violino, por exemplo, mesmo estes tenho alguma dúvida que seja genuíno o seu gosto, alguns conhecendo que é só por vaidade, por ser fino gostar de violino! E tanto assim será que a fórmula usada para definir a linhagem de alguém, que não dava nas vistas, era: toca piano e fala francês!
Mesmo com estas condicionantes o certo é que Santa Barbara, naquela época, dava guarida domiciliar a uma das mais notáveis executantes de acordeão: Eugénia Lima.
Havia, quase de certeza, outras pessoas de valor no campo das artes e da cultura em geral, mas terei passado ao lado delas     com a pressa do costume, a que o ritmo de trabalho de um registador e distribuidor de mercearias ao domicílio, outro não permitia. Muitas vezes nem chegava!

                                                 VI

No iniciático contacto em pleno Outono, as noites avizinhavam-se depressa do meio-dia, ou doutra forma, os meios-dias é que eram vizinhos apressados das noites e com estas tudo mudava: os estabelecimentos comerciais fechavam às dezanove, excepto a taberna e a fauna era outra que dominava o Largo e vizinhança!
A Fábrica Portugal, que produzia quase só fornos a lenha e dominava já a técnica dos fogões a gás, o das Companhias Reunidas do Gás e Electricidade, empenhada em levar luz e gás a todos os lares de Lisboa, até há algum tempo quase só usado nos candeeiros da via pública, com seus isqueiros na ponta de um pau ou cana e que um técnico ia acendendo um de cada vez até ficar iluminada uma boa parte da cidade...? Claro que não podia ser um só manobrador dos isqueiros, senão levava a vida de cana na mão e a cidade às escuras, mesmo sendo mais pequena do que hoje é.
A Fábrica Portugal iniciava a laboração às oito da manhã e terminava às dezoito, com intervalo para almoço, dando trabalho a cerca de duzentos operários, distribuídos por várias especialidades que, a partir de chapas planas iam cortando, dobrando, furando, soldando, pintando e embalando não sei quantos fogões por dia.
A Fábrica era no Regueirão dos Anjos, paralelo ao Largo de Santa Bárbara e a parte da Rua de Arroios, a Norte e ainda uma parte da Rua dos Anjos, mas terminava na Rua Egas Moniz, o Regueirão é que continuava mais uma centena de metros, passando por detrás da Santa Casa da Misericórdia, a da sopa dos pobres e da Roda, até se juntar à Almirante Reis um pouco antes da “foz” da rua dos Anjos.
O tempo ainda era de sirenes a anunciar o início da laboração, o de suspensão para almoço, para o termo do período e no final da jornada de trabalho. Era já usado o cartão de ponto, quer na Fábrica Portugal, quer noutras de menor quadro de pessoal e que servia para avaliar da assiduidade, pontualidade e daí a respectiva punição, ou no salário, que era semanal e mais tarde na promoção ou outra qualquer regalia que estivesse estabelecida pela administração.
Estamos a reportar-nos ao inicio da década de cinquenta, para comparar com o século XXI, onde até há bem pouco tempo, os digníssimos representantes das Associações Patronais enchiam a boca, para levarem a água ao seu moinho, com assiduidade, pontualidade e mais já para o fim, quando sentiram que tinham a sua gente nos postos de decisão, Presidente da República, Governos e espalhados por tudo o que era Direcção Geral e que passaram a ser chamados de Institutos, deixaram de clamar por menor Estado, Melhor Estado e passaram a querer flexibilidade, de horário, de local de trabalho e também de produtividade e competitividade, tudo no mesmo saco, tipo salada de frutas, mas sem fruta.
Eis que estoirou a crise, declarada como se fosse uma guerra dos tempos idos, em que eram negociados os tempos de paragem para beber uma “bejeca” fresquinha, e a partir daí acabaram-se todas as exigências, entrou tudo na paz dos anjos e caiu nas graças do Senhor! Todos estão com a crise, sobretudo os Bancos e seus accionistas agiotas e preguiçosos parasitas. Estão, como é costume dizer-se “nas sete quintas”.
