A paz de Putin
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Quem pensar que o problema se resolve chamando louco e assassino (e já agora, comunista) a Putin, não precisa de passar destas linhas iniciais. Quem gostar de tentar compreender o Mundo e de perceber os interesses, as decisões das instituições e dos líderes políticos, sinta-se à vontade para discordar e criticar, desde que com dados e opinião sustentada, e sem ofensas.
Em todas as guerras, as partes envolvidas acusam-se mutuamente de tudo o que possa desacreditar o inimigo, tentando ao mesmo tempo ganhar apoios que reforcem a sua luta. Todas as guerras são diferentes, mas simultaneamente muito iguais nas características da retórica e da troca de acusações. A guerra, qualquer uma, é um crime. Haverá, talvez, guerras mais justas que outras, ou inevitáveis, mas até isso depende do “lado em que estamos”. O que para uns é legal e legítimo, é visto como o inverso pelo inimigo. Tantas guerras em nome da paz e de causas nobres, mas não deixam de ser guerras. Perguntemos aos franceses sobre Napoleão, perguntemos aos afegãos sobre as sucessivas guerras, perguntemos aos africanos sobre os Movimentos de Libertação durante a colonização, perguntemos aos palestinianos sobre as Intifadas, perguntemos, em geral, aos povos do Médio Oriente, sobre esse que dizem ter sido um grande estadista, Winston Churchill.
Território russo, diz Putin
Sobre a guerra na Ucrânia, a estratégia já era conhecida: após os “referendos” em 4 regiões da Ucrânia, a Rússia aceita o pedido destas regiões para integrarem o território russo. Assim sendo, ao abrigo da Constituição, a Rússia considera-se no direito de responder a qualquer ataque a estas regiões como se fosse um ataque a Moscovo ou a qualquer parte do território russo.
Dentro desta lógica, Vladimir Putin, desafia a Ucrânia a parar a guerra. Isto é: desafia Kiev a assumir a perda das quatro regiões – intuindo-se que a Rússia não vai querer conquistar mais território – e transfere para a Ucrânia o ónus da continuação da guerra. O que Vladimir Putin quer dizer é muito simples: “Nós queremos parar a guerra, se isso não acontecer, e se a Ucrânia continuar a atacar o nosso território, então a Ucrânia deve ser responsabilizada pela continuação da guerra e assumir as consequências”. E sabemos que as consequências podem ser graves, a acreditar nas ameaças recentes feitas por Vladimir Putin, com referências a armamento nuclear. É uma forma perversa de lavar as mãos e transferir responsabilidades, uma vez que quem iniciou a guerra foi a Rússia, mas a política internacional é uma selva em que apenas a aparência é civilizada.
A encenação na Praça Vermelha, a 30 de Setembro, foi o sinal que Vladimir Putin quis dar de que a guerra pode terminar agora, nos termos em que Putin deixou bem claros. Queiramos ou não, foi Putin quem determinou o início da guerra e quer agora ser ele também a determinar o fim dessa mesma guerra.
Ucrânia na NATO?
Mas se houve encenação em Moscovo, também houve em Kiev, com Volodymyr Zelensky, acompanhado do Primeiro-ministro e do Presidente do Parlamento, a assinar um pedido de adesão à NATO, algo que Zelensky disse, no início de Março em entrevista à ABC, já não fazer parte dos objetivos da Ucrânia. Agora quer uma entrada na NATO, e depressa. O secretário-geral da NATO respondeu quase de imediato: a decisão tem de ser por unanimidade e, por agora, a NATO concentra-se no apoio imediato à Ucrânia. Mas Jens Stoltenberg disse mais: a Ucrânia tem o direito de recuperar os territórios ocupados pela Rússia e a NATO vai apoiar a Ucrânia nessa luta. Ou seja, Zelensky já tinha dito que não negoceia com Putin, a NATO veio dizer que a proposta de negociações e calar das armas, lançada pelo Presidente russo, não vai ser aceite. Estão de acordo e a guerra, portanto, vai continuar.
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Por muito que os Estados Unidos, a NATO, o G7 e as capitais europeias condenem a guerra e a anexação das quatro regiões da Ucrânia, e por muito que enviem armas cada vez mais sofisticadas para a Ucrânia, a consumar-se a entrada da Ucrânia na NATO, seria uma surpresa e o caminho aberto, então sim, para uma guerra mundial.
Momento para a paz?
Dificilmente os inimigos vão estar de acordo quanto ao momento ideal para a paz. Ela acontecerá, sempre, quando um deles, ou até os dois, perceberem que têm mais a perder do que a ganhar, seja por exaustão, por dificuldade de manter a capacidade militar ou por isolamento internacional.
No caso da Rússia, Putin sabe que tudo tem um limite e que dentro desses limites este é um momento em que pode “cantar” vitória. Provavelmente saberá que o prolongar da guerra aumentaria a contestação interna; provavelmente sabe que em termos militares um maior avanço em território ucraniano implicaria levar a guerra para outro patamar, mais violento e destruidor, com consequências que poderiam escapar ao seu próprio controlo; provavelmente saberá que tem mais a ganhar em consolidar os ganhos conquistados do que em entrar numa aventura que poderia condicionar os apoios que ainda tem ou, pelo menos, a ausência de crítica por parte de alguns aliados de Moscovo.
Na reunião do Conselho de Segurança no dia da declaração de Vladimir Putin, a Rússia vetou uma declaração preparada por Estados Unidos e Albânia, mas a abstenção de China, Índia, Brasil e Gabão, revela que a Rússia não está isolada. A declaração condenava os referendos efectuados nas quatro regiões da Ucrânia agora abexadas pela Rússia.
No caso da Ucrânia, a manter-se a actual relação de forças no terreno, perde cerca de dois terços do acesso ao Mar: Mar Negro e Mar de Azov; perde 15 a 20% de território (a situação ainda é volátil e o Donbass não está totalmente controlado pela Rússia) e é um país em cacos que vai precisar de fortes apoios internacionais para recuperar tudo o que a guerra destruiu. É difícil a qualquer liderança aceitar a perda de território mas, não sendo o que certamente os ucranianos pretenderiam, Zelensky pode sempre dizer que a Ucrânia resistiu à invasão russa. O Mundo já viu a capacidade de resistência dos ucranianos e nessa matéria já não têm nada a provar.
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Estando tudo isto em jogo, a questão é a de saber se a continuação da guerra – com as consequências que isso terá em termos de morte e destruição – valerá a pena. Os ucranianos, deduzo, dirão que sim, que vale a pena, até que as tropas russas deixem por completo o território da Ucrânia; os russos, não faço ideia o que dirão, mas sabemos que Vladimir Putin está disposto a parar a guerra e negociar. E não, negociar agora a paz não é um prémio para o agressor e um castigo para o agredido, mas sim o estancar de uma guerra cuja destruição atroz já provocou demasiado sofrimento. A paz conquista-se com cedências e sempre se fez entre inimigos. Putin começou a guerra mas “chutou” agora a bola para o campo da Ucrânia e de quem a apoia. A grandeza dos líderes políticos também pode estar num estender de mão ao inimigo mesmo que este não o mereça e não é necessariamente um sinal de fraqueza. O povo ucraniano tem certamente uma palavra a dizer.
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