sábado, 3 de fevereiro de 2018

OS BOATOS NA GUERRA


A GUEERA SUBVERSIVA, TEM OS BOATOS COMO ARMA! É DELES QUE TENTEI FALAR, DOS QUAIS FUI UMA VITIMA SEM MARCAS!










                              OS BOATOS
                                    
                                                    (Nas guerras)


                                                 I


Da chegada do Américo Lourenço, nesta fase, apenas serve de ponto de partida para abordar o tema deste escrito.
No dia seguinte ao da sua chegada, primeiro de Dezembro, era o feriado da comemoração da independência, em mil seiscentos e quarenta, deixando de estar sob o domínio da dinastia filipina de Espanha, desde mil quinhentos e oitenta. História no lugar e respeito que lhe são devidos; estória no lugar que lhe não falta e faço questão de ocupar uma parcela, mínima que seja!
Muito longe “estavam” do tempo em que Portugal foi o Continental, o Insular e o Ultramarino que ia do Minho a Timor, único e indivisível! Estes e outros profetas só me dão vontade de rir, mas não o faço por que não ia usá-lo para me rir de idiotia de ignorantes ou espertos profetas!
E lá estávamos nós, Américo, Magalhães, Pinto e eu, no Café Bracarense – só podia ser no Bracarense!
Ao fim do dia, já jantados, eu de camisa branca de manga curta, da marca Professor e fabricada em Macau, calças claras de terylene, sapatinho preto, obrigatório quando fardado e que, na falta de outros, serviam para os dois tempos!
Um jeep parou junto ao passeio e dele desceu o Pinhão, um dos motoristas da secção, naquele acto ao serviço do comando, que me comunica a ordem de ir com urgência para o GACL e me apresentasse ao oficial de dia, que teria qualquer coisa para me transmitir.
Mas é assim tão urgente?! Perguntei.
- Foi o que o nosso capitão disse: vai procurar o furriel Monteiro e trá-lo de imediato para o quartel e se apresente ao oficial de dia!
Entrei para o jeep tal como estava vestido e pelo caminho ia tentando adivinhar do que se trataria e ainda a recear se não iria dar chatice aparecer à civil no jeep militar!
Que te parece, Pinhão, isto poderá dar merda?
- Espero bem que não! Respondeu.
Deu!
Mal me viu chegar, antes mesmo de eu o cumprimentar, à maneira civil, em sentido e sem continência, já ele me interrogava:
- Porventura, o furriel Monteiro não sabe que não podem ser transportados civis em viaturas militares?!
Sei, meu capitão, mas a urgência anunciada era tal que pensei se sobrepor à disposição regulamentar!
- Se faz parte do regulamento á para cumprir! Fique sabendo, furriel Monteiro, que vou mencionar no meu relatório esta ocorrência e o seu comandante que proceda como entender!
- A ordem a cumprir é a de ir ao Quartel-General, dirigir-se ao capitão tal, que lhe dará instruções!
Terei que ir a casa para me fardar!
- Faça-o e não se demore mais do que o estritamente necessário! Frisou.
Pinhão, daqui a meia hora vai ter a minha casa, sabes onde é, que eu vou este bocado a corta mato!
No trajecto do Bracarense para o GACL o Pinhão contou-me, que o telefonista de serviço lhe tinha dito que no regresso ao Norte, depois de ter estado em Luanda quase duas semanas, devido ao processo do acidente com a UZI na aula de apresentação desta arma, no segundo dia de Luanda, o furriel Fachada e a secção que o veio buscar, tinham sido atacados e que nenhum se safou!
O furriel Fachada era da bateria de artilharia cento e quarenta e cinco, se não estou em erro.
O raciocínio lógico que fiz: a chamada urgente ao Quartel-General teria a ver com este acidente, deve ser a guia de marcha para o substituir, como sucedeu com o furriel Sousa, em Setembro, que foi hospitalizado e fui eu quem o substituiu durante vinte e seis dias, no início da Operação Esmeralda.
Chegado ao Quartel-General veio ao meu encontro o capitão Calixto e o tenente Vale-Car, ambos do Pelotão de Comando e Serviços a que eu pertencia também, a quem, naturalmente e com profunda mágoa, lhes dei a notícia que ouvira do soldado motorista, Pinhão.
Não comentaram, nem um nem outro, nem deram a perceber se já sabiam ou era novidade. Achei estranho, mas não dei a perceber.
Limitou-se apenas, o capitão, a dar instruções sobre a missão.
- O furriel Monteiro, depois de levantar o seu equipamento, vai ao Grafanil onde o esperam seis camionetas e respectivos condutores, onde irão ser carregadas, segundo a sua orientação, com munições, de acordo com a requisição e guia de remessa que levará consigo. No Grafanil já o esperam! Boa noite e que tudo corra bem.