Voltemos ao Largo de Santa Bárbara, onde em Outubro, pelas dezoito horas era quase noite.
A Fábrica Portugal, cujo símbolo era a cabeça de um leão, vá-se lá saber porquê, tinha um grande refeitório para os operários que por falta de condições habitacionais ou pouco jeito para cozinhar, ali fazerem a refeição do almoço, mais económica que no restaurante, como económico era o salário recebido.
Outros havia que, por uma questão de economia também, ou porque a dieta do refeitório lhes não agradava, quase sempre com família, traziam a sua lancheira, pequena maleta de cartão ou madeira, onde arrumavam as marmitas em alumínio – o plástico estava ainda no segredo dos deuses terreais –, bem arrumadas, com dois pisos e um lugarzinho reservado à garrafinha do tinto, só para aconchegar. E formavam uma enorme esplanada, quando o tempo o permitia, sem mesas nem cadeiras, ao longo dos passeios ou nos patins de entrada dos prédios e até mesmo no espaço interior das entradas de serviço, sobretudo quando a chuva ou o sol demasiado quente o aconselhavam.
Línguas afiadas, por vezes bem-humoradas, provocavam todo o que passava, velho ou novo, homem ou mulher, sobretudo os vendedores ambulantes de fruta ou peixe, na sua maioria mulheres; de língua tanto ou mais afiada do que a dos comensais de passeio.
Aqui era, como hoje se diz e eu ainda não entendi o seu real significado, a desbunda total:
- Oh, vizinha, não quer provar a minha dobrada? Perguntava um.
- Oh, homem, pelo teu ar deslavado deves estar a ser franco, deves ter mesmo só dobrada! Coitada da tua mulher! Come devagar, não te vás engasgar!
Gargalhada geral na esplanada!
-E das minhas pataniscas? Perguntava outro à que vendia retrosaria.
- Oh, filho, das tuas pataniscas nem vê-las! Se o mê homem te ouvisse quem as comia era ele! E a seguir comia-me a mim, tás a ovir? É só malandragem nesta fábrica! Vê se me arranjas um fogão mais barato, porque o meu a pitrol tá sempre com o bico intupido!
- Ah, ah, ah, ah nova gargalhada geral!
- E o teu homem não ajuda a desentupi-lo? Perguntava um outro meio envergonhado.
- É grande demais para o buraquinho do fogareiro, mas se for preciso ele dá um saltinho a tua casa! Eu também não deixe ele mexer no fogareiro p’ra não cheirar a pitrol quando vai para a cama!
- Pois, pois, já entendi! Dá-lhe cumprimentos cá do caldeireiro e se precisar de ajuda…?!
- Oh, filho, deve ser só fome lá por tua casa, quanto mais tu dares uma ajuda na minha! Na minha casa, ouviste bem?!
Os que primeiro eram servidos no refeitório, sabedores do espectáculo diário na esplanada, comiam às pressas para irem ainda aproveitar parte do espectáculo e nele participarem algumas vezes, quase sempre sem ganhos; outros corriam direitinhos à tasca do galego e atiravam-se ao bagacinho para ajudar a digestão da feijoada, diziam eles, sem convicção e a pensarem no peixinho cozido que era a dieta daquele dia!
Os que ficavam na esplanada das marmitas iam atirando farpas aos já almoçados:
- Então qu’é que tua patroa te mandou hoje?
- Hoje foi só marisco; lagosta suada e estava um pitéu!
- Qualquer dia manda-te a sopa envenenada, quando souber a rês que temem casa!...
- Por isso é que venho trabalhar e mal chego a casa dou logo o fora p’ra não a aturar!
- És um coirão, não mereces a mulher que tens!
- Porquê, quere-la para ti? Eu faço-te um preço barato! Mas não, tu não és homem p’raela! Aquela tem pelo na venta!
- Amanhã vão ser bifinhos de vitela e uma garrafinha do tinto, mas sem água, cá o meco faz trinta e cinco anos! Trinta e cinco primaveras!
