O suicídio da social-democracia — onde está a Internacional Socialista?
As burguesias: industriais, proprietárias de bens de raiz, de rendimentos palpáveis, comerciantes regionais, altos funcionários foram o motor das sociedades capitalistas e demoliberais que tomaram o poder na Europa após as revoluções dos séculos XVIII em França, na Inglaterra e na Alemanha e no século XX na Rússia. Foram as classes médias europeias (as burguesias) que decidiram o colonialismo para se apropriarem das matérias-primas de África e que atenderam na origem de duas guerras mundiais.
O colonialismo e a Segunda Guerra estão na raiz da ordem atual no mundo. O colonialismo resultou das necessidades de matérias primas pela indústria da revolução industrial e a Segunda Guerra resultou das respostas das burguesias nacionais aos movimentos operários (os camponeses transformados em operários — proletários) que geraram o fenômeno complexo que por facilidade designamos comunismo. O nazismo foi uma resposta ao comunismo, a outra foi a social-democracia — os católicos referem-se à democracia cristão e à encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII e publicada em 1891, mas esta é mais uma “orientação” para limitar a exploração pelo liberalismo capitalista do que para alterar a ordem social e a autoridade das classes.
(Adivinho o comentário: compara o nazismo à social-democracia! — não, o que quero dizer é que o mesmo problema (no caso a revolta dos proletários) pode originar diferentes soluções políticas e que conhecer a diversidade de opções é a base do pluralismo .Depois há soluções melhores, piores e péssimas.)
Partindo desses orçamentos, chegamos ao artigo de Alexis Corbiére no Nouvelle Observateur, L'Obs para os amigos e ao artigo de Novembro: Porque não sou social-democrata .
O que me atraiu de novo para o artigo que lera de raspão na data da publicação foi (tem sido) a quantidade de comentários de pessoas que facilmente se identificam com o Partido Socialista a apoiar o seguidismo da União Europeia aos Estados Unidos contra a Rússia ea critico quem não o faz (eu, no meu caso). O que me motivou a voltar ao artigo do L'Obs foi o exacerbado americanismo dos social-democratas portugueses, em consonância com os social-democratas europeus. O SPD, o partido social democrata alemão, é o mais forte apoiante da política americana e da NATO. Jens Stoltenberg, o secretário-geral da era da NATO (talvez ainda seja) social-democrata. Os social-democratas da Suécia são agora a favor da entrada na OTAN.
Deve haver uma razão para esta opção de escolha de uma tutela americana em vez de uma autonomia europeia no xadrez mundial (que eu defendo) e essa não será certamente a da defesa de princípios morais. Os Estados Unidos carregam um histórico reconhecidamente alargado de respeitar os princípios mais elementares de democracia política e de defesa dos direitos do homem e até de violência interna, desde a lei liberal das armas à pena de morte e um dos mais ignóbeis sistemas prisionais do planeta, desde o poder das igrejas e seitas à concentração dos grandes meios de comunicação num reduzido e exclusivo grupo de milionários, o que torna a ideia de liberdade de imprensa bastante contestável e pueril.
Então porque se agacham tanto os social-democratas europeus perante os Estados-Unidos?
Vamos ao artigo do L'Obs: “Antes de mais e para evitar falsos debates, é necessário recordar (ou redefinir) o que é a social-democracia do pós-Segunda Guerra na Europa Ocidental, o único espaço do planeta onde ela existe: um modelo que combinou estratégia uma política reformista e uma forma de organização assente nas laços estreitos entre um partido de massas e um movimento sindical poderoso também. A convergência dessas duas unidades permitiu a constituição do modelo de consenso que sustentau o estado de bem-estar aos trabalhadores e outros assalariados — salários, férias, reformas, serviços públicos de saúde e previdência social, habitação, educação. Este modelo assente na extensão de bens sociais aos trabalhadores desviou-os do comunismo. Era esse o objetivo da social-democracia, que se implantou, como é visível num mapa da Europa, nos países junto à fronteira do designado Bloco Leste, em particular na Alemanha e nos países nórdicos. (A Inglaterra desenvolveu um sistema próprio, específico, como as medidas em polegadas e milhas e as roscas dos parafusos no sentidosinistrorsum ). Os países latinos nunca implantaram uma social-democracia nos termos em que ela existe na Alemanha e nos países nórdicos. Os partidos socialistas franceses e italianos nunca foram partidos de massas e suas ligações ao sindicalismo sempre foram fracas. Os partidos comunistas francês e italiano foram, na verdade, o mais próximo da social-democracia que existia na Europa latina, mas não podiam ser aceitos como tal e participar dos governos porque eram “comunistas” e os Estados Unidos não permitiam a associação da imagem de social-democracia ao comunismo, que para eles tinha um significado estratégico de ligação ao inimigo, a URSS.
