sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Saramago: 20 anos depois do Nobel, por Anabela Mota Ribeiro...

 

Saramago: 20 anos depois do Nobel

Aquela tshirt que diz assim: “Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas eu já teria desistido da vida”. Que há nesta frase, com fumos quixotescos, além da óbvia exortação à vida? Eu sublinhei a palavra “esperanças”, talvez porque escrevo no domingo-7 de Outubro, dia de eleições, e a cabeça vai da Azinhaga ao Brasil num instante. Acompanha esse movimento um cheirinho de alecrim, lá estão carentes, guardámos algumas sementes. Não sei que palavras diria Saramago na antecâmara de um eventual desastre, as palavras exactas. Tenho a presunção de adivinhar que seriam palavras de luta, de resistência. Nem sei, à hora a que escrevo, encerradas as urnas, contagem a decorrer, da espessura do problema. Pode ser que este sonho negro se desvaneça sem danos irremediáveis. Porque há esperanças que é loucura não ter, são essas que não podemos dispensar. São o supremo privilégio e o oxigénio que nos sustenta. Uma exorbitação e o concreto. Que outra hipótese temos, afinal? Recupero uma frase de Saramago que dá consistência às suas esperanças, aos seus sonhos, que não nos permite virar a cara: “A ética, quando exercida, como é desejável, sobre o concreto social, é talvez a menos abstracta de todas as coisas: presença calada e rigorosa, ainda que variável no tempo e no espaço, aí está, com o seu olhar fixo, a pedir-nos contas”.  

É domingo de manhã e estamos na Azinhaga, terra de onde esta árvore, que Saramago foi, é, sempre disse que havia brotado. Neste “estamos” inclui-se António Costa, Pilar del Río, Violante e Ana Saramago Matos, presidentes de câmara e presidentes de junta de freguesia do Ribatejo, individualidades (como se diz nos discursos para arrumar a questão), povo amado (entenda-se aqui: gente da terra, senhoras antigas que nunca sonharam dar um beijinho ao primeiro-ministro, no encontro da rua das Forças Armadas com a rua Catarina Eufémia, velhos amigos que abraçam efusivamente a filha do escritor), leitoras, leitores, a Ana da tshirt com a frase supra-citada e outras pessoas da terra que leram e cantaram, os muitos que foram à festa. Celebram-se os 20 anos da atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago. O prémio que nos fez levantar a todos em alegria, de orgulho. Estamos aqui porque “nós somos muito mais da terra onde nascemos, e onde fomos criados, do que imaginamos”, e José Saramago, Zezito, é daqui. Sabemos da Azinhaga por causa dele, sabemos dos seus avós por causa dele, sabemos da margem do rio, de um certo lagarto verde que no seu imaginário se associa à perda da inocência. Efabulamos percorrendo os seus passos de criança pequena, como havíamos feito na leitura d’ As Pequenas Memórias, mas agora vemos uma nespereira, um marmeleiro, limoeiros, figueiras, oliveiras, o rio poluído e invadido por jacintos, algumas pessoas na margem oposta à do campo de trigo na sua vida de todos os dias, destroços, o rio parado como metáfora da infância dentro de cada um de nós, o chilreio dos pássaros, cavalos, um cheiro a bosta, o perfume intenso da hortelã.

Outra tshirt: “A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver”. Nesta vida breve, Saramago passou do rapaz que andou descalço e comprou os primeiros livros já adulto, com dinheiro emprestado, a escritor consagrado que recebe das mãos do rei da Suécia o mais importante prémio literário do mundo. Dir-se-ia que viveu muito mais do que seria conjecturável, que distância assombrosa percorreu... E, no entanto, há sempre pelo menos outro tanto que não somos capazes de abarcar. Que outras vidas poderia viver ainda? Além das vidas que viveu e das vidas-personagens que criou (nutro carinho particular por Blimunda).

Na véspera, sábado, foi quando esta viagem começou. Começou pelo fim, em Lanzarote, que não é a sua terra, pero es terra sua. Foi na casa da ilha canária que o escritor faleceu, em 2010. Foi aí que António Costa e Pedro Sánchez se encontraram pela primeira vez desde que são responsáveis máximos pela governação de Portugal e Espanha. Os discursos foram na biblioteca do escritor, antes houve visita à casa conduzida por Pilar, o grupo era numeroso, o que fez a casa parecer pequena, antes de tudo foi a visita à casa do artista lanzarotenho César Manrique, um deslumbre. Na casa de Saramago, uma jangada ibérica onde proliferaram os sonhos e as possibilidades e onde compôs as obras posteriores a 1993, o escritor foi feliz. Vemos o seu escritório mantido tal qual. O lugar do copo de água. A almofada aos pés onde se aninhava o cão. As fotografias de todos os lugares. O desenho do avô a despedir-se das árvores de que falou Pedro Sánchez no seu discurso. Memorabilia. O computador obsoleto que guardava um caderno-diário, justamente do ano da atribuição do Nobel, esquecido numa intermitência do tempo. Pilar descobriu-o há meses, por acidente, e temo-lo para celebrar esta data redonda. O Último Caderno de Lanzarote é posto à venda amanhã, 8 de Outubro.

Quando me lerem, o dia terá passado, o livro já estará disponível nas livrarias, Marcelo Rebelo de Sousa terá feito a abertura oficial do congresso internacional dedicado ao escritor, em Coimbra (mais de 60 académicos de todos o mundo, três dias de discussão, coordenação de Carlos Reis).

Escrevo em Coimbra, penso novamente no Brasil. Quando me lerem, já se saberá o que resulta desta noite ameaçada. É entre essa sombra e a reverberação da felicidade de há 20 anos que vou andar. Para me acompanhar, e porque preciso de esperanças, escolhi estas palavras de felicitação de Susan Sontag, coligidas no livro de Ricardo Viel, entre tantas outras: “Meu queridíssimo José! Finalmente os suecos fizeram o que deveriam – precisamente quando pensávamos o pior deles, depois de demasiados prémios irrisórios. Tu és o meu candidato há anos (e eles sabem isso)... Sendo assim, a notícia deu-me muita felicidade – por ti, pela literatura. Abraço-vos com força, a ti e a Pilar”.   