Estava a tocar para a entrada! A zoada dos alumínios e fechos de lancheira a bater e logo o bando batia asa pela Travessa do Regueirão que ía dar mesmo à entrada da Fábrica e logo se formava uma bicha em direcção ao placard dos cartões de ponto.

                                                 VII

E ali ficavam umas dezenas de tostões, na tasca e na mercearia.
À saída tudo era diferente: as vendedeiras tinham desaparecido e começavam a chegar os que noutros pontos da cidade trabalhavam, nomeadamente funcionários públicos e bancários, que se cruzavam com os que começavam a sair de casa para outras vidas, as da noite! Que só mais tarde entendi. O tempo era pouco para lhes dedicar atenção e as conhecer; estava ainda mais preocupado em fixar os nomes das ruas e a melhor forma de a elas chegar pelo caminho mais curto e menos penoso.
O trabalho durava até às oito da noite, mesmo que a mercearia fechasse às sete, pois tudo tinha de ser arrumado e limpo para que no dia seguinte de manhã tudo estivesse em ordem para novo dia de trabalho igual.
O prédio de frente, o que fazia gaveto com o Largo e a Rua de Arroios, tinha cinco andares de apartamentos.
Excepto um, do primeiro andar, habitado por duas famílias e outro do quarto piso, habitado por duas irmãs, todos os restantes estavam a funcionar como camaratas ou os moradores arrendavam os espaços disponíveis, tentando retirar o maior proveito do apartamento.
Era o refúgio e lugar de residência, quase sempre precária e de pouca duração, de um vasto leque de profissionais, eu próprio estive num deles cerca de dois meses, partilhando o quarto com um homem com o triplo da minha idade e que fumava cigarro atrás de cigarro, a qualquer hora da noite, bastava acordar e de imediato um cigarro aparecia, como que por magia, na sua mão. Numa dessas noites de alguma insónia ou outro qualquer motivo, deve ter acendido o cigarro, mas antes de terminar o sono o venceu e adormeceu com o cigarro aceso! Só acordou com a cama a arder e eu com o barulho do alvoroçado senhorio e família!
Mas era a prostituição quem maior quantidade de ocupantes fornecia para aquele tipo de oferta de residência, a maioria, senão a totalidade de não profissionais “encartadas”, como as que dessa forma ganhavam a vida e também a perdiam, pois era e é uma profissão com riscos. As encartadas que pagavam os seus impostos, foram “extintas” em Janeiro de sessenta e dois, com as guerras coloniais já em curso e cada vez mais isolado este pobre País, berço de heróis e de santos, marialva quanto baste, sempre disposto a aceitar tudo, desde que não o obriguem a decidir.
A profissão foi legalmente extinta, foram cassadas as carteiras profissionais, mas uma coisa é a lei, outra bem diferente é a sua aplicação! Quem faz as leis, aquelas ou estas do século XXI, sabe muito bem que não são para aplicar, são só para dar nas vistas ou como costumava ser dito “são para inglês ver”! A lei serviu apenas para: acabar com as filas vergonhosas, de mulheres novas e mais velhas junto dos postos sanitários para, burocraticamente, ser posto um carimbo que a nada correspondia em termos de segurança no “trabalho”, de quem o prestava e de quem dele se servia; encarecer o “produto”, naturalmente, uma vez que o mesmo passou a estar desprotegido por um tecto e passou a ser procurado na via pública, com polícia distraída, mas à vista e o preço cobrado nos locais era à peça e à pressa! Aumentou substancialmente o número de praticantes, por a procura ter aumentado bruscamente, com o abastecimento da exportação para as guerras! De legal passou a clandestina, como clandestinos eram os que aos milhares foram procurar trabalhar na França e Alemanha, países a reconstruir ambos saídos cheios de mazelas que a Guerra provocou, escapando à guerra colonial ou às masmorras do regime. A manutenção das guerras tornava mais difícil também o nível de vida e era a sua melhoria que muitos procuravam.