                                                           II


Parti com o motorista Pinhão para o quartel, levantei o equipamento e antes de sair para o Grafanil, preocupado com a notícia do ataque ao pessoal que compunha a secção onde o Fachada seguia, ainda perguntei ao telefonista se tinha mais alguns pormenores sobre o incidente, respondendo que nada mais sabia e eu nem sequer perguntei quem lhe tinha dado a ele a notícia.
No Grafanil, onde já não ia desde o início de Setembro, quando me juntei à Bateria cento e quarenta e seis, deparei com algo de muito insólito, tendo em conta dois princípios: os regulamentos que “são feitos para serem cumpridos” e o que aprendi em Sacavém sobre munições, especificamente as da artilharia, seu acondicionamento e conservação, referente aos paióis. Milhares de cunhetes, com as respectivas munições no interior, empilhados à luz da Lua aquela hora e durante o dia à do Sol, escorrendo humidade que Luanda tem em abundância durante a época das chuvas.
Fiquei com receio do que pudesse vir a acontecer se um acidente provocasse uma explosão! Ainda perguntei ao sargento responsável de serviço se sabia alguma coisa de paióis e munições e a resposta foi:
- É a guerra, furriel Monteiro! E em tempo de guerra não se limpam armas, lá diz o provérbio! Sorrindo!
Sendo assim, vamos lá alimentar a guerra! Pessoal para ajudar, tem algum destacado, meu sargento?
- Aí vem o pessoal e os motoristas ajudam, para ser mais rápido! Diga como quer a distribuição, furriel Monteiro!
Em três camiões serão carregadas as do obus oitenta e oito, em dois, as do dez e meio e no sexto irão apenas as espoletas!
- Qual é a intenção de ir um camião só com as espoletas? Inquiriu o sargento.
Pense um bocadinho e vai ver que chega lá!
Carregadas as seis viaturas, despedida do pessoal e rumo ao Caxito onde nos esperariam duas secções de Cavalaria e suas Panhard, estacionada no improvisado aquartelamento junto à barragem das Mabubas, que bem conhecia das várias vezes que escoltei o pessoal da Manutenção quando alí se deslocava para se abastecer, durante os dias que estive na Operação Esmeralda.
Chegados ao Caxito e ao ponto de encontro, ninguém nos esperava! Talvez se tenham atrasado, como nós! Vamos aguardar!
Meia hora passada, achei que algo falhou e arrancámos para as Mabubas, onde nos recebeu um alferes, por sinal cheio de energia e curioso!
- Que demoro foi esta, nosso furriel? Estivemos no Caxito mais de uma hora à espera, como não chegaram regressei à base, pensei que tinha siso abortada a missão!
É a guerra, meu alferes, tudo é feito em cima do joelho e depois dá isto!
- O furriel… (Monteiro, adiantei) Monteiro está a insinuar alguma coisa? A alguém especificamente? Inquire o alferes.
Nem pensar em tal coisa, meu alferes! Apenas disse que era a guerra e que tudo ou quase, corrijo agora, é feito em cima do joelho! Penso que tudo é feito apressadamente e depois quem falha é quem tem de executar.
Saímos do Grafanil passava já da meia-noite, quando a essa hora devia estar no Caxito! Ordenar a coluna, exigindo rigor nas distâncias a manter durante a viagem, sendo eu quem ia no camião das espoletas, o da frente!
Terminada a “guerra” das palavras entre mim e o alferes, formada a coluna como estava por mim estabelecido para o transporte, a que se juntaram duas Panhard, uma à frente da coluna e a outra fechava, atrás do último camião. O comando, passou para o responsável pela escolta, o alferes da cavalaria, sem cavalos e assim fizemos a viagem, em plena noite, das Mabubas ao Úcua.
Como chegámos muito depois da hora que terá sido dada como limite para a nossa chegada, todos deviam estar a descansar, descansados. Aguardámos a abertura do armazém da guerra, este tinha horários que a guerra não tinha.
Algum tempo depois de iniciarmos a descarga dos cunhetes com as granadas, para o grande armazém quase vazio, deixando bem longe do local de descarga, o que trouxe as espoletas, iriamos no terceiro camião e este quase no fim, restavam os que estavam junto da cabine, um deles, como os outros, empurrado para deslizar pelo chão liso de chapa gasta do camião, talvez por ter sido expulso com mais força, ou por distracção dos dois soldados que na traseira os seguravam, para outros dois fazerem o transporte para o interior do armazém, galgou o rebordo e foi estatelar-se no chão desamparado!
Só vi o alferes, comandante do pelotão que nos escoltou, numa correria desordenada, pela encosta do sisal, de longas folhas verdes e limbo com espinhos como garras e eu, a rir quase sufocado, fazendo coro com os soldados da secção, só consegui gritar ao alferes em fuga “pare, meu alferes, se tivessem que explodir já o tinham feito, mal caíram, antes de a fuga ser iniciada”
Todo o pessoal ria ainda quando o alferes chegou, mas este não achou piada, via-se que estava ferido na carne e na sua honra de guerreiro.
As calças tinham vários rasgões e o sangue estava já a ensopar-lhe as meias. Notava-se que estava com dores e não o escondia!
Havia no armazém-paiol uma caixa de primeiros socorros, desinfectaram-se as feridas e logo que a descarga terminou, regressámos: a escolta ficou pelo Caxito e a coluna, agora sem munições, para Luanda, Grafanil.
Um dos soldados que viajou na mesma viatura que eu, diz, mal cheguei ao Grafanil: “o furriel Monteiro tem um sentido de conservação do caraças! Mesmo a dormir nunca pendeu para o lado de fora da cabine, foi sempre para o de dentro!
Ainda bem, respondi. É o meu Anjo da Guarda a zelar pelo meu sono! Rimos ambos!
Esqueci de mencionar que o alferes da PM, quando lhe lembrei que as granadas não explodem sem a espoleta, ele respondeu:
- Eu sei essa merda, porra, mas depois de uma noite em branco e estes tempos de espera, não nos lembramos do essencial!