 

Texto publicado originalmente no Jornal de Letras em 2018

 

 

Alberto Carneiro, escultor, por Anabela Mota Ribeiro...

 

Alberto Carneiro

Alberto Carneiro é escultor. Nasceu em 1937 numa aldeia perto da Trofa. Mesmo quando percorreu o mundo, nunca saiu de São Mamede de Coronado. Foi santeiro, inventou um mundo, reencontrou-se com o seu. Inaugurou recentemente Arte Vida / Vida Arte no Museu de Serralves e Meu Corpo Vegetal, no Teatro da Politécnica dos Artistas Unidos.

No corpo de uma árvore podemos seguir o trajecto da sua vida.

No fim da entrevista regressaria a São Mamede de Coronado, onde vive. É lá que fica tudo o que lhe é essencial. Foi lá que tudo começou. Na véspera tinha inaugurado uma exposição em Lisboa. A debilidade física era evidente, mas o que exibia era uma atitude voraz em relação ao mundo.

“Cada obra de Alberto Carneiro pressupõe o facto de uma nova forma de arte ser também uma nova forma de vida (…). Os materiais da [sua] escultura provêm da natureza e será na natureza que se reencontram com a sua condição de arquétipos”, escreveu João Fernandes no catálogo da exposição que pode ser vista no Museu de Serralves. O escultor pretendia fazer uma exposição-manifesto. Tinha coisas para dizer. Tem coisas para fazer. Montou a exposição numa cadeira de rodas. O que não perdeu, mesmo na cama de hospital: o prazer de riscar, desenhar, fazer mundo.  

Recuperou, apesar do andar titubeante e da magreza. Anseia pelo momento em que possa, de novo, usar a electro-serra. Tem ainda uma cara de menino, sobretudo quando sorri.

 

Vamos à cerejeira da sua infância?

Era a única árvore que havia no quintal. Um quintal muito pequenino. Uma grande cerejeira, com muitos anos. Construí a minha casa na cerejeira. Com a ajuda do meu pai. Era o meu refúgio. Sair para cima da cerejeira. Anos mais tarde, o meu pai decidiu cortá-la, já eu era adulto. Transformei-a numa escultura.

 

Era a mesma árvore, a mesma noção de casa, mas eram diferentes maneiras de se encaixar nela.

Pois. Relaciono a casa da cerejeira (o lugar onde passava o meu tempo) com a escultura, não separando as duas coisas. No dia 12 de Dezembro de 1968, eu estava em Londres, tive a consciência de que não havia separação entre a vida, o meu quotidiano, a essência dele, e o meu trabalho. Tomo a decisão de ir à minha experiência de vida, fazendo uma prospecção dentro do meu mundo infantil e da minha relação com a natureza. A cerejeira está lá como lugar, como memória, como qualquer coisa que não se perdeu e que se mantém na escultura.

 

Como foi esse dia 12 de Dezembro de 1968? Fala dele como se fosse uma epifania.    

Os dados da minha reflexão mudaram. Correspondia a encontrar algo que fosse mais autêntico. Que pertencesse mais à minha vida. Que decorresse da minha experiência. Quando cheguei a Londres, não estava satisfeito.

 

Insatisfação é uma boa palavra para si?

É. É a partir da insatisfação, da inquietação – inquietação é mais correcto – que chego ao questionamento. Creio (não posso afirmar em absoluto) que sou anti-académico. Tenho uma reserva muito grande relativamente aos meus reflexos condicionados.

 

O seu trabalho, a sua busca, é no sentido de encontrar o que está antes da convenção, do condicionado, do académico. Voltemos à cerejeira. Pode descrevê-la?

A cerejeira física? Era uma árvore frondosa, que dava frutos maravilhosos. Subia à árvore, andava pelos galhos, felizmente nunca caí. Como não tinha grande peso, chegava aos ramos mais compridos. O tronco era relativamente rugoso, como são os das cerejeiras. 

 

Se me apresentasse a cerejeira, como se apresenta uma pessoa, diria o quê? Sólida, sonhadora, altiva?

As árvores têm uma personalidade. Tenho uma relação visceral com elas. Diria que era uma árvore elegante. Mais feminina do que masculina. As formas eram redondas, suaves. Apelava ao tacto. Casca rugosa e macia, pouco acidentada. Os acidentes provocam sensações.

 

Como é que é o interior? Como é que é a madeira da cerejeira?

Tem uma estrutura de veios, como todas as árvores, mas diferente da do carvalho, por exemplo. Tem uma cor rosada, que se vai acentuando com o envelhecimento.

 

Se tudo está lá atrás, e o que procura é um encontro com esses sedimentos da infância, queria que me dissesse como era o lugar onde nasceu.

Oh, a minha infância foi particular. Era filho único. O que seria o meu irmão mais velho morreu antes de eu ter nascido. A outra irmã nasceu quando eu tinha seis ou sete anos. Morreu também um ano depois. Na altura morria-se muito. O cemitério da freguesia tinha a chamada zona dos anjinhos. Hoje já não tem. Hoje as crianças raramente morrem. É nesse cemitério que estão sepultados os meus pais, os meus amigos.

Os meus pais tinham uma situação muito humilde. A minha mãe era peixeira e o meu pai era surrador.

 

O que faz um surrador?

Surrador é aquele que trabalha numa fábrica de curtumes. Tratava das peles. Surrava as peles. É um modo de limpar. Ganhavam pouco. Eu tinha uma vida modesta. Mas tinha um território imenso de liberdade.

 

A aldeia toda?

A aldeia toda. Em casa não havia dinheiro para brinquedos, tinha que inventar os meus brinquedos. Com a terra, os pauzinhos, folhas. Era um gesto solitário de invenção do brinquedo.