Santa Bárbara e vizinhança, sem grandes preocupações sociais, lá ia integrando, nalguns casos desintegrando, largas dezenas dos que a tal “sorte” não bafejou! Ou será fortuna?
Alguns desses sem fortuna, quase sempre algumas, eram adolescentes, mais naquela época do que hoje, em que a maioridade era a partir dos vinte e um anos, tal não impedia que fossem contratados como assalariados, aos treze e catorze anos, fazendo os seus descontos para a Segurança Social, então com o nome de Caixa de Previdência do respectivo ramo de actividade.
Estes e estas, sem fortuna e sem voz ou outro direito de cidadania, começavam, ainda de madrugada, a trabalhar no “duro” eles, quando elas estavam a regressar ou estavam no primeiro sono, por o seu turno ter sido durante a noite, por vezes até alta madrugada, trabalho menos penoso fisicamente que os da sua idade, mas aviltante, perturbando a sua formação intelectual e espiritual.
Uns e outras, quase sempre vindos de aldeias próximas da cidade e nalguns de outras bem mais longínquas, como fora o caso do autor deste “desabafo” escrito.

                                                 VIII

De vez em quando sucediam cenas de violência, em pleno dia, a maioria delas por ciúmes, tendo como protagonistas gente que não morava ali perto e só arribavam a Santa Bárbara para desencadear as trovoadas a que raramente a santa podia proteger por fazerem parte de longínquas nuvens: ao marido que deixara de cumprir o contrato conjugal frente ao altar jurado; ao amante que deixou ou descurou o romance; algumas vezes os pais vinham buscar pela orelha a miúda que, quase sempre por o lar donde saíram lhes não garantir sossego, acabando por acertar num lar sem lareira, quase sempre em quartos entalados em tabiques de madeira, onde mal cabia a enxerga para descanso do molestado corpo e não era raro que nesse espaço, onde mal cabia um corpo, se aninharem dois
Vivi uma situação semelhante, no paquete Vera Cruz, de Lisboa para Luanda, com o porão transformado em camarata para soldados, em que  as camas eram pequenos estrados em madeira, onde um corpo mal cabia, encostadas umas às outras e com um estreitíssimo corredor entre grupos de quatro em que o acesso se fazia pelo lado dos pés dos  estrados.
O que os sub alugadores procuravam, numa dimensão diferente, era o mesmo que os investidores de hoje e de todos os tempos em que os negócios do dinheiro existem, ou seja, ganhar muito e investir pouco.
A promiscuidade era muita, mas indiscutível, o livro de reclamações só muito mais tarde foi inventado e pouca utilidade tem, do que conheço; mesmo que houvesse tal coisa os possíveis reclamantes não o podiam fazer, ser adolescente era não ter direitos e qualquer individuo mais velho, mesmo não tendo qualquer grau de parentesco com o jovem, vigorava a norma de que o mais velho era quem tinha sempre razão e a quem era devida obediência.
O incidente mais grave ou pelo menos mais teatralizado, há muito esperado, por alguns desejado e tido como inevitável, ocorreu no Outono de 1954, se a memória me não trai, que envolveu o galego, dono da taberna ao lado da mercearia, tendo a separá-las apenas a porta larga de entrada para o Centro Escolar Doutor Salgueiro de Almeida e as mulheres de alguns operários da Fábrica Portugal.
Num dia desse ano e estação, inesperadamente, apareceu na tasca uma máquina que o galego comprara ou deixara instalar por conta de alguém, chamada slotmachine; foi colocada sobre uma mesa alta, no canto do lado esquerdo de quem entrava.
A mesa, sendo mais alta do que as outras três que serviam para os clientes se sentarem a beber o seu copo de tinto ou branco e comer um qualquer petisco, tipo pastel de bacalhau ou uma isca de fígado, não era para que a tal slotmachine se sentisse mais confortável, era para facilitar o acesso em pé ao utilizador, ocupando menos espaço e deixar que outros futuros candidatos se fossem habituando como a máquina funcionava.