                                                 III


Cerca de dois meses depois, inesperadamente, fui chamado e ouvido num processo disciplinar, na qualidade de arguido, relacionado com a falsa noticia propalada, do ataque e morte do furriel Fachada e toda a secção, na noite de trinta de Novembro, relatada pelo telefonista de serviço no GACL, ao soldado Pinhão.
Era a guerra subversiva a actuar de forma bem estruturada e eu alimentei, sem querer, o efeito pretendido: a divulgação de uma notícia que nada tinha de verdade, mas a psicologia a ser afectada e o receio aumentado!
Mas não fui eu quem criou o boato, nem em tal coisa pensei, apenas o terei divulgado!
- Não é isso que está em causa, nem interessa quem foi, mas a responsabilidade de um sargento é diferente da de um soldado, segundo o regulamento e a lógica! O furriel Monteiro teve, com certeza, aulas sobre guerra psicológica, mas o soldado não teve!
Não terá tido aulas o soldado e eu também não, que me recorde e talvez por isso, mal cheguei ao Quartel-General, dei conta da má notícia a dois dos oficiais da minha unidade.
- Mencionarei esse dado, mas não sou eu quem vai decidir, apenas me cabe a instrução do processo, mas, quase de certeza, uma repreensão agravada vai ficar na caderneta!
Será mais uma, já tenho mais duas ou três prometidas!
Foi esta a primeira e última acção para que fui solicitado, como especializado em munições de artilharia, para fazer um reabastecimento, sendo desaproveitado todo o ensinamento recebido e devido ao qual fui mobilizado e integrei o Pelotão de Comando e Serviços.
Já no ano de sessenta e três, não recordo o mês, os meus Pais receberam a notícia de que, um furriel de Castelo Melhor, tinha morrido em Angola, num acidente.
Era eu o único furriel de Castelo Melhor, logo tinha que ser eu o acidentado!
Lá tive que andar a dar noticia, às pressas, a todos os que podiam depois espalhar a notícia de que estava vivo e não tinha sofrido acidente algum!
Esta falsa notícia coincidiu com um período de falta de notícias minhas, daí a facilidade com que o boato ganhou estrutura e se desenvolveu!
O outro boato, este sem desastres e mortes pelo caminho, chegou a certos espaços bem definidos, que eu vivia às custas de uma família rica, de Luanda, namorando uma das filhas.
Não irei “embarcar” agora, tal como na altura não “embarquei” na exploração do boato, a experiência me ensinou que, a boatos se não deve dar a atenção que eles procuram garantir para quem os propala!
Pelo contrário, vou aproveitar para abordar a forma sã e sem interesses, como conheci a tal família, pobre, mas que podia de facto ser abastada, não fosse a guerra, e com ela mantive, durante mais de um ano, uma muito agradável relação de amizade.