 

Desenhava muito na terra com pauzinhos? O riscar é um gesto infantil.

Desenhava. Tenho memória de mim a fazer esse movimento, a inventar formas, a fazer estruturas com bocados de árvores. Ao fundo do vale havia um ribeiro (hoje passa lá uma auto-estrada, desviou o ribeiro). No ribeiro eu podia recolher a terra húmida, para a modelar melhor. Passava horas neste deambular.

 

Não mencionou as pedras. Porque é que as pedras, ao contrário das folhas, pauzinhos, bocados de árvores, que virão a ser os seus elementos escultóricos essenciais, não o atraíam?

As pedras chegam mais tarde. Um dos meus trabalhos fundamentais, “Trajecto dum Corpo”, é construído à volta das pedras. Deslocando a pedra do mar até à montanha, furando a pedra, passando através da pedra, o meu corpo passando através da pedra. Normalmente uso os calhaus rolados, os maiores, os mais pequenos.

 

Descreva-me a aldeia. E como era nascer em 1937 numa aldeia como São Mamede de Coronado?

Estava-se fechado ali. Só aos oito, nove anos fui ao Porto. Eram 20 quilómetros de distância.

 

Foi então que viu o mar pela primeira vez?

Vi o mar a primeira vez aos sete anos, na Póvoa do Varzim. Foi um grande impacto. Ficar diante daquela imensidão... O movimento e o som do mar... Impressionou-me muito.

 

Recolheu pedrinhas? Fez formas com a areia molhada?

Não me recordo.

 

Foi numa visita escolar?

Não. Foi o meu pai que me levou. De bicicleta. Vinte e tal quilómetros. O meu pai andava de bicicleta, como toda a gente andava. Punha uma cadeirinha na bicicleta, onde me levava a passear, aos domingos, às vezes.

 

Pediu que o levasse?

Não. Foi ele que decidiu. Guardo desse momento uma série de imagens boas.

 

Para já de intimidade com o seu pai.

Sim. De qualquer modo, tinha uma intimidade maior com a minha mãe. A minha mãe era analfabeta. O meu pai era semi-analfabeto. Sabia assinar e ler aos saltinhos. A minha mãe marcou-me tremendamente. Morreu muito jovem, com 52 anos. Não tendo cultura, inventou uma maneira de fazer as contas do seu negócio. Com tracinhos. Somava, multiplicava. Nunca se enganava.

Aos 10 anos acabei a instrução primária. Era uma espécie de menino espertinho. E muito da igreja. O padre adorava-me. Era suposto ir para o seminário.

 

Era uma via para meninos de origem humilde e dotados continuarem a estudar.

Sim, era muito habitual. Mas eu tive a clarividência de dizer que não. Se eu tivesse ido, hoje seria cardeal! [riso] A minha mãe entendeu muito bem, protegeu a minha decisão. O meu pai, nem tanto.

Em vez de me porem a carpinteiro ou trolha, resolveram falar com o mestre de uma das três das oficinas de santeiro que havia em São Mamede. Numa delas, entre pintores e escultures, trabalhavam cerca de 50 pessoas. Conseguiram que eu entrasse como aprendiz.

 

Antes disso: porque é que recusou de modo tão categórico o seminário? Consegue perceber a intuição do menino que foi?

Percebi que não tinha vocação e que aquilo ia ser uma prisão. Mais uma. Em cima de outras.

 

A pobreza era uma prisão?

Pessoalmente nunca senti a pobreza, em sentido estrito. Até porque, dado o negócio da minha mãe, nunca passei fome. Acima de tudo, sentia (era uma intuição) que havia uma miséria espiritual – não no sentido religioso, mas no sentido verdadeiro do espírito, de cultura. Não por acaso, mais tarde, para combater isso, e com grande esforço físico, decido estudar à noite.

 

A sua mãe ainda era viva quando foi para Londres nos anos 60?

Não. Morreu em 63, fui para Londres em 68. Eu estava a acabar o primeiro ano do curso das Belas Artes.

 

A sua mãe percebia o quanto poderia crescer, evadindo-se das prisões que apontou?

Sim. Ela ajudou-me imenso. Dando-me liberdade. O meu pai actuava criticamente sobre as minhas decisões. A minha mãe era muito tolerante. Posso contar: fiz a tropa, um ano em Lisboa; quando regressei levava uma decisão: não viver mais em São Mamede. Tinha feito o quarto ano nocturno do curso de escultura decorativa na [escola] Soares dos Reis, no Porto, e queria ir para as Belas Artes. Fiz um balanço.

 

Como foi isso?

Foi entre os 17 e os 20 anos. Ia de bicicleta de São Mamede para o Porto. Fazia 40 quilómetros diários. Depois de oito horas de trabalho. Cinco horas de aulas. Foi um bocado duro, não é? Mas realizou-se.

Quando regressei da tropa não estava disposto a continuar com a mesma vida. Disse isso aos meus pais – que ia abandonar a actividade de santeiro. A minha mãe perguntou-me: “Vais viver como?” “Logo se arranja alguma coisa”. E arranjou-se.

 

Foi fazer o quê?

Consegui dar aulas de ginástica (com a ginástica que tinha aprendido na tropa) no Colégio dos Órfãos do Porto; domingo de manhã, dava em Vila do Conde. Simultaneamente consegui entrar no Jornal de Notícias, para a secção desportiva. Dois anos. Fiz reportagenzitas não-assinadas. Até que a Gulbenkian me deu uma bolsa de estudo.

 

Então, santeiro.

Sim!

 

Aprendeu a moldar, a pintar, a olhar?

Aprendi a esculpir. Acima de tudo aprendi um ofício.

 

Era o que os rapazes, daquele tempo e daquela condição, deviam aprender. Qualquer que fosse o ofício. Um modo de vida, como se dizia.

Pois. Costumo dizer que aprendi um ofício com o corpo. (Mais tarde vamos à consciência do corpo e à descoberta de mim mesmo?