A seguir à natural curiosidade e a alguns escudos por umou outro arrecadados dum ganho mal contabilizado, pois a maioria recebia bem menos do que lá tinha deixado; dizia que após a curiosidade inicial a máquina logo se tornou conhecida e frequentemente utilizada, guardando sempre algumas moedas e devolvendo quase nenhumas. Mas o seu percurso estava definido, ou assim parecia.
Durante o dia só um ou outro “vadio” aparecia e jogava até se acabarem as poucas que um vadio traz consigo! Convém explicar que, naquela época, vadio era todo o que não trabalhava, mas só a partir do momento em que por qualquer razão fosse levado pela polícia e não explicasse de que vivia e chegavam a ser julgados, mas presos por vadiagem não eram. Normalmente ou eram mandados em pazou multados e a coima podia ser paga ou transformada em dias de trabalho nos serviços camarários. Não havia trabalho, mas desemprego também não, lógica do sistema “A bem da Nação”
Muitas vezes o investimento no jogo era o resultado da mendicidade, que também era proibida. Institucionalmente só a Santa Casa da Misericórdia e os invisuais inscritos na Instituição Luís Braille podiam oficialmente esmolar. Como tudo era Corporativo, a mendicidade não fugia à regra.
Ao fim da tarde, quando a sirene da Fábrica Portugal dava por encerrada a jornada de trabalho, muitos dos operários tentavam ser os primeiros a marcar o cartão de ponto para tentarem ver quem primeiro chegava à tasca do galego! Formavam-se as filas, primeiro a marcar o ponto e depois dentro e fora da tasca, havia empurrões, insultos mesmo, alguns dirigidos ao que naquele momento utilizava a quase virgem namorada que o galego lhes arranjara! E ao próprio galego eram dadas sugestões: “ porque não manda vir mais duas ou três?” Mas para o utilizador eram outras as “bocas”: “vê lá se te despachas, quere-lo todo para ti, oh gosma?!” No início eram tidas como brincadeiras, mas não tardou muito que os amigos até aquele dia, ou até a slot ser plantada, quase se matassem à pancada depois de uma sessão de jogatina no cantinho do galego!
Se ao fim da tarde de qualquer dia da semana a confusão era grande, à sexta-feira, dia em que era paga a semana de trabalho, as coisas complicavam-se muito mais, junto e muito distante da maquineta que desinquietou aquela gente e o Largo de Santa Bárbara, que bem podia esquecer as iras das nuvens e tentasse apaziguar as batalhas do seu Largo.
Aos operários da Fábrica começaram a juntar-se os da construção civil que estavam a construir o segundo edifício de cinco andares para a Joaquim Bonifácio e agora da Jacinta Marto e de algumas oficinas de mecânica e pintura de automóveis e até alguns da serração Lisbonense, um pouco mais acima da Rua de Arroios.
O produto estava a ter tanta procura que o galego andava numa roda-viva a tentar comprar outra máquina e pensar no espaço onde a instalar.
Não eram poucos os casos em que alguns mais ousados ou menos responsáveis, a máquina lhe ficava com todo o dinheiro da semana! Dava umas moedas de vez em quando que funcionavam como acicate para continuarem, não sabendo, como alguns sabem hoje, que quem concebeu a máquina lhe deve ter deixado bem vincado que nunca podia dar o que não tinha e ela ia cumprindo sem falhas o seu papel. Quem falhava quase sempre eram os que na ganância ou ilusão de ficaram ricos, ali arriscando do primeiro ao último escudo. Nunca pensaram que se ricos ficassem, não era à custa do galego, mas sim dos seus colegas de trabalho e de um outro que não conheciam! São pensamentos que não ocorrem a quem joga sem pensar.
Lá havia um ou outro que, num momento de sorte, ficava com saldo positivo e eram estes pequenos acicates que levavam outros à perdição, por todos acharem que também iriam ter o seu momento de sorte; e os escudos iam entrando para o mealheiro da slot que parecia não ter fundo.