                                                 IV


A família Santos Pinheiro:
Conheci esta família e com ela mantive um são e natural relacionamento, durante mais de um ano, através da filha mais nova. Ou para maior precisão, através de uma das netas, que teria cerca de cinco anos.
Viajava de machimbombo (autocarro) do bairro de São Paulo para a Mutamba, perto do fim da tarde, como várias vezes fazia, só ou acompanhado, ora pelo Magalhães, ora por este e o Pinto.
Entre os vários passageiros que entraram em São Paulo, entraram também uma criança e uma mulher jovem, mas já adulta, sendo certo que não reparei em quem mais entrou.
A criança parecia estar habituada a andar de autocarro, pois se movimentava com destreza, mesmo em andamento, segurando-se bem em cada movimento que executava.
Fardado, era o único que naquela viagem seguia. Podiam ir outros militares, mas à civil.
A pequenita, irrequieta e curiosa, perguntou, quando perto de mm chegou:
- Puque tens essa roupa? Perguntou.
Puque não tenho outra! Respondi.
Fez uma cara que interpretei como admirada e olhava para a moça que dela seria guardiã, que sorria, ou pela curiosidade da pequena, ou pela minha resposta!
Não devia ser a mãe da menina e não devido à idade que parecia ter, mas em Angola, Luanda, mulheres com vinte anos ou menos tinham já um ou dois filhos! Era mais a cor da pele, enquanto a criança era tinha um tom que designamos por morena, a da acompanhante era bastante mais escura, o cabelo era frisado e os lábios tinham uma estrutura diferente, mais carnudos. A criança tinha mais um aspecto europeu, cabelo ondulado, claro e nenhum traço africano.
Sem se calar foi adiantando o nome – eu sou a Sofia e aquela, apontando para a moça que continuava a sorrir e não intervinha, é a tia Micá.
A Micá, entre envergonhada e bem-disposta, sorria com a ligeireza de linguagem da Sofia! Tinha um sorriso fresco que beneficiava da cor quente da pele castanha, sem ser como a dos nativos “puros”, cabelo meio desfrisado e lábios polpudos! Era um sorriso de uma beleza tranquila.
E a Sofia, vais passear para onde? Perguntei.
- Não vou passear, vou pra casa! Respondeu a petiz.
E moras onde? Indaguei, mais para não deixar o diálogo extinguir-se.
- Lá, no Alvalade, no alto! Respondeu a Sofia.
Eu também moro lá, no quartel, mas só de dia!
- E de noite, onde dormes? Avançou a Sofia.
Na Maianga, sabes onde é a Maianga?
- Não. E onde é a Mai…como é? Com olhar interrogativo.
É mais perto, ao fundo do Alvalade, mas a tia Micá explica melhor, ela deve saber onde é a Maianga!
- E puque não vais para minha casa? Retomando!
Mais atrás, a Micá, com ar de envergonhada pelo rumo do diálogo, entrou nele e dirigindo-se à Sofia…
- Ó Sofia, achas que o senhor aí agora para tua casa? Deve ter mais que fazer e não se vai a casa das pessoas que não conhecemos!
- Mas eu conheço ele e o Pai dava-lhe uma roupa dele!
Gargalhada, quase geral!
Mas tu não gostas desta roupa? Quis saber.
- Gosto!... o Pai não tem dessa roupa, mas dava uma para tu teres duas! Ar apelativo!
Ouve cá, Sofia, prometo que vou arranjar outra roupa e se amanhã vieres no machimbombo vais dizer-me se gostas mais dela ou desta, está bem?
- Sim! Respondeu de imediato.
E foi ter com a tia, que me pediu desculpa pela conversa da Sofia! Faz só bem a Sofia! Quer saber o que não sabe e por isso pergunta!
E assim, numa viagem que podia ter sido como tantas outras, através de uma pequena criatura, fiquei a saber o nome dela, da tia e o local da morada, sem pormenores, apenas o Alvalade, lá no alto,
Durante o resto do dia e no seguinte, não deixei de pensar no compromisso que assumi com a Sofia e iria cumpri-lo! Não gosto de prometer o que seja às crianças e depois faltar.