 

Sim.)

Está a ver esta cicatriz no dedo? Foi um corte que fiz. O dedo abriu como abre uma banana. Porque estava a cortar mal. Estava a prender madeira; em vez de a prender com a mão para cá, prendi com a mão para lá. Foi assim que aprendi a pegar num bocadinho de madeira. Nunca mais peguei de maneira torta. [riso] 

 

Era pequeno quando isso aconteceu?

Tinha 10 anos. Foi quando comecei. Aprendi efectivamente com o corpo, com a consciência que se tem das coisas a partir do momento em que se sofrem as consequências do acto. O meu vínculo à madeira (como material fundamental da minha obra) tem a ver com a passagem pela oficina de santeiro e com o grande domínio que tenho sobre os instrumentos que actuam na madeira. Aprendizagem aturada, de vários anos.

 

Enquanto santeiro, que madeiras, mais do que tudo, trabalhava?

Trabalhava-se muito com madeiras tropicais. Cedro do Brasil. É uma madeira que tem um sabor muito amargo.

 

Como é que sabe? Cheirava, provava o suco?

Não. Eu tinha o hábito de cortar a madeira e meter cavaquinhos na boca. Para mastigar. Como se fosse uma chiclete. Não engolia, deitava fora. Por isso conhecia os sabores de todas as madeiras com que trabalhei. 

    

Qual é a mais saborosa?

Talvez seja a cerejeira.

 

O sabor é parecido com o da cereja?

Sim. Não é doce, mas aproxima-se. O pó do cedro do Brasil, o pó que ficava no ar ([os santos] eram polidos antes de ser pintados), era muito amargo. Trabalhava-se muito, também, a tola, uma madeira africana.

 

Porquê essas?

Eram macias, mais macias do que o mogno. E duravam mais tempo. Eram mais resistentes ao caruncho, ao bichinho da madeira, esse malvado que dá cabo de tudo! [riso]

 

Que fases, no ofício de santeiro, lhe davam mais prazer?

Não aprendi a pintar. O sector da pintura era outro. Só trabalhava no sector da escultura. As fases: o aprendiz começava por polir. Depois desbastava (tem o tronco da árvore e tira o grosso da coisa). Depois farpar (aproximar à forma definitiva). Pintar era a última fase. Era sequencial. Num ano fazia uma coisa, no segundo e terceiro outra, e assim sucessivamente. Havia particularidades. A oficina tinha uma hierarquia, como todas as oficinas. O mestre tinha o privilégio de fazer as cabeças.

 

Porque é que era um privilégio fazer as cabeças?

Era a parte mais importante do santo. A mais difícil. A mais expressiva. Revelava a mestria do santeiro. Quando saí da oficina de santeiro, foi um escândalo tremendo porque fui trabalhar por minha conta (aos 17 anos, dois anos, antes de ir para a tropa) e ainda não tinha feito nenhuma cabeça. As pessoas diziam: “Como é que ele vai trabalhar por conta dele se nem sequer sabe fazer as cabeças?”  Fazia santos pequenos, com 30, 40 centímetros. E não tive problema nenhum: fazia as cabeças. Sabia manejar os instrumentos. Era uma questão de aproximação à forma. Antes das cabeças, eram as mãos e os pés.

 

Qual era o santo que mais fazia?

Nossa Senhora de Fátima. Por uma razão simples: a primeira oficina em que trabalhei, o Tedim, foi o autor da Nossa Senhora de Fátima que está em Fátima, a que vai no andor. Inventou (foi assim que enriqueceu) a Nossa Senhora [de Fátima] Peregrina, que tinha a etiqueta da oficina na pianha. “Peregrina” porque andou a peregrinar. Correu o mundo inteiro. E choveram na oficina encomendas.

 

Em que é que pensava nesses anos em que aprendia e fazia santos?

Em que é que eu pensava... [pequena pausa]

 

Estou a perguntar pelo mundo que estava a germinar dentro de si.

Primeiro, estava inquieto. Em segundo lugar, à procura de alguma coisa. Porque aquilo que tinha não me satisfazia. Simplesmente.

 

O que é que não o satisfazia? A vida material, a vida na aldeia, o que fazia?

A totalidade. Inclusive a actividade de santeiro, que a certa altura deixou de me satisfazer. Era uma actividade copista. Não havia qualquer rasgo de criatividade. Tínhamos de nos submeter aos modelos. Eu queria outros voos.

 

Lia livros?

Lia imenso. A Gulbenkian tinha bibliotecas itinerantes. A carrinha passava todos os meses por São Mamede e eu requisitava livros. Li sempre muito, desde criança. Foi isso que me abriu os horizontes. O que é requisitava? Aquilo Ribeiro. Miguel Torga. Camões. Do Pessoa, não me lembro.

 

Seguia impulsos? Percurso solitário? Tinha algum interlocutor?

Não, não tinha. Ia por mim mesmo. Nenhum dos meus amigos, que viviam em São Mamede como eu, tinha disponibilidade para ler.

 

Paralelamente, que vida tinha com eles? Que conversas? Jogava futebol? Namorava aos domingos à tarde?

Era completamente aselha (para usar uma palavra que se usava). Não tinha jeito nenhum para o futebol. Punha-me à baliza, que era o único sítio onde podia jogar com algum mérito. [gargalhada] Acima de tudo, jogávamos cartas. Ao sábado. Jogávamos sueca.

Ainda hoje tenho um grupo de sueca. Infelizmente o meu parceiro de sueca morreu o ano passado. O Manuel António Pina. Eu e ele de um lado, o Arnaldo Saraiva e o Joaquim Vieira (pintor) do outro. Com a morte do Manuel, ainda não encontrei um parceiro para jogar comigo. Ainda não retomámos o jogo.

 

O Pina escreveu um poema para si no qual diz assim: “No atelier-floresta de Alberto Carneiro/ as árvores crescem para o passado,/ para o primeiro, para o incriado”. Crescer para o passado?

