"Se em Cuba faltam comida e medicamentos, não é por causa do bloqueio americano"
Guillermo Fariñas é um dos mais conhecidos opositores cubanos. Já fez 26 greves de fome pela democracia na ilha. Entrevista com o Prémio Sakharov 2010 antes dos protestos marcados para dia 15.
OGuillermo Fariñas, li numa notícia que esteve detido algum tempo há dias, esteve em parte incerta. O que é que aconteceu?
Bem, o problema é que eu estou de cama, em repouso, há mais de um mês e tive febre e inflamação no rim direito, inflamação no apêndice. Os exames mostraram que tenho uma bactéria no rim. E os antibióticos que se conseguem dentro de Cuba, não são o que realmente neutraliza esta bactéria. Estou à espera de medicamentos que um exilado cubano ficou de me mandar. E a minha mãe, por outro lado, que tem 86 anos, partiu a perna, há um mês que não nos víamos, embora vivamos relativamente próximos, a uns 15 ou 20 metros.
Ela queria vir ver-me de qualquer maneira e eu dizia-lhe para se deixar estar que eu a ia ver. A comunicação telefónica estava a ser escutada pela Segurança do Estado. Quando saí de casa com a ajuda da minha irmã, fui detido. Quando estávamos à frente da casa da minha mãe, uma viatura da Polícia Nacional Revolucionária e da unidade antimotim parou, pediram-me que os acompanhasse, começaram a debater, a discutir. Eu disse que estava doente, mas tudo bem, não tenho nenhum tipo de medo, por isso vamos, subi para o carro. Levaram-me para a Unidade Provincial de Investigação Criminal e Operações. Fiquei lá cerca de 45 minutos, uma hora. É verdade que me levaram para ver um médico e uma enfermeira no posto médico. Porque eu tenho muitas dores, principalmente quando fico em pé, o meu rim direito dói muito, está inflamado. A médica olhou para mim e disse que sim, são os sintomas clássicos da doença com essa bactéria e fizeram-me voltar ao cubículo número sete, que é normalmente onde me colocam quando me prendem.
Ouça aqui, na íntegra, a entrevista da TSF com Guillermo Fariñas
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Depois levaram-me para outra esquadra, que não sei bem onde fica, porque me pedem para baixar a cabeça num carro que tem todas as janelas com vidros escuros. Não se pode ver bem onde estamos. E lá fomos, foi aí que tivemos a... eu não lhe chamaria conversa, mas sim interrogatório. Os interrogatórios têm uma modalidade de conversação, mas foi, na verdade, um interrogatório. Disseram que me podiam resolver a situação de saúde, que me podiam pôr a soro num hospital, eu disse não, que o fazia em casa da minha mãe. Eles queriam saber se ia sair à rua em protesto, porque me tinha mostrado solidário com os meus compatriotas que estão a ser reprimidos com vista à manifestação do dia 15 e eu fiz um apelo para monitorarmos e relatarmos o que acontece antes, durante e depois do dia 15. Eles também me disseram que a nossa estrutura, o FANTU, Fórum Anti-totalitário Unido, estava a dar indicações que íamos sair à rua em protesto. Eu disse-lhes que o FANTU não é um organismo público, é autónomo, e não tenho tido tempo devido à questão de saúde, para me reunir com a direção, o que pode ter gerado boatos. E aí também me lembraram, daí a ameaça implícita, que na última sessão plenária do Comité Central do partido, foi dito claramente que não havia tolerância de qualquer espécie. Isso foi o essencial do interrogatório e depois fizeram-me regressar a casa.
E quanto tempo durou esse interrogatório?
Bem, eu fui preso exatamente às 11 da manhã e devem ter-me transferido por volta do meio-dia. E soltaram-me às quatro da tarde, ou seja, o interrogatório deles deve ter durado por aí cerca de quatro horas.
Foi um interrogatório com ameaças ou com intimidação física ou apenas perguntas?
Não, isto é, foi antes um interrogatório que girava em torno de quatro pontos específicos. Ou seja, eles conhecem toda a situação que tenho de saúde. E estavam a fazer-me um convite para que um hospital pudesse resolver-me o problema. Com uma boa gama de tratamentos, o soro de que preciso para eliminar as bactérias que tenho no meu rim, eles sabem muito bem disso. E também sabem perfeitamente que os medicamentos que vêm do exterior chegam esta semana. Deram-me essa possibilidade e eu disse-lhes que não. De qualquer maneira, já tinha combinado com a minha irmã e a minha mãe que eu ia fazer o tratamento em casa da minha mãe quando chegarem os medicamentos...