No dia seguinte, à tarde, mal cheguei a casa vesti o traje civil e fui para o São Paulo, saí na paragem onde no dia anterior entraram a Sofia e a tia, e fiquei a aguardar.
Um pouco antes de o autocarro chegar, apareceram elas: a Sofia com o cabelo a formar um pequeno “rabo-de-cavalo”, vestido de um tecido muito leve e de cor verde, meias quase da mesma cor e sapatos brancos envernizados.
Vens linda, oh Sofia! Gosto muito do teu vestido! Pareces uma princesa!
- E a tia Micá, não está bonita? Quis saber a Sofia.
Gosto muito do jardim da blusa dela! Tem muitas e lindas flores!
- Fui eu que escolhi para ela vestir! Adiantou a Sofia.
Parabéns, a Sofia tem bom gosto, mas ainda não disseste se gostavas da minha roupa?!
- Gosto, mas também gostava da outra!
De qual gostas mais? Desta ou da outra?
- Não sei…a outra também era bonita! Respondeu a Sofia
Entrámos no machimbombo e a Sofia sentou-se ao pé de mim; devia querer continuar a conversa, mas parecia não achar a forma de a iniciar.
Então moras no Alvalade, ao pé dos quartéis? E quantos manos ou manas tens? Iniciando eu.
- Não, a tia Fernanda é que tem dois, os meus primos; moram lá no São Paulo, onde a tia Micá mora!
A Micá, atenta à conversa e imaginando o rumo que ia fazer, entrou nela!
- Daqui a pouco fica a saber tudo sobre a família! É só deixar e dar tempo, ela se encarrega de o fazer! Sorrindo.
É assim mesmo, Sofia! Segredo para quê? Gostas dos primos?
- Só do Pedro, que é pequenino!
Se moras no Alvalade porque estás no São Paulo?
- Vou no São Paulo para ver os avós e brincar com os primos. A tia Micá leva-me de manhã e mais tarde traz-me para minha casa; ela depois dorme lá!
- Eu falei para o Pai que tu tinhas só uma roupa! Ele riu e disse que não acreditava! Porquê?
E tem razão o teu Pai, eu é que estava a brincar contigo! Como é o nome do teu Pai? Perguntei.
- É Alberto e a minha Mãe é Luísa; queres ir a minha casa ver eles?
E prometes que não vais pedir para mim uma roupa dele?
- Sim, mas vais lá na minha casa?
Um dia destes, amanhã ou noutro dia eu vou! Está bem, Sofia?
- Vem, agora, é já além, estamos quase a chegar! Pede a Sofia.
A Micá, quando viu que não era fácil demover a sobrinha, entrou na conversa para dizer:
- Ouve, Sofia, eu vou dizer ao pai que não convidei o senhor, que tu é que trataste de tudo!
- Sim, Micá, eu conto tudo p’ra ele! Podes ir?
Estava empolgada com o rumo da conversa e com a vitória alcançada, foi o que me pareceu. Era uma criança determinada e lutava pelo que queria obter!
Está combinado, Sofia, e se o teu Pai ficar zangado tu ajudas-me?
- Ele não vai ficar zangado!
E, assim, fiquei a conhecer o Alberto, cabo-verdiano, de pele clara e cabelo ligeiramente frisado, com um bigode à Clark Gable, muito simpático! Trabalhava como administrativo, no Porto de Luanda.
A Luisa, mãe da Sofia, também de pele mais clara do que a Maria do Carmo, cinco anos mais velha que esta, não tirava os olhos, ora de mim, ora da Sofia, até que se dirigiu a mim:
- A Sofia, chateou-o muito? Perguntou!
Nada, é a criança mais encantadora que conheci em Luanda! E já conheci bastantes, neste ano de permanência. Dou-me bem com crianças e elas retribuem à sua maneira, normalmente querendo saber tudo de imediato, mesmo que não saibam muito claramente o que querem!
A conversa inclinou-se para as origens de cada, do porquê da vinda para Luanda e também da família da Sofia; da família do Alberto ele falou pouco, vindo mais tarde a saber que os pais tinham ficado em Cabo Verde e nunca quiseram ir para Angola.
Com a curiosidade da conversa o tempo foi passando e a hora do jantar chegou.
Ia despedir-me por esse motivo, mas a Luísa, que deve ser estado a falar com a irmã, convidou-me para jantar com eles.
Não tenho qualquer compromisso e a pensão é paga ao mês, coma ou não, o custo é o mesmo; janto, com muito prazer.