E na montra da fruta lá se alinhavam duas maçãs e um limão, ou duas peras e uma maçã, mas ficarem três em linha era uma raridade e quando tal sucedia eram frutos da época e da abundância e toda a gente sabe que quando há abundância de alguma coisa que não pode ser guardada muito tempo o preço baixa e na fruta da slot, não sei bem com que intenção, a fruta que rendia mais era a que a árvore produzia e ela própria guardava, eram os limões! Visto a esta distância temporal e já longe das emoções que via estampadas no rosto dos que já tinham sido espoliados, atrevo-me a brincar com a situação e pensar que o valor do limão era provocação.
Longe dali e em vários pontos da cidade estava a crescer o que poderíamos chamar a raiz da rebelião, tendo sempre a mesma causa, desavença familiar; ou porque o marido duma chegava a casa sem a semanada, o de outra pura e simplesmente não aparecia, outros mais cautelosos, avisados não, porque o monstrinho do galego era novidade pata todos, paravam antes de ficarem lisos, mas a matriz da vaga de fundo era a mesma.
Uma tarde apareceu a mulher de um dos operários da Portugal a tentar investigar a quem o marido entregava a semanada muito antes de chegar a casa de bolso vazio e uma semana nem chegou sequer a casa, como sempre sucedia.
Como já tinha uma pista era só confirmá-la! Entrou na taberna, nem bom dia nem boa noite, não respondia ao galego quando ele perguntava se queria alguma coisa, apenas olhava para a slot! Mediu-a de alto-a-baixo como quem tenta medir o tamanho do “banco” que guardava as semanadas do seu homem. Antes de virar costas avisou o galego: “Você e este traste, fiquem a saber que não vou deixar que roubem o pão dos meus filhos!”
O galego ainda respondeu que non obrigava nem chamava ninguém!
A ameaça ficou no ar. E a máquina ficou silenciosa e empoleirada na mesa alta e o porta-voz era o galego! Por pouco tempo.
Dias depois apareceu outra mulher, com dois garotos pela mão, entrou na tasca e virando-se para o mais velho comentou, apontando a slot: é esta a amante do teu pai, é esta que lhe fica com a semanada!
O miúdo ouviu, atento, mas não percebem muito bem a comparação de uma máquina-amante e ficou calado.
Não tinha decorrido uma semana sobre a visita da mãe com os filhos pela mão, perto da hora de saída do pessoal da Fábrica Portugal, aparece um grupo de seis mulheres e quase outras tantas crianças, em passo acelerado, vindas da Rua de Santa Bárbara, atravessaram-lhe o Largo e foram direitinhas à taberna.
Sem os devidos cumprimentos entraram pela porta larga sempre aberta, comandadas pela primeira que visitou o galego e num ápice a machine foi apeada do seu trono e levada por quatro mãos calejadas de duas robustas mulheres até ao asseio, enquanto um coro de ameaças ribombava pela Travessa do Regueirão e se misturava com o toque da sirene a autorizar os operários a saírem.
Mal chegaram ao passeio, com o galego a protestar em todos os idiomas do seu vocabulário galaico-português, ergueram a slot bem acima das cabeças, como fazem os ferrenhos do futebol aos seus ídolos e os das toiradas também, só que em vez de irem dar a volta ao largo com ela em ombros, foi atirada com toda a força sobre a calçada, quase se espalmando e no seu interior os três limões, à pressa, se alinharam e um jackpot de moedas, todas iguais, saltou, algumas delas, desorientadas, rolaram pelo passeio, algumas atravessaram a rua e ao baterem no lancil tombavam e ali ficavam até que alguém se baixava e a apanhava.
Algumas, poucas, encaminharam-se para a descida do Regueirão, como quem vai ao encontro do seu dono e foram mesmo algumas travadas na descida e apanhadas, sendo a primeira vez que dinheiro lhe era enviado como se um milagre estivesse a acontecer. Mal chegaram ao Largo e viram aquele aparato, as peças da slot a serem pontapeadas e os miúdos, dois deles filhos de um dos primeiros que chegou, o mais pequeno correu a agarrar-se às pernas do pai, o outro lá continuava na sua faina de apanhar chapas de “cinco coroas”, era assim que a moeda de vinte e cinco tostões era mais conhecida!
