A Guerra na Ucrânia — Mais provas de que os diplomatas americanos não são tão espertos como julgam ser. Por Larry C. Johnson
Seleção e tradução de Francisco Tavares
5 min de leitura
Mais provas de que os diplomatas americanos não são tão espertos como julgam ser
Publicado por em 5 de Dezembro de 2022 (original aqui)
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Obrigado a Andrei Martyanov por ter chamado a atenção para um recente artigo de opinião de Peter Van Buren, um funcionário reformado do Serviço de Estrangeiros que fez carreira no Departamento de Estado dos EUA. Os oficiais do Serviço de Estrangeiros dos EUA têm muito orgulho em acreditar que são super inteligentes. Como é que eles sabem? Eles passam no exame do Serviço de Estrangeiros. Se não passaram nesse exame, não são, por definição, tão espertos como um oficial do Serviço de Estrangeiros. Não estou a exagerar.
Trabalhei ao lado de algumas destas pessoas durante quatro anos e posso atestar a arrogância e o ar de auto-importância que impregnam o típico FSO [Foreign Service Officer] enquanto desfilam em torno da sede do Departamento de Estado, também conhecido como Main State. Embora haja algumas excepções (ou seja, pessoas normais com quem se gostaria de estar sentado como convidado para jantar ou companheiro de bar), os FSOs são um lote estranho produzido ao longo de anos de auto-selecção. Um dos meus antigos colegas, um cavalheiro chamado “Tony”, era um cientista cristão devoto que estava permanentemente constipado. Achava-o hilariante. Ele estava sempre doente. Ele não apreciava a ironia.
De qualquer modo, de volta ao Sr. Van Buren. Peter parece ser uma ruptura com o estereótipo. Ele é um tipo grande, carnudo e não parece ser deficiente em testosterona. A testosterona escasseia em Main State. É o paraíso dos metro sexuais [1]. Os FSOs são também conhecidas por serem personalidades bastante reticentes. Normalmente evitam atrair a atenção, a menos que haja uma promoção em jogo. Parece que Peter não teve medo de abanar o barco e ir para onde estava a acção:
Van Buren serviu no Departamento de Estado dos EUA durante 24 anos, incluindo um ano no Iraque como líder de equipa para duas Equipas de Reconstrução Provincial (PRTs).
Depois do seu livro, “We Meant Well: How I Helped Lose the Battle for the Hearts and Minds of the Iraqi People” [2], foi publicado em 2012, Van Buren afirma ter sofrido uma série de acções adversas cada vez mais graves. O seu antigo empregador, o Departamento de Estado norte-americano, alegou que Van Buren não tinha autorizado a publicação o seu livro segundo as regras do Departamento, e que o livro continha revelações não autorizadas de material classificado.
Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Peter_van_Buren#cite_note-WaPoDavidson-4
Não li o seu livro, We Meant Well, mas posso aplaudi-lo por reconhecer a impotência da aventura imperial americana que custou tanto sangue e tesouro aos iraquianos.
Dito isto, estou chocado com a sua peça no American Conservative. Ele começa, para citar o irmão Martyanov, com esta maravilha:
Desde o momento em que as tropas russas atravessaram para a Ucrânia, só havia dois resultados possíveis. A Ucrânia podia chegar a uma solução diplomática que restabelecesse a sua fronteira física oriental (ou seja, a Rússia anexa grande parte da Ucrânia oriental ao rio Dnieper, e estabelece uma ponte terrestre para a Crimeia), e assim restabelece firmemente o seu papel geopolítico como Estado tampão entre a NATO e a Rússia. Ou, após perdas no campo de batalha e na diplomacia, a Rússia poderia recuar para o seu ponto de partida original de Fevereiro, e a Ucrânia restabeleceria firmemente o seu papel geopolítico como Estado tampão entre a NATO e a Rússia.
“Apenas dois resultados possíveis?” Consigo pensar em pelo menos um outro resultado possível – a Rússia desmilitariza e desnazifica a Ucrânia e assegura que um novo governo na Ucrânia não esteja comprometido com os Estados Unidos e a NATO. Peter, por que é que nem sequer contemplaste esta possibilidade? A Rússia, em virtude da sua dimensão e sofisticação técnica militar (por exemplo, tem uma capacidade de guerra electrónica totalmente integrada que falta à NATO) e arsenal de mísseis e tanques hiper-sónicos de precisão, entrou na “operação militar especial” com algumas vantagens claras.
Peter também faz esta afirmação extravagante:
Este problema para Putin é cada vez mais agudo à medida que a NATO se reforça na Polónia.
Algum amigo de Peter precisa de intervir e informá-lo que a NATO ficou sem armas para enviar para a Ucrânia e que o Exército da Polónia é maior do que o da Inglaterra e da Alemanha juntos. Em suma, a NATO depende da Polónia para fornecer carne para canhão, ou seja, tropas, para dar à NATO uma força credível. A NATO, na realidade, é uma força fantasma com pouca força. Considere estes números:
O Exército Britânico, em 2022, compreende 79.380 efectivos regulares a tempo inteiro, 4.090 Gurkhas, e 28.330 efectivos de reserva. (https://www.army.mod.uk/)
O exército alemão, em Janeiro de 2022, tinha uma força de 62.766 soldados. (https://en.wikipedia.org/wiki/German_Army)
O exército francês, em 2022, empregava 118.600 pessoas (incluindo a Legião Estrangeira e o Corpo de Bombeiros de Paris). Além disso, o elemento de reserva do Exército francês consistia em 22.750 pessoas.