A Sofia dava saltos de contentamento!
- E vais ter de comer tudo, para te fazeres grande! Recomenda a rir.
Isto é o máximo, esta menina!
“ Era o que nós lhe dizíamos, mas agora já não é preciso, graças a Deus come bem! Só é pena ser tão atrevida! Acrescentou a Luisa.
Ao contrário do que sucede com os europeus, que se juntam em pequenos grupos de familiares ou doutra origem, fechados no seu espaço, os africanos, pelo contrário, escancaram as portas, até a desconhecidos! Era a conclusão a tirar desta experiência.
O jantar estava óptimo, a companhia excelente e a conversa, não sendo muito diversificada, deu para ficar a saber:
Que o Pai da Luísa e da Micá era português, nascido numa aldeia perto de Viseu, que foi para São Tomé quando ainda não tinha quatro anos; a Mãe era natural de Luanda, tal como as quatro filhas e o filho, uma delas falecida, mas nada mais acrescentaram por a Sofia estar presente.
Calculei que algo se passara e que a Sofia não devia ainda saber.
A Maria do Carmo, atenta à conversa, raramente intervinha, parecendo mais interessada em ouvir.
O Alberto era o mais falador e devia gostar muito da Sofia.
Das circunstâncias que me levaram a Luanda, pareceu-me que ninguém queria falar e eu, sinceramente, também não estava nada interessado em falar de mim, preferindo conhecer melhor as pessoas.
A questão da guerra só foi abordada quando se referiram à  morte dos dois familiares, a irmã e o cunhado da Luisa e da Micá, na fazenda da família, situada na zona mais agitada, entre Zala e Nambuongongo.
Como a Luísa estava a ficar emocionada, já com as lágrimas a quererem correr, não abordei sequer os pormenores e sugeri que falássemos noutra altura, que pareceu resultar e ser aceite.
Os pais tinham casa em São Paulo, onde ainda estavam a viver também, a Maria do Carmo e o único filho, o Eduardo ( o Duda ), dois anos mais velho do que a Micá. Ambos eram solteiros.
- Um dia qualquer, se quiser, vai conhecê-los e almoçar com eles. Eles vão gostar de o conhecer! Sugere a Luisa.
Vamos, sem pressa, combinar. Só tenho a ganhar, os amigos ficaram lá longe e não é fácil, em Luanda, fazer outras amizades.
- Já se apercebeu disso? Pergunta a Luísa.
E de que maneira, respondi. Por aqui, as pessoas, refiro-me aos europeus, funcionam como clãs, “fechados a sete chaves” e nem sabem o que perdem!
- Eles, os Pais, ainda estão muito abalados com a morte dos dois familiares, até por serem os dois mais chegados ao pai, trabalhando com ele, directamente na serração da Fazenda.
- Toda a família está ainda muito abalada, mas procuramos que a vida continue, o que não tem mais solução não é na tristeza que a vamos achar. Os mais velhos, perderem dois filhos e a fazenda, onde investiram anos de trabalho e todas as poupanças, para eles é muito mais difícil. Nem da casa, no São Paulo, querem sair, mesmo para virem a nossa casa!
- Aos poucos vamos preparar a ideia, por que até a eles também fará bem.
Toda esta parte da conversa foi tida na sala, só os três: a Luísa, Alberto e eu, a Maria do Carmo e a Sofia estavam no quarto desta, a ler estórias para crianças, pelo que se percebia quando uma ou outra falavam um pouco mais alto.
Já bem perto da meia-noite, com a Sofia já a dormir, como nenhum tomava a iniciativa, dei eu sinal de que ia despedir-me.
Combinámos que ainda nessa semana me telefonariam para almoçar com eles, no domingo, uma cachopada feita pela Luísa.
Desci a pé para a Maianga, seriam uns cinco minutos de caminho ou menos.
Fiquei a saber que a Maria do Carmo trabalhava, nem sempre a tempo inteiro, numa oficina artesanal que confeccionava chapéus para as senhoras usarem em festas, mais como adorno do que função! Eram enfeitados com missangas e pérolas falsas, parecidos com os ramos de noiva.
Como a maioria dos europeus que moravam em Luanda tinham deixado a cidade, as festas, ditas de sociedade, estavam reduzidas a nada, os chapelinhos não eram encomendados e a Micá só trabalhava dois ou três dias por semana.