Outro tema que falámos é que eles estão muito preocupados pelo meu posicionamento em relação ao dia 15 de novembro, se vou ao protesto, se não vou, porque dizem que foi veiculado nas redes sociais as minhas opiniões solidárias, mas eu não lhes disse se vou sair à rua ou não. Disse-lhes "têm que descobrir, façam o vosso trabalho. Se vou sair ou não e juntar-me ao protesto? Isso saberão no dia 15".
O senhor disse que os ativistas que promovem a manifestação civil pela mudança convocada para 15 de novembro precisam de solidariedade para enfrentar a repressão do regime...
Sim, solidariedade pela repressão que eles estão a ter ainda antes da manifestação, que é preciso estar muito atento e relatar tudo o que acontecer com cada um durante a marcha. E sobretudo o que acontece depois da marcha. Isso foi mais ou menos o que eu disse nas redes sociais.
Foi por razões políticas que não aceitou ajuda do Estado para a sua situação de saúde?
Por outras palavras, não gosto de ter que dever nenhum tipo de favor aos meus adversários políticos, isso em primeiro lugar. E depois, analisando, acredito que o que querem é que eu fique fora de circulação, internado no hospital durante a marcha de 15 de novembro. Ou seja não há lógica naquela 'bondade'. Como o tratamento indiscutivelmente está bastante próximo, vai acabar bem perto do dia 15, já me tinham ali. E depois, a alta hospitalar, decidiam quando ma deviam dar.
Aos 59 anos, o Coco Fariñas lidera o Fórum Unido Anti Totalitário... é um movimento ilegal. Porquê?
Bem, é a evolução da República de Cuba. Desde 1960, nenhum outro partido que não o Partido Comunista de Cuba é aceite.
Isso, nós já sabemos. A minha questão é: o que sente quando é preso por alguém que dirige uma organização chamada ou um órgão chamado Unidade Provincial de Combate à atividade subversiva inimiga? Você, Guillermo Fariñas, é um inimigo de Cuba?
Bem, eu não me considero um inimigo de Cuba, considero-me um patriota que está a tentar conseguir o melhor para seu país. Mas sim, é assim que eles se autodenominam Unidade Provincial de Combate à atividade subversiva inimiga, já que existe um departamento, a nível nacional, chamado Departamento Inimigo. Em outras palavras, eles consideram que tudo o que envolve retirar, mesmo pacificamente, do lugar privilegiado e único o Partido Comunista de Cuba, uma questão subversiva. Portanto, legalmente eles dizem que se pode pensar diferente. Mas, na verdade, nada pode ser feito para que essas diferentes opiniões e pensamentos se materializem na práxis. Portanto, é um beco sem saída, aquilo que eles apresentam nas suas próprias leis.
O que espera do dia 15? Sei que cidadãos de várias localidades assinaram documentos, notificando as autoridades da sua intenção de entrar com um processo exigindo respeito pelos direitos humanos e libertação de presos políticos. Qual é a vossa expectativa quanto ao que possa acontecer nesse dia?
Primeiro, penso que no dia 15 haverá uma militarização descomunal da sociedade cubana. Até mostraram através das redes sociais a preparação da Brigada de Resposta Rápida, que as Brigadas de Resposta Rápida nada mais são do que formações paramilitares para atingir impunemente aqueles que saem à rua para exigir o direito à mudança em Cuba. Acho que vai ser muito difícil nesse dia conseguir algo, porque como eles já estão avisados, vão mobilizar-se para impedir o impacto dos protestos nessa ocasião. Mas a faísca para sair à rua já está na rua, já está dentro da sociedade, dentro dos cubanos após o 11 de julho. A repressão hoje pode acontecer em qualquer dia sem uma razão específica ou um horário e dia específicos ou um local específico. Quer dizer, eles estão a mostrar intolerância. Eles, a junta militar, porque para mim, Cuba não é um governo, mas uma junta militar, isso é o que traz mais violência, maior intolerância pela ausência de rostos. E o mais importante é essa violência ser sempre levada a cabo por aqueles que exercem o poder, ou que apoiam os que estão no poder.
Após os protestos antigovernamentais em julho, várias pessoas foram presas, expulsas dos seus empregos, atacadas nos media estatais. E como tem sido a vida para essas pessoas no seu quotidiano? Como tem sido a vida para essas pessoas nas suas comunidades, nos seus bairros?