A Polónia, em 2022, tinha 150.000 efectivos em serviço activo e uma Força de Defesa Territorial de 32.000 efectivos. (https://en.wikipedia.org/wiki/Polish_Armed_Forces)
Certamente um diplomata com o pedigree do Sr. Van Buren saberia que a Rússia acabou de mobilizar mais de 300.000 reservistas militares. Só essa força é maior do que os exércitos permanentes do Reino Unido, Alemanha e França juntos. Mas deixemos de lado esse facto por um momento. A Rússia tem um exército de um milhão de homens actualmente activo e tem reservas de mais de dois milhões. Não creio que os comandantes da NATO sejam muito bons em matemática.
Peter compraz-se na ilusão de que a Rússia ainda está na Idade Média militar e não alcançou o poder militar dos EUA e da NATO:
O plano de Putin repousa sobre a luta contra a Ucrânia e, portanto, contra os EUA por procuração, e não de um conflito directo com a superioridade militar dos Estados Unidos e de toda a NATO.
Como é que os Estados Unidos gozam de “superioridade militar” sobre a Rússia? A Rússia tem um exército maior em termos de mão de obra. Os tanques russos são tão bons, se não melhores, do que qualquer tanque no arsenal dos EUA. A Rússia tem o sistema de defesa aérea mais moderno de qualquer país do mundo. E a Rússia tem uma vantagem clara em mísseis de precisão hiper-sónicos que está a produzir internamente sem depender de recursos importados. Os Estados Unidos são “superiores” num aspecto – gasta milhares de milhões mais do que a Rússia. Ah, sim. Mais uma coisa. Os Estados Unidos perderam mais guerras com países do segundo e terceiro mundo do que a Rússia.
Não tenho a certeza porque é que Peter Van Buren escreveu este artigo da forma como o fez. Para um tipo que não estava interessado em fazer genuflexões à hierarquia do Departamento de Estado dos EUA, está certamente a ajoelhar-se perante os mesmos neo-conservadores, ou seja, “A Rússia é militarmente inferior”, “A Rússia está a ficar sem mísseis” e “Putin quer ressuscitar a União Soviética”. No entanto, ele conclui o seu artigo com um certo bom senso:
Que a conquista da Ucrânia seja tratada como um exercício de pequenas unidades diz-nos muito. Nada disto é um grande segredo. A via de saída na Ucrânia, um resultado diplomático, é suficientemente claro para Washington. A administração Biden parece satisfeita, de forma vergonhosa, em não apelar à força para esforços diplomáticos, mas em vez disso sangrar os russos como se isto fosse de novo o Afeganistão 1980, tudo isso enquanto aparenta dureza e impregnando-se de todos os sentimentos eleitorais bipartidários positivos que sejam devidos ao pseudo Presidente Joe Biden em “tempo de guerra”. Tal como no Afeganistão em 1980, os EUA parecem prontos para lutar até que caia o último reduto (fornecendo-lhes apenas armamento suficiente para evitar perder) antes de enfrentar o inevitável final negociado, uma posição vergonhosa na altura e vergonhosa agora.
Concordo com Peter que a estratégia dos EUA é vergonhosa. Mas ele esqueceu-se de falar de um facto chave – a Rússia ditará as condições. A Rússia não perde homens e material. A Ucrânia sim, perde. A Rússia tem os recursos em pessoal e fábricas de produção militar de defesa que pode reabastecer e sustentar as operações. A Ucrânia, agora, está totalmente dependente da grande generosidade ocidental. Lá se vão os “apenas dois resultados possíveis” do Sr. Van Buren.
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Notas
[1] N.T. Metrossexual é uma mistura de metropolitano e sexual, cunhado em 1994 por Mark Simpson no British Independent. Simpson usou o termo para descrever uma tendência que estava a notar entre os homens que viviam em cidades (ou seja, o metro). Ele via estes homens como vaidosos, narcisistas e obcecados com as compras e com a ida ao ginásio. (ver aqui)
[2] N.T. Nós tínhamos boas intenções: Como Ajudei a Perder a Batalha pelos Corações e Mentes do Povo Iraquiano
O autor: Larry C Johnson é um veterano da CIA e do Gabinete de Combate ao Terrorismo do Departamento de Estado. É o fundador e sócio-gerente da BERG Associates, que foi criada em 1998. Larry forneceu formação à comunidade de Operações Especiais dos Militares dos EUA durante 24 anos. Ele tem sido vilipendiado pela direita e pela esquerda, o que significa que ele deve estar a fazer algo certo (ver aqui). É um autor rodeado de controvérsias como se pode ler aqui.
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