As árvores crescem para o alto e para o baixo. A raiz também cresce.

 

Quando cresce para o alto, cresce em liberdade. Sabemos em que direcção vai. A raiz, não a vemos.

Mas está lá como coisa essencial. Como fundamento da árvore.

 

O passado a que Pina se refere, para si, é a raiz?

Não sei se é a raiz se é a memória. Não é por acaso que um homem inventa a psicanálise... Para enquadrar.

 

E para se achar? Fez psicanálise? O Pina recusou sempre.

Não, não fiz. Mas pratiquei a dinâmica corporal (fiz com um grupo que integrava um psiquiatra, depois da minha vida em Inglaterra; e cada um de nós descobria-se no seu mundo). Mais tarde, a Manuela Malpique, a Elvira Leite e eu publicámos um livro onde essas questões são abordadas.

 

No seu trabalho, quando começa a esculpir, começa a fazer interrogações? Parecia estar à procura do seu âmago.

É um pouco isso. O meu trabalho é a psicanálise de mim mesmo.

Há dois anos, quando fui internado, e tive a consciência, através da conversa com os médicos, da gravidade da minha situação... os rins pararam e vim parar às diálises. Fiquei preocupado, naturalmente, e disse: “Não posso deprimir”. Pedi à Catarina, a minha mulher, que me trouxesse cadernos vazios. Comecei a desenhar na cama do hospital. Compulsivamente. Preenchi vários cadernos. Publiquei dois. Foi uma maneira de ocupar o espírito.

 

E de se salvar.

E de não me ver envolvido noutro tipo de especulação, que tinha a ver com a doença ou com a impossibilidade física de fazer certas coisas. Por exemplo, viajar. Grandes viagens como as que fiz (Japão, China, América do Sul), deixaram de ser possíveis.

 

Foi a primeira vez que se viu frente à... possibilidade de partir?

Sim, sim. Sou um optimista inveterado. Sempre pus a hipótese de “isso” não acontecer. [gargalhada] E depois da paralisação dos rins, já fiz uma operação ao coração, já fiz várias coisas. Até agora escapei. Estou a escapar.

 

Fala com o sorriso e o contentamento de quem quer acreditar que é imortal...

Imortal, não sou, sei que não sou. Mas ainda tenho muitas coisas para fazer, e quero fazer algumas. Olhe, Serralves: tinha falado da exposição com o João Fernandes [então director]. Depois adoeci. No intervalo das doenças fui fazendo o trabalho. Montei a exposição numa cadeira de rodas, com um amigo a ajudar-me. Está lá, e creio que ficou bem montada.

 

É uma forma de afirmação da vida.

É.

 

E de recusa da morte.

A vida, desde que nascemos, é a superação de alguma coisa. Eu sei que uma pessoa optimista tem mais vantagem do que uma pessoa pessimista.

 

Pelo menos vive mais bem disposta.

Não. Tem mais vantagens, sob todos os aspectos. Porque se mostra mais disponível, porque cativa mais as outras pessoas. 

 

Apesar de estar numa situação de debilidade física, tem uma cara que irradia vontade, curiosidade, alegria. Parecem dois elementos, a sua cara e o seu corpo, que não combinam um com o outro.

É verdade. Agora tropeço em todo o lado.

 

A cara é um farol. O corpo traduz o envelhecimento, as limitações...

Que não controlamos. Temos que as adequar à vontade que temos de viver.

 

Que coisas estão na sua cabeça e que não teve ainda tempo de materializar? Que formas, que esculturas?

Queria ter a possibilidade física de voltar à electro-serra. Pesa quatro quilos. Sei que para já não posso. Mas acredito que vou poder. A descoberta da electro-serra como instrumento de trabalho é uma coisa relativamente tardia na minha actividade de escultor.

 

Parece um instrumento muito agressivo.

Não! Eu cortava-lhe as unhas do pés com a electro-serra.

 

O quê?!

Não aceitaria, com certeza. Mas é uma questão de treino. É sempre uma questão de treino. E de perícia. De sensibilidade na ponta do instrumento. Dizia aos meus alunos de escultura que a aprendizagem de determinado instrumento só fica completa quando a nossa sensibilidade está na ponta do instrumento. Isto é, cortamos com a goiva e esse corte transmite a nossa própria sensibilidade.

 

Como se o instrumento fosse a ponta dos nossos dedos?

Exactamente. Como se tacteássemos e sentíssemos. Se vir a exposição que está no Teatro [da Politécnica] dos Artistas Unidos (é uma única obra com 49 elementos, que foi trabalhada simultaneamente com electro-serra e goivas e palhetes) verá que há essa sensibilidade. É uma peça que resulta de um único castanheiro. Era uma árvore que secou, da quinta de um amigo. Seccionei a árvore segundo o projecto que tinha para a escultura, e fui trabalhando. No fundo, em busca da essência da própria árvore.

 

Como é que se busca a essência da árvore?

Procura-se. Procura-se. Procura-se. Está algures. Nunca se revela. Mas procura-se.  

 

Fala como se ela tivesse um coração, uma alma.

Sim, sim. Como se tivesse um espírito. Como se falasse connosco e nos dissesse: “Estou aqui. Sou assim. Sou diferente daquela.” Tenho um grande prazer em procurar a diferença da própria coisa.

 

Essa essência que procura é aquilo a que o Pina, no poema, chama “o primeiro, o incriado”?

Exacto. O incriado está sempre lá. Como princípio, como qualquer coisa que se vai revelar. Em rigor, nunca se revela na totalidade. O artista nunca acaba a sua obra. Quando nos debruçamos sobre a obra de um artista, vemos que do primeiro ao último momento ele andou à volta, à procura, à procura. E encontrou sempre alguma coisa. Brancusi, Giacometti, Miguel Ângelo, Bernini: vemos a obra e percebemos que é uma busca. Uma busca que não terminou. Infelizmente a pessoa foi-se embora. Outro vai retomá-la.