Os contactos com a Maria do Carmo passaram a ser frequentes e de início despedíamo-nos ainda no autocarro, algum tempo depois, alegando que o tempo sobrava, comecei a fazer-lhe companhia até perto da casa dos Pais.
Num desses dias, estávamos a continuar uma conversa iniciada no machimbo, recolhidos na sombra de um dos prédios, quando aparece a Fernanda, outra irmã da Maria do Carmo, alta, com traços africanos, mas europeus também, sobretudo o nariz, lábios e desenho do rosto.
A Maria do Carmo não ficou muito espantada com a chegada inesperada da Fernanda! Apresentou-me como o José de quem já lhe tinha falado.
Era uma pessoa encantadora esta Fernanda, duma alegria exuberante, quase em festa, ao contrário da Luísa e da Maria do Carmo, ambas mais introvertidas.
- Já que a mana mais nova não queria apresentar, tinha que ser eu a tomar a iniciativa! Declarou a Nanda, sempre a rir.
E fez a Fernanda muito bem! Pela parte que me toca, tenho um grande prazer em a conhecer, até pela sua boa disposição e contagiante alegria!
- Obrigado, é muito simpático esse elogio! Declarou a Nanda, convincente.
Dirigindo-se à irmã, propôs:
- Por que não continuam a conversa lá em casa, precisava que me ajudasses no jantar, o João convidou dois casais de colegas e só avisou quando chegou! Esclareceu a Nanda, parecendo nada preocupada.
- Tenho que passar por casa para dizer à Mãe, disse-lhe a Micá!
 - Não é preciso, eu já tratei de a avisar, vim de lá agora e de seguida vim ao vosso encontro! Esclareceu a Fernanda.
- Ao vosso?! Interrogou a Maria do Carmo, Como sabias que eu vinha acompanhada?! Voz de espanto da Micá!
- Oh, mana, deixa de fingimento! Pensas que não vos tenho visto, quase todos os dias vir juntos?! Venham lá, o José fica a conhecer o João e os miúdos! E janta connosco, se não tiver compromisso que o impeça!
Os meus compromissos terminaram às cinco da tarde, amanhã é outro dia. Mas a questão de jantar convosco…com visitas, não me parece boa ideia!
- É tudo gente nossa amiga e simpática; verá que não se vai sentir deslocado! Acrescentou a Fernanda.
E lá fomos os três para casa da Fernanda, cerca de duzentos metros de distância da paragem do machimbombo; uma casa de um só piso, como todas as daquele bairro assim como todas tinham um pequeno espaço em frente, mais para separar da estrada do que para jardim.
Depois do animado jantar e conversas que se seguiram, fiquei com a ideia de que a Fernanda era não apenas divertida das irmãs, mas uma entusiasta do relacionamento entre a Micá e eu; ou por que, tal como os pais, andava abatida e o meu aparecimento, para ela, Fernanda, era como um bálsamo para a mana mais nova, ou tinha gostado mesmo de mim e achava que ajudaria a melhorar o ar pesado que por vezes se instalava!
Saber qual a motivação do entusiasmo da Fernanda não era prioritário; o conjunto das pessoas que fui conhecendo, esse sim, era importante.
 A mim estava a fazer-me bem, pois estava a fugir da rotina das noites de copos, de fugas sexuais descartáveis, de ausência de compromissos. Agora tinha, mesmo que inconsistente, algo que me mobilizava.
Ao fim do dia, naqueles em que a Micá trabalhava, esperava-a na Mutamba e seguíamos para o São Paulo no autocarro, sob os olhares curiosos de alguns dos passageiros e algum retraimento dela, sobretudo quando eram olhares de conhecidas suas.
Mas tens alguma satisfação a dar a essas pessoas? Perguntava-lhe.
- Não tenho qualquer explicação a dar, mas esta gente é assim mesmo, tudo lhes serve para despertar a curiosidade e por certo, comentar, mas não estou nada preocupada com o que possam comentar! Garantia a Micá.
A maioria das vezes as conversas eram sobre futilidades e raramente falávamos de nós. Quase sempre, quando ela tomava a iniciativa, falava da família e das consequências que estavam a ter os acontecimentos da fazenda e da impossibilidade de ali voltar.
No ar pairavam nuvens de incerteza e os ventos que as poderiam levar não apareciam, antes se adensavam, pelo que a Micá dizia. Mais não adiantava.