É bom lembrar que grande parte das pessoas que saíram à rua no dia 11 de julho e a maioria dos que estão presos após o dia 11 de julho são pessoas que não tinham filiação política a nenhuma organização da sociedade civil ou de oposição interna. Por outras palavras, o surto social ocorreu de certa forma espontâneo. Pelo acumulado de deficiências e dificuldades. Eu acredito que essas pessoas finalmente dão-se conta da repressão que estão a sofrer, seja na medida em que se encontram na prisão, ou que aguardam julgamento, ou pelos próprios familiares dessa pessoa. A partir daí, como cidadãos cubanos, estão a perceber que as leis são constantemente ignoradas e é feito o que diz a Junta Militar. Por outras palavras, as pessoas estão a perceber que as leis não existem e pessoas que simplesmente foram presas por estarem a protestar, as autoridades pedem para elas uma quantidade de anos de prisão absolutamente desproporcionada. Falo de pessoas para as quais pedem quinze e vinte anos de prisão ou oito anos de prisão, simplesmente por dizerem o que pensam. E eles sabem que não partiste nada, não utilizaste a violência para dizeres o que pensas. Portanto, estas pessoas estão surpreendidas. E digo-lhe mesmo: não são apenas as pessoas que protestaram e estão presas que estão a ser alvos de repressão, mas também os seus familiares, porque estamos em comunicação com muitos deles, estão muito surpreendidos com o nível de repressão que existe atualmente em Cuba e, sobretudo, com o nível de impunidade que existe por parte dos repressores e dos que com eles colaboram.
Qual é a sua reivindicação, Guillermo Fariñas? Qual é a sua luta neste momento?
Bem, a do costume, aspiramos restaurar a Constituição de 1940, que foi a última que foi realmente votada democraticamente, restaurá-la provisoriamente até que uma nova Constituição seja feita e restaurá-la para tentar restaurar a democracia representativa em Cuba. Esse é o nosso principal objetivo nessa luta que carregamos, no meu caso, há quase trinta e um anos.
Quantas greves de fome já fez?
Bem, fiz... mais curtas ou mais prolongadas... 26 greves de fome.
Primeiro, protestos contra o governo de Fidel, depois contra o governo de Raul. Foi preso três vezes, acho que cumpriu um total de onze anos e sete meses na prisão... não está cansado?
Não, não, nesta batalha eu pelo menos, não tenho o direito a cansar-me. Respeitamos os irmãos que se cansam e querem fazer outra vida lá fora, ou que querem deixar a oposição e ficar em Cuba, mas acredito que no meu caso não tenho o direito de me cansar.
O que mudou em Cuba com a transferência do poder de Raul Castro para Miguel Díaz-Canel?
Bem, na verdade, eu penso que isso foi feito muito antes. Ou seja, a mudança, uma mudança parcial de poder, foi feita em 1989, quando o então Ministro das Forças Armadas ocupou o Ministério do Interior sob o pretexto número um, nessa altura, de casos contra dois generais. Acreditamos que a partir de 2006. já houve a tomada total pelos seguidores de Raul Castro e a instalação de um grupo de generais como verdadeiro poder. Acreditamos que Miguel Díaz-Canel tem participação no poder, especialmente dentro do Partido Comunista de Cuba, mas não é ele quem dá a última palavra. Ou seja, acreditamos que uma junta militar chefiada nesta época por Raul Castro é quem diz a última palavra e Miguel Díaz-Canel é apenas uma figura do marketing político para poder vender para aos Estados Unidos, à União Europeia e a outros blocos políticos porque tem a mão menos manchada de sangue. Eles não o apresentam como um militar. Simplesmente, é uma operação de marketing público.
Mas essas são as pessoas que, embora possa haver uma certa abertura económica no turismo, existem os chamados empresários por conta própria, apesar de tudo isso, essas são as pessoas que controlam a economia cubana...