 

Apontou alguns escultores. Quem é que considera que faz parte da sua família artística? Que coisas retomou e que estão na sua genealogia?

Ah, toda a escultura primitiva. O autor da Venus de Willendorf, que não se sabe quem é. Não por acaso, na minha primeira exposição individual homenageei-a. A escultura egípcia, naturalmente. A escultura arcaica grega; a clássica também.

 

Na egípcia, tem fascínio por Nefertiti?

Não. É provavelmente a que menos me fascina. É uma obra preciosa, genial, evidentemente, mas estou mais próximo das formas mais brutas.

 

Nefertiti é demasiado bela e perfeita?

É. É demasiado apurada. Gosto de perceber na obra o gesto primário. Tenho umas paixões sedimentadas... pelo Bernini (o “Êxtase de Santa Teresa” é sublime, na alma, na forma; é o êxtase mesmo), pelo Brancusi (toda a obra; nunca se mostra na sua plenitude), o Giacometti..., tanta coisa.

 

Para voltar ao poema de Manuel António Pina: “A mão é uma árvore, crescendo para dentro”. Em direcção à raiz, ao que está sedimentado?

Sim. Só justificamos a nossa compreensão da vida através dessa memória, desse enraizamento, dessa coisa que anda dentro. Que anda e que continua a crescer dentro. Tudo se estabelece por relação. Nada vive sozinho. Uma coisa é grande porque temos uma pequena. É larga porque temos uma estreita. O fundamental, todos sabem, é a diferença. Não é a semelhança. 

 

Tem um desenho que se chama “Sobre o meu corpo o rasto da serpente”. Faz parte de uma série importante. Atentemos no título: este corpo sobre o qual a serpente desliza é um corpo-terra.

É. A serpente não passa só sobre. Passa dentro, também. Entra, sai. Penetra. Há um lado simbólico forte, de busca de relações, coisas, conceitos. Os números: estruturo muito o meu trabalho com base nos números ímpares. Raramente uso números pares. Fundamentalmente nas relações de três para sete. Ou de sete para nove. Et cetera.

Se me pergunta porque faço isso?, porque há aqui uma carga simbólica forte (a História do Homem desde o princípio conta-o). Para mim é fundamental agregar qualquer coisa que não se explica (se quiser explicar não sei...), mas que faz parte dessa essência, dessa coisa que é fundamental para a compreensão da vida do Homem.

 

Fale-me da importância que a peça “Canavial” teve na sua vida.

O “Canavial” é uma revelação. Repentina. Às duas e meia da tarde do dia 12 de Dezembro de 1968. Paff! Aquele flash... Uma iluminação em sentido hindu. O “Canavial” veio-me à memória como uma experiência vivida na infância. Aos seis anos de idade. Com um vizinho com quem brincava e que era da minha idade. Em certo sentido, foi a minha primeira relação sexual. Daquelas brincadeiras que as crianças fazem. Exploratórias. Foi no canavial. Essa experiência salta e salta o canavial como forma, como espacialidade, como coisa que tem uma grandeza que nunca tinha descoberto.

 

Viu-o como um lugar onde acontecem/aconteceram coisas importantes?

Sim. Questionei o meu trabalho anterior. Havia qualquer coisa que tinha de mudar. Estava na Saint Martins, que era uma escola prestigiadíssima, e eram meus professores o Anthony Caro e o Philip King. Mas não era por ali que eu ia, já. Tinha tomado consciência de que não era através da obra do Caro ou do King que podia chegar a qualquer lado. E a minha obra anterior [a Londres] também já não fazia sentido.

 

Como é que eram essas coisas?

Escultura tradicional. Escultura abstracta. Em bronze, barro, acrílico. Trabalho escolar. Não me agradava. O “Canavial” apareceu como coisa que aponta o caminho. Toda a obra anterior é uma espécie de aprendizagem para chegar à consciência de.

 

Porque é que os anos de Londres, além do momento de revelação que referiu, foram fundamentais para si? O que é que aprendeu?

Era a grande cidade. A dimensão. Viver comodamente, no centro da cidade. Vivia na Student House em Park Crescent. Tinha uma bolsa da Gulbenkian que dava para comprar livros, discos... A música foi a grande descoberta. Todas as semanas ia a dois, três concertos. Tornei-me um melómano.

 

Voltou a Portugal em 1970, e outra vida começava. Tinha 43 anos. Pense no rapaz que estuda em Londres e no que foi santeiro... Só aqui são duas vidas.

Até são mais. Curiosamente, ainda hoje, o meu lado de santeiro mantém-se como experiência de vida fundamental.

 

A peça que inaugurou nos Artistas Unidos tem uma leveza e movimento incríveis, mesmo sendo madeira. Chamou-lhe “Meu Corpo Vegetal”. 

Aquela peça tem isso: dá ideia de movimento e é agarrada à terra. Está liberta, a crescer. Como se fosse desabrochar outra vez. A peça surgiu quando o meu amigo me ofereceu a árvore seca. Trabalhei-a durante dois anos. Não sempre. Retomando-a. Tenho dúvida quando as coisas me surgem repentinamente. Tenho de deixar passar algum tempo para verificar se é verdade. Se me é permitido fazer aquilo. É um jogo, sempre. Uma quase brincadeira. Encontro artistas que me falam do que sofrem quando criam. Eu não sofro nada. [riso]

 

Porque é que o artista pode dar a ver essas formas que existem na natureza, essa beleza que já existe?

É uma apetência. Não é artista quem quer. É artista quem tem algo dentro de si que o leva a tal coisa. Porque é que acabo por me vincular a esse mundo e construir a minha obra aí? Tem a ver com a construção da minha sensibilidade. Se tivesse nascido na cidade, se tivesse vivido a minha primeira infância na cidade, a minha obra não seria o que é. Nem eu, provavelmente, me teria encontrado com este mundo.