“Que se passa aqui?” Perguntou à sua mulher o pai dos dois miúdos.
E a resposta, pronta e decidida: “Não se passa nada, já se passou!”
O grupo aumentou com os operários a chegar e os juízes do costume a avaliarem os prejuízos, atribuírem indemnizações e responsabilidades, mas ainda ia demorar porque nenhum deles sabia o custo da maquineta e muito menos o valor do arrecadado!
Uma senhora, com ar de escandalizada, perguntou que tempestade era aquela e de onde tinha vindo?
“Oh, madama, é uma trovoada e foi mandada por Santa Barbara, devia estar distraída e em vez de proteger o galego deixou que um raio lhe caísse na tasca” Percebeu, oh granfina?
“ Ah, coitado, que fez ele de mal?” Perguntou a dama.
O galego, no início de boca aberta e a bracejar, dirigiu-se para a porta com a intenção de se ver livre da confusão, fechando-a, mas a mulher dele, disse para não o fazer antes que considerassem uma afronta e a porta continuou aberta.
Em passo lento e apito na mão, aproxima-se do local do tumulto que tentou acalmar, ou fingiu, mas as vozes das mulheres exaltadas, naturalmente, baixou de tom e ele foi testemunhando, quando o grupo, levantando âncora do Largo e alguns miúdos ainda viam se tinham apanhado todas as moedas, a porta-voz do grupo de visitantes dizer para o galego:
“ Não se atreva a pôr outra no lugar desta, pois vai ter-nos sempre à perna (ela devia querer dizer, à porta!) e se a encontrarmos não é só ela a ficar escaqueirada no passeio! A você, seu ladrão, seu vigarista, ainda faremos pior, pisamo-lo a pés! Ouviu?! Vigarista!”
E zarparam, de peito erguido, quais padeiras de Aljubarrota de agora!
Da boca do galego não saiu nem xó nem arre!
Mas ainda ouviu a tia Maria dos Anjos, moradora idosa e dobrada pela cintura devido a qualquer problema antigo na coluna vertebral, pedinte compulsiva, mas quem a conhecia bem afirmava que era só vicio, pois tinha dinheiro e acções do Montepio e que guardava numa bolsa pendurada à cintura e que era para defender os bens móveis que ela andava assim curvada, dizer: “mais vale pedir esmola que roubar, eu não lhe dizia seu galego sovina?
“ Vai pró diabo, sua bruxa! Até nem no inferno o diabo te quer!”
O senhor Sousa, sempre bem vestido e acompanhado do seu ganso de estimação, grande e acastanhado, sempre de goela aberta a emitir aquele som de cana-rachada e a atirar-se a todo o que se aproximasse mais do seu dono do que estava previsto no código gansal; parecia um pastor alemão treinado para defender o tratador; dizia eu que o senhor Sousa e seu ganso passavam em direcção à Rua dos Anjos, o ganso grasnou com toda a força de suas cordas vocais e pulmões e correu atrás de um maltrapilho que, quase de gatas, tentava apanhar, a que seria aúltima moeda do espólio da slotmachine.
O galego percebeu a lição e nunca mais ali entrou outra! Este e outros incidentes devem ter estado na base da recolha aos casinos e da exploração destas e de outras máquinas de jogos.
Só que em vez de moedas o que agora circula são chapas em plástico, em nome da Salvação do Planeta!

Reis Caçote
Dig/04/02/14


               O CAMPUS DA FORMAÇÃO PARA AVIADOR- OLARIAS


                           A PLACA QUE ME ORIENTOU 2 SEMANAS          

          O LARGO DE SANTA BARBARA ONDE EXERCI POR 2 VEZES   


             ESTA FOTO É PARA DESOPILAR! PORTUGUESIA A SÉRIO



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