Sim. Ou seja, não somente a economia. Por outras palavras, a economia é controlada pelos militares, mas por exemplo todos os serviços especiais, os três serviços de inteligência que possui o castrismo são controlados por Alejandro Castro Espín e o seu Conselho de Segurança Nacional, que é um poder nos bastidores, mas é um poder real. A classe dominante até ao nível municipal, é controlada também pelo neto de Raul Castro. Rodríguez Castro, que realmente é aquele que tem a última palavra na Direção de Segurança Pessoal do Ministério do Interior. Por outras palavras, existe um grupo de militares que são quem realmente tem o poder autêntico. Isso é o que chamo de junta militar, que é quem manda em Cuba. Ou seja, o Ministro do Interior estudou com os filhos de Raul, o Ministro da Defesa, o Ministro das Forças Armadas Revolucionárias é filho de comunistas espanhóis derrotados em Espanha e combatentes na Segunda Guerra Mundial, no KGB. Mais tarde, veio para Cuba e foi um professor universitário. Ou seja, tratava-se de um grupo de pessoas que são incondicionais ao ideal comunista e incondicionais a Raul Castro, que são realmente os que possuem mais poder. Se virmos quem é o primeiro-ministro, ele é um coronel das forças armadas revolucionárias (FAR), foi assistente executivo de um ex-ministro das FAR. Por outras palavras, tudo está concatenado, tudo está muito relacionado entre si.
A situação do país é crítica na economia, há problemas estruturais que o sistema traz. A situação foi agravada pela pandemia. No ano passado, o PIB caiu mais de 10%, mas há também o forte impacto do bloqueio do governo Trump, que Biden não mudou. Qual é para si o impacto do bloqueio dos Estados Unidos na situação cubana?
Eu não partilho dessa visão. Há uma cláusula dentro das relações entre Cuba e os EUA, que torna possível a compra de medicamentos e alimentos em qualquer quantidade. A única condição é que você tenha que pagar por isso. Por outras palavras, o bloqueio não existe. O bloqueio é uma falácia do Governo, da Junta Militar, porque a Junta Militar aspira ser financiada pelo seu inimigo. Não aspiram a ter medicamentos nem a obter alimentos para o povo cubano, aspiram que os investidores norte-americanos possam investir em Cuba e que continuem no poder, como por exemplo aconteceu... porque isso aconteceu... no Vietname. Isso aconteceu em Angola e eles aspiram a isso. Por outras palavras, há um alto grau de cinismo. Usam o bloqueio como pretexto, quando na realidade os dois grandes problemas que os cubanos têm neste momento são a comida e os medicamentos. Eles podem comprá-los perfeitamente e não compram justamente para criar pressão dentro da diáspora cubana, que a maioria está nos Estados Unidos, para pressionar as diferentes partes e finalmente levantar o embargo, para depois fazerem os investimentos que são feitos em Cuba por empresários norte-americanos.
Mas não aceita a ideia de que existem fortes limitações aos fluxos financeiros, restrições aos países e empresas que negoceiam com Cuba? Tudo isso está previsto no embargo norte-americano...
Sim, tudo isso está previsto no embargo norte-americano, mas o que bate forte no cubano é a comida e são os medicamentos. E isso eles têm de forma completamente aberta nos Estados Unidos. E se em Cuba se passa fome ou se em Cuba faltam comida e medicamentos, não é por causa do bloqueio americano é porque eles não querem investir, porque estão a usar a cidadania como refém para os EUA cederem. E a isso chama-se cinismo político.
Guillermo Fariñas, o que é que o Prémio Sakharov significou para si?
Bem, para mim significou um compromisso maior. Um compromisso no sentido de que temos de estar aqui em Cuba até às últimas consequências. Isso é o que significou para mim.
E por outras palavras, ficou mais difícil pará-lo, prendê-lo e fazê-lo desaparecer...
Acho que sim. Quero dizer. Depois do prémio Sakharov, têm sido muito raras as pancadas e as detenções. Para outras pessoas são mais frequentes. As detenções, no meu caso, depois do Prémio foram curtas, quando muito foram horas e ou foram dias, e o custo político dessas detenções foi muito alto, segundo eles próprios.
Atualmente, tem autorização para viajar para o estrangeiro?
Bem, pelo que posso ver, sim. Até agora ou em qualquer momento eles não me disseram que eu não deveria sair. Ao contrário, eles estão constantemente a encorajar que eu vá embora. 'Vai, porque não vais?' Eles gostariam de me ter o mais longe possível.
Mas para si, a opção é ficar e lutar em Cuba...
Sim, sim, sim. Quer dizer, a minha posição é estar aqui, ficar em Cuba, para dar o corpo às balas e às agressões , estar aqui se nos prendem ou nos ameaçam. Essa é a minha posição.
Qual é o seu sonho para Cuba, Guillermo Fariñas?
Eu creio que o meu sonho principal para Cuba é a implantação da democracia representativa e o perdão entre os cubanos e a coexistência das diferentes tendências políticas. Acredito que seria feliz e poderia morrer em paz no dia em que essas três coisas acontecessem em Cuba.
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