Sendo a mesma pessoa, fisicamente, o mesmo nariz, as mesmas orelhas, não seria o mesmo. A minha sensibilidade foi construída numa relação directa com essas coisas. Aprendendo a amar essas coisas. E não as dispensando. Depois de tomar consciência da importância do canavial, não podia afastar-me mais dessa busca, de um levantamento que permite aos outros chegar lá. É o meu desejo: que os outros cheguem lá.

 

Não sei se alguma vez fez uma escultura a pensar na sua mãe. Se fizesse, que forma é que ela poderia ter?

Nunca fiz. Nunca projectei a minha mãe na minha obra, nesse sentido. Teria a forma de uma árvore. Não podia deixar de ter. E provavelmente teria a forma da cerejeira (voltando ao princípio).

 

Ainda que, na cerejeira, tenha construído a casa com o seu pai, e não com a sua mãe.

A minha mãe não tinha possibilidade de o fazer. Toda a nomenclatura social não permitiria tal. O meu pai é que estava destinado a ajudar-me. Mas a árvore é ela. O sustentáculo da minha vida é ela. Ainda hoje. Não tenho nenhum dúvida sobre isso.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

"Safoda a porta, vou pela window", por Anabela Mota Ribeiro...

 

"Safoda a porta, vou pela window"

Umas semanas mais tarde, continuo boquiaberta com este verso da Nenny: “Safoda a porta, vou pela window”. Diz tanta coisa.

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Umas semanas antes, um pedaço antes, eu não conhecia a Nenny. Estava à procura de uma pessoa nascida já nos anos 2000 para os 25 Filhos da Madrugada, alguém que pudesse trazer as coisas que vieram nestes anos e que são específicas desta geração.

Nenny nasceu já depois da queda das Torres Gémeas, aquele tempo em que o mundo mudou de lugar. Nasceu num bairro apelidado de problemático, o Vialonga, nos arredores de Lisboa, e emigrou com a mãe em 2014, primeiro para França, depois para o Luxemburgo. Continua a viver entre o Vialonga e o Luxemburgo, apesar dos milhões de visualizações no YouTube. Na sua fala incorpora o crioulo, o calão, o inglês, o português, encarna uma nova Lisboa, grande Lisboa, mixada, que celebra a negritude. As suas letras têm um lado áspero e bruto da paisagem urbana. Traduzem desigualdade social, exprimem ansiedade. É de origem cabo-verdiana, tem 18 anos, é a mais jovem destes 25. Algures, esta rapper que não é só rapper, porque dizer rapper não chega, esta artista compreendeu que tinha de se safar. Safoda a porta, vou pela window.

O meu primeiro desafio era encontrar pessoas que entram pela porta e aquelas que inventam uma window. Um Portugal heterogéneo ou, como resumiu a Nenny quando lhe expliquei o conceito do programa, 25 portugais. Foi a esta escolha que dediquei boa parte do tempo de preparação. Procurava a diversidade, a complementaridade, pessoas de diferentes áreas de trabalho, proveniências sociais, faixas etárias, sensibilidades políticas, geografias, conhecidos e desconhecidos, que não representassem ninguém a não ser a si próprios, e que ainda assim ilustrassem o país que fomos sendo nos anos da democracia, que explicassem como é que, ainda que de um modo remoto, a sua vida foi tocada, alterada, perturbada pela revolução. Todos nasceram em liberdade, excepto Domingos Folque Guimarães, o mais velho, que precede a Nenny, a mais nova. Domingos nasceu duas semanas antes do 25 de Abril, e por isso a mãe diz que este seu primeiro filho foi o arauto da revolução.

Domingos é afilhado de Domingos Abrantes e Conceição Matos. Politizado até à medula. Outros convidados, nem tanto, ou muito pouco. Em qualquer caso, há um antes e um depois que ainda se inscreve nas suas biografias. Mais não seja porque os seus pais cresceram em ditadura. E essa mancha não desaparece na alegria de uma madrugada.

Sendo feminista e defensora das quotas, a paridade de género era inquestionável para mim. A verdade é que mesmo que a motivação não fosse essa, não havia como fugir à alteração do estatuto da mulher nos últimos 47 anos e plasmar isso no programa. Uma das diferenças mais gritantes tem justamente que ver com a saída da mulher da esfera da domesticidade e a sua vinda para a ágora social; o que não quer dizer que tenha igual acesso a cargos de poder ou igualdade salarial. Conclusão: são 10 homens e 16 mulheres (um programa tem duas entrevistadas, as gémeas Mortágua).

Reconstituindo um pouco, talvez fantasiando um pouco, penso que este projecto resulta de uma sedimentação lenta. A auscultação do país democrático começa numa outra auscultação: na série (Quase) Toda uma Vida feita para o CCB, na qual entrevistei pessoas de diferentes áreas com mais de 75 anos. Com Frei Bento Domingues falei da marca do salazarismo, com Maria Belo do mutismo difícil de romper (o medo e a inibição de dizer o que se pensa), com Jorge Sampaio das lutas académicas, com Borges Coelho do país paupérrimo em que uma mulher rilha uma pedra para enganar a fome, com a fadista Celeste Rodrigues daquela primeira vez em que ela e a irmã, Amália, andaram de carro e foram à Suíça lanchar, já adultas. Com Conceição Matos e Domingos Abrantes ouvi a luta contra o fascismo.

De diferentes maneiras, todos tinham essa presença esmagadora, constitutiva de quem eram: ter crescido em ditadura.

O país mudou muitíssimo. Alguns dados e alguns casos para uns saudosistas que se atrevem a dizer que antigamente é que era bom.

O avô de Carmen Garcia teve uma casa de banho pela primeira vez aos 70 anos. Não era em casa, era no fundo do quintal. Mas era uma casa de banho sua, da qual tinha orgulho. A enfermeira nasceu em 86. O seu pai esteve na guerra, da qual não falou durante largos anos.