É na estratégia da guerra fria que reside a atração e a dependência dos partidos social-democratas e “socialistas” europeus e não deixa de ser curioso que os partidos “menos” social-democratas, de maiores diferenças de classe e mais acérrimos defensores da propriedade privada de bens estratégicos e de alto valor social, se designem socialistas (caso de Portugal, Espanha, Itália, a Grécia e até a França), enquanto os países mais industrializados e mais igualitários optam pela designação de social-democrata. Os ingleses não são nem uma coisa, nem outra, são “trabalhistas”!
A vitória do “bem-estar” social-democrata, de welfare state europeu foi conseguida à custa da alienação de um “bem”: a componente de força militar, sem a qual qualquer Estado deixa de ser soberano, mesmo que limitadamente (tão limitadamente quanto a força de que dispuser). Os partidos sociais-democratas, responsáveis em boa medida pela “construção europeia” do pós-guerra, com personalidades tão marcantes como Willy Brandt, por exemplo, optaram — se intencionalmente e automaticamente, se por imposição americana é outra questão — por abdicar do instrumento decidida da soberania, a força e trocaram-na por aquecimento nas casas, reformas na velhice, férias pagas, um VW ou um Opel na garagem, por vezes um BMW ou um Mercedes.
O que os social-democratas ganharam a distribuir mercadorias, perderam em soberania! (o desarmamento alemão do pós-guerra não se deve apenas ao recebimento da Alemanha armada, mas à transferência de recursos para o bem estar que “apaziguou” a sociedade alemã e levou a aceitar o domínio americano com as bases no seu território).
A Europa está hoje a pagar essa opção social-democrata (alemã, holandesa, belga, austríaca) de desarmamento militar e ideológico. Em termos políticos tem de obedecer a quem possui força — os EUA. Tem de seguir quem impôs, pela força, a ideologia dominante do neoliberalismo, do mercado, do individualismo. Tem de funcionar nos parâmetros do pensamento dominante e “politicamente correto”. Está tudo ligado: política, militarismo, moda, ideologia para conseguir a domesticação dos europeus sem grandes reações. (O nazismo desenvolveu-se neste caldo.)
Pensar a social-democracia hoje é pensar num longo processo de decadência, de envenenamento ou de morte por inação controlada pela social-democracia, o melhor dos sistemas, se fosse sustentável, se fosse possível abdicar da força para sobreviver num mundo de espécies que vivem em estado de competição — o que Darwin descobriu há 200 anos.
Pensar a social-democracia hoje é reconhecer que ela se suicidou, deixou de ser viável apesar da partilha equilibrada de riqueza e organização racional da vida no planeta sendo cada vez mais prementes e com elas a resposta às necessidades dos novos e velhos trabalhadores e integração de vagas de migrantes. E não é viável porque a social-democracia fez uma terceirização da força que sustenta a soberania e a liberdade de ação. Resta aos sociais-democratas de hoje, para manterem a cara, fazerem-se patrocinados dos Estados Unidos de motu próprio, colocarem-se a seu lado para aparecerem na fotografia de família.
Essas figuras tiveram nomes de penetras para as classes baixas e de emergentes para aspirantes a nova classe.
O consenso social-democrata dos 30 anos gloriosos assentava na ilusão do crescimento económico eterno e ilimitado e num consenso sobre a partilha da riqueza entre o capital e o trabalho. Esse consenso funcionou até aos anos 80 do século passado, o fim da ameaça do comunismo — de facto da URSS enquanto superpotência — fez os Estados Unidos e os seus ideólogos neoliberais concluírem que a social-democracia europeia, o bem-estar dos europeus, era um custo que poderia ser evitado dado já não existir o perigo das classes trabalhadoras sendo atraídas por uma ilusão que se desfizera, a URSS. A nova ilusão que seria muito mais rentável e permitiria concentrar uma riqueza mais rapidamente era o neoliberalismo.
O par Ronald Reagan e Margaret Tatcher patrocinaram a nova ordem económica e ideológica baseada na liberalização dos movimentos de capitais, da livre troca generalizada (Organização Mundial do Comércio), destruição das proteções sociais na Europa, de modo a transformarem o mundo num mercado (o velho sonho imperial dos ingleses vitorianos), onde não há lugar para a social-democracia.
Aos militantes social-democratas europeus resta hoje elogiar a desigualdade e a competição em nome da liberdade (de ser explorador) e defender a intervenção militar do império em nome de princípios que ele se encarrega de negar. Tornaram-se neoliberais e militaristas. A decadência dos partidos social-democratas e socialistas é fruto do beco da dependência real em que se meteram, ou foram metidos, e da incapacidade de gerarem uma ideologia para o mundo de hoje.
É interessante lembrar a hibernação de uma organização de que muito poucos já ouviram falar: a Internacional Socialista! — sumiu-se, deixou de ter utilidade.
Por fim, a França, que nunca foi social-democrata, foi soberanista e o soberanismo é a base do seu comportamento desde antes de Napoleão e até depois de De Gaulle tenta remar contra a maré, com restrições conhecidas. Mas ainda tem quem pense. O que já é um feito nestes tempos de pensamento único.
Não são boas notícias, mas são as que me parecem verdadeiras.
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