Texto do general Pezarat Correia, para meditar.
UCRÂNIA - UMA GUERRA PREVENTIVA
À luz da polemologia, a teoria dos conflitos, a intervenção militar da Rússia na Ucrânia configura, sem dúvida, uma guerra de agressão preventiva e, como tal, ilegítima. É um “privilégio” que está reservado ao forte contra o fraco, em particular às grandes potências que, por via do injusto e antidemocrático poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, disfrutam de um estatuto de impunidade. Não se deve confundir com a guerra preemptiva, ou por antecipação. Como muito bem diz Joseph S. Nye Jr, «Existe uma diferença entre as guerras por antecipação e as guerras preventivas. Um ataque por antecipação ocorre quando a guerra está iminente. Uma guerra preventiva ocorre quando os políticos acreditam meramente que é melhor a guerra agora do que mais tarde.» (Compreender os conflitos internacionais - uma introdução à teoria e à história, Gradiva, Lisboa, 2002, p. 188). A guerra preventiva é, conforme a doutrina emanada pela ONU, uma agressão, ao contrário da guerra preemptiva considerada de legítima defesa. «O direito internacional sempre proibiu sem ambiguidade os ataques preventivos. A justificação atual dos ataques e das guerras preventivas conduzidas em nome da segurança sabota os fundamentos da soberania e torna as fronteiras nacionais cada vez mais obsoletas.» (Michael Hardt et Antonio Negri, Multitude – guerre et démocratie à l’âge de l’empire, La Découverte, Paris, 2004, p. 37)
As guerras inter-estatais do pós-Guerra Fria em que têm intervindo as maiores potências, têm sido, em geral, preventivas. Na Jugoslávia e, depois, na Sérvia, no Afeganistão, na América Latina, na Geórgia, no Iraque, agora na Ucrânia, em nenhuma delas a intervenção militar dos EUA, da OTAN, da Rússia foi preemptiva, perante a iminência de uma agressão. Foram, algumas, meras ações punitivas, outras preventivas para prevenirem uma invocada ameaça futura. A causa imediata agora invocada pela Rússia inscreve-se, exatamente, neste quadro: a eventual adesão da Ucrânia à OTAN perfilava-se como uma ameaça direta à sua segurança. Perante o dilema de intervir depois de a Ucrânia já ter aderido à OTAN, ou antes, a Rússia decidiu tomar a iniciativa e agir agora. Depois da adesão a intervenção já seria contra um país da OTAN, portanto, de acordo com o artigo 5º do Tratado, contra a OTAN no seu conjunto, o que arrastaria a catástrofe de uma guerra mundial, provavelmente atingindo o patamar nuclear. Com a adesão consumada a Rússia ver-se-ia impedida de atuar.
Estes serão os argumentos da Rússia, mas não há dúvida, Moscovo cometeu um ato de agressão ilegítimo. Mas não é a única. Ilegítima e de agressão foi, para citar apenas a mais gritante e de que ainda sofremos os efeitos, a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido em 2003. A diferença está em que, em 2003, não se assistiu a este orquestrado clamor “universal”, a esta avalanche de sansões económicas que todos vamos, ou antes, já estamos a suportar. Não recordo, em 2003, apesar de, como hoje, a invasão ter sido condenada pela grande maioria da opinião pública e pela própria ONU e ter arrastado consequências humanitárias, económicas e polemológicas dramáticas, a nível regional e global que ainda hoje persistem, não recordo, repito, que se tenha recorrido a qualquer medida retaliatória contra o agressor. Afinal também os agressores, como as armas nucleares, não são todos iguais, há os bons, os nossos e os maus, os outros.
Já agora assinalo também que, quando do desmantelamento da Jugoslávia forçada pelo “ocidente”, foram várias as vozes (incluo-me entre elas) que alertaram para o perigoso precedente que se estava a criar. A Ucrânia, que se inscreve, exatamente, nessa lógica cisionista, aí está a lembrar que tínhamos razão. Já ninguém se lembra.
Ao meu GDH anterior, ainda antes da invasão (21 fev), dei o título “ A quem interessa a intervenção russa da Ucrânia?” É questão a que voltaremos, mas não hoje. Para já apenas registo o óbvio, já há quem esteja a ganhar com a guerra em todos os tabuleiros. E, não sendo nenhum dos que nela estão diretamente envolvidos, foi quem mais insistentemente a incentivou.
Entretanto a lógica da guerra está a impor-se, um autêntico laboratório de manipulação da opinião pública, uma verdadeira lavagem ao cérebro com base em cenários fabricados pelas novas tecnologias da (des)informação, a perseguição soez a quem ousa pensar diferente. A sórdida campanha movida na comunicação social contra meus camaradas militares que contribuem com análises serenas e fundamentadas para a compreensão do desenvolvimento da guerra no terreno, que se têm destacado pelo rigor e independência das suas intervenções, é uma infâmia. Louvo estes camaradas, pela dignidade e competência reveladas e aqui lhes manifesto publicamente a minha solidariedade.
Ao contrário, na comunicação social ninguém se indigna com a obscena presença, como comentador da guerra da Ucrânia num dos canais generalistas de televisão, evidentemente alinhado no coro dos his master’s voices, da personagem que, como ministro da defesa do Governo Português, apoiou conscientemente a fraude das armas de destruição maciça que justificou a invasão do Iraque em 2003, na qual ele e o primeiro ministro envolveram Portugal! É um testemunho desacreditado e não fiável, mas com direito a cátedra. O homem não tem vergonha nem lhe pesa nada na consciência. Esta presença é um insulto!
14 de março de 2022
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