No ano em que Djaimilia Pereira de Almeida nasceu, em 1982, havia 130 doutorados em Portugal; destes, 95 eram homens e 35 mulheres. No ano do seu doutoramento, em 2012, havia 2232 doutorados, dos quais 1023 homens e 1209 mulheres. Em 1974, estavam inscritos no ensino superior 50 mil alunos. Em 1994, o número subiu para 270 mil. (Fonte: A Situação Social em Portugal, 1960-95, organização de António Barreto) Em 2000, eram 350 mil inscritos. Em 2019, eram 386 mil.

Vítor Cardoso é um dos maiores físicos do mundo. Aos 45 anos, é professor catedrático do Técnico. O seu pai era trolha, a mãe tricotava camisolas e trabalhava no campo. Se Vítor tivesse nascido em 65 em vez de 75, teria começado a trabalhar aos 12 anos, como o pai, para ajudar a família. Mas depois vieram os abonos, as senhazinhas para comer na cantina, andar de autocarro, o apoio da acção escolar. Por outras palavras, começou-se a erguer o Estado Social.

José Reis também é beneficiário da criação do Estado Social. Protagonizou um dos momentos mais comoventes do programa quando prestou tributo aos seus pais e a outros pais que trabalham de madrugada a madrugada. Foi campeão do mundo de kickboxing, dá alento a miúdos de bairros degradados.

Estes exemplos exprimem de forma contundente o D de desenvolvimento mas também o D de democratizar. Creio que não é possível entender uma democracia plena à margem de indicadores satisfatórios na área da saúde, educação, igualdade de oportunidades, correcção de extremas desigualdades sociais. Democracia não é sinónimo, apenas, de liberdade de expressão, associação, eleições livres.

O outro D, o da descolonização, foi abordado no programa com Assunção Cristas, uma dos cerca de 500 mil retornados (assim chamados, mesmo que, para muitos, como os pais da professora universitária e política, não fosse um retorno, uma vez que nunca tinham estado cá), vindos em 1975. Mas também com Bruno Vieira Amaral, nascido em 78, e oriundo de um bairro ainda por acabar, o Vale da Ameixoeira. O bairro, transmutado nos seus livros no bairro Amélia, foi ocupado por pessoas vindas das ex-colónias e por pessoas vindas de outros bairros pobres e do interior. A família de Bruno é angolana e alentejana.

A narrativa de Constança Freire de Sousa, Leonor Teles e Maria Inês Marques, nascidas na década de 90, é significativamente diferente daqueles que nasceram nos anos 70. Para as três, tirar um curso superior era uma certeza, e viver fora de Portugal um desejo ao seu alcance. O que mudou? A ideia de que é possível. A liberdade de poder escolher. Também a angústia, por vezes expressa de forma aguda, em relação ao futuro. Ter uma qualificação superior não garante nada, a precariedade é uma constante, as casas são caras, os empregos rareiam e não são para a vida.

Considerei importante procurar pelo F de Fátima; dito de outra maneira, pela prática religiosa entre as pessoas deste grupo. Convidei um homem que nasceu numa família laica e que se converteu ao catolicismo já adulto (João Taborda da Gama), um pastor evangélico (Tiago Cavaco), Bruno Vieira Amaral cresceu numa família de testemunhas de Jeová, Tatiana Salem Levy é judia, Assunção Cristas é católica praticante.

Tatiana permite abordar o tema da xenofobia. Vulgarmente ouve o insulto: “Se não estás bem, vai pró Brasil, volta para a tua terra”. Sucede que Portugal é a terra dela. Nasceu em Lisboa em 1979, quando a lei da nacionalidade era outra e prevalecia o jus soli.

Tenho aprendido muito na preparação e na escuta destas entrevistas. Porque nasci em 71, já não sou desta madrugada. Mas este é o meu tempo cronológico. O meu pai também esteve na guerra. A minha avó era analfabeta e eu sou doutoranda (quase todos os entrevistados são licenciados e muitos deles doutorados; num país que em 74 tinha uma taxa de analfabetismo de 24% não deixa de ser espantoso). Fiz a migração do interior para os grandes centros urbanos. Tenho a consciência de que vivo num país tremendamente imperfeito e incomparavelmente melhor ao que havia antes. E agora que espreitam os fascismos e rebenta o discurso do ódio, não é tempo de virar costas à política, de pensar que a democracia é inamovível. É preciso estar atento e forte – como na canção do Caetano.

O F de Fado: com a Gisela João, as ganas de Barcelos, uma maneira de falar que não é a da televisão. Nome do seu Instagram: a berdadeira. Sobretudo, um fado capaz de se reinventar, que não é saudosista, que trabalha com os Fado Bicha, usa tatuagens e integra música electrónica.

Não houve espaço para o F de futebol. Mas falámos de desporto, sim, da importância de ter foco, criar objectivos, perseverar, lidar com derrotas. Com José Reis, e também com a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva. Praticou natação de competição. Vale a pena sublinhar que seria impensável uma mulher ser o braço direito do Primeiro Ministro com apenas 37 anos antes da revolução. 

Uma amiga escreveu-me isto: “Tenho-me apercebido, e isto é o mais especial, que o programa é sobre gerações, transmissão, pais e filhos. É importante, neste país envergonhado, que as pessoas falem de onde vieram, de um meio mais pobre, rural. Vamos todos dar ao campo. E que coisa extraordinária os avanços que se deram nas últimas gerações. Por causa do programa, tenho reflectido bastante sobre a minha história, ou melhor, a dos meus pais, e como ela me constitui. Estou cheia de vontade de voltar a estar com os meus pais, para lhes perguntar coisas sobre eles.”

Também eu tenho reflectido sobre quem sou, a partir do quem somos, das nossas portas e windows, a partir desta afirmação da diversidade. Há um protagonista que emerge do programa: o conjunto dos 25, esse um plural, que se ramifica em muitas coisas.

E safoda o fascismo, claro.

 

Publicado originalmente no Jornal de Letras em Abril de 2021.