                                                           V


Num dos dias da semana seguinte à do jantar em casa da Fernanda, o João telefonou a desafiar-me para um churrasco na praia, no domingo.
Como não estava de serviço, aceitei.
- Quem devia ter feito o convite, uma vez que foi dela a ideia, era a Micá, mas como sempre, não teve coragem e pronto, cá teve o João de ser o porta-voz do convite! O João ria…
E onde nos vamos encontrar? Perguntei.
- O Alberto e a Luísa passam pela Maianga e vem com eles! Respondeu.
Perfeito, eu combino com eles.
No domingo, pouco passava do meio-dia, aparece a família da Sofia e esta pulava de contente!
O churrasco era na ilha, do lado da baía. Fomos os primeiros a chegar, escolhemos o local, que parecia bem conhecido deles, a Sofia parecia estar em casa, mas sem móveis e corria, gritava por mim
- Zé, vê se me apanhas! Maravilhoso, ver uma criança em liberdade!
Cerca de meia hora passada e aparece o resto da família, numa das camionetas, a que se salvou da frota da serração, a maioria sentados em bancos adaptados para o efeito.
Não tinha conhecido ainda os pais e o irmão das três já conhecidas.
O patriarca devia ter perto de cinquenta e cinco anos, mas aparentando mais. Mais alto que eu, de pele curtida pelo clima, já com alguns brancos a despontar no cabelo ondulado.
Aparentava serenidade e segurança, mas dando um pouco mais de atenção, notava-se algum nervosismo, como alguém que tenta disfarçar uma inquietação, mas o não conseguia totalmente! E razão de sobra tinha ele, pelo que a Luísa e o Alberto tinham contado.
A apresentação foi franca, com alguma alegria por parte da mãe, não pelo que falava, mas pelo sorriso agradável num rosto bem africano.
- Desde há uns dias que andava com curiosidade de o conhecer e espero que a família o tenha recebido bem! Assim falou o senhor Santos.
Extraordinariamente bem, respondi! Desde a Sofia aos mais velhos.
Com geladeira e cestos nas mãos, trazidos da camioneta, chegaram a Dona Clara, a matriarca e o Eduardo, ou Duda para família e amigos, único varão dos cinco filhos, três ou quatro anos mais velho que a Maria do Carmo, tal como ela de feições marcadamente africanas e alguns traços europeus; não tão alto como o pai, mais perto da minha altura, mas pesando talvez mais de noventa quilos.
Tinha um ar calmo e, como a Micá, falava só quando achava necessário e revelava segurança quando falava. A Fernanda se encarregava de falar por todos e rir também.
Saudou-me com franqueza, desejou-me felicidade, que aproveitasse bem o dia e que aparecesse sempre que quisesse e pudesse, poi toda a família gostava de mim, acrescentou. E ainda…
- Combine com a Maria do Carmo para ir almoçar ou jantar connosco um dia destes!
Agradeci a simpatia e que não deixaria de a lembrar; almoçar só ao fim de semana, mas jantar não vai ser difícil. Excepto um ou outro serviço, as noites tenho-as livres.
O churrasco de frango, acabado de assar, estava excelente e as bebidas frescas sabiam a novidade, tal como o local e a companhia.
Logo que o repasto terminou formaram-se dois grupos: o dos cinco homens e o das quatro mulheres; dos mais novos não havia grupo, corriam pela praia e não dando tréguas aos grupos dos mais velhos, assim como a água da baía! O Pedro, o mais novo da Fernanda, não o convenceram a molhar os pés.
Como se a mim se dirigisse, o senhor Santos ia falando sobre as violências no Norte e quando chegava à “entrada da fazenda” já os olhos brilhavam com lágrimas que a todo o custo ele evitava que corressem, mas quando teve de falar da filha, do genro e dos três contratados, as lágrimas correram mesmo.
Com a voz embargada e sem grande certeza disse:
- Aquilo foi feito por gente que não era dalí, ou alguém que tinha inveja da família! E suspendeu o relato-
Fiquei com a idéia de que ele não tinha uma idéia muito clara sobre o que estava a ocorrer e para se apaziguar repousava na idéia de ser coisa de estranhos ou de invejas. E esta pouco segura convicção durou até eu voltar, em Outubro de sessenta e três.
Contou que, em cinquenta e três, lhe foi atribuída a posse daquela parcela de terras, boa parte de floresta de madeira “rica”, com uma nascente de abundante e puríssima água e até a existência, não confirmada tecnicamente, de diamantes.
Em cinquenta e quatro, com oito contos, iniciou a exploração da madeira, a mais fácil e de resultados mais rápidos; comprou as primeiras máquinas a crédito e em sessenta e um, quando a confusão começou, só em equipamentos ligados à serração, estavam instalados cinco mil e quatrocentos contos, mais as camionetas e trabalhavam na fazenda quarenta e cinco trabalhadores, alguns com a família.
Tudo foi ali investido, ao contrário do que outros fazendeiros fizeram, que iam investindo, parte dos proveitos, em apartamentos em Luanda, alguns até mesmo fora de Angola.
- Eu não. Angola era a minha terra, é a minha terra, e a ela entregava tudo. As únicas coisas que restaram são a casita no São Paulo e as duas camionetas, uma por estar em reparação em Luanda e a outra em trânsito, carregada de madeira, da fazenda para Luanda.
- A casa no São Paulo é pobre, um dia há-de lá ir e verá, mas é o que nos tem valido, ela e camioneta. Mas um dia tudo se vai recompor e a vida retomará o seu ritmo normal. Quase garantia o senhor Santos!
 O Duda, mais pragmático, sempre ia dizendo:
- Esse dia podia estar distante e vamos ter de continuar, como o temos feito até agora. Temos de pôr a trabalhar o outro camião, contratar um motorista e seguir em frente. Quando esse dia chegar estaremos prontos para retomar.
O senhor Santos, no seu brio de pai e fazendeiro não se conformava com a actual situação da família e recrimina-se por esse facto e ao ponto de se sentir responsável pela perda dos “filhos” e dos colaboradores que lá morreram também! E o Duda não ficou lá por duas horas, tendo saído de madrugada para Luanda.
- Não podemos falar de outra coisa? Interrogava-se o João! Afinal temos aqui um amigo que mal nos conhece e pode ficar a pensar que estamos todos abandonados ao destino!
Não se preocupe, senhor João, estou a saber o que não sabia e a aprender com os que sabem! É natural que o senhor Santos se sinta melhor falando do que o preocupa do que interiorizar tudo e entrar em depressão!
O dia passado com aquela família foi em boa parte agradável, diferente, mas fiquei com a ideia de que o senhor Santos tinha vontade de continuar a falar,
Como o Duda tinha sugerido, combinei com a Micá o almoço para o domingo seguinte, ficando assente que eu levaria as bebidas o marisco.
Chegado o domingo, fomos ambos comprar o marisco ao mercado da Maria da Fonte e as bebidas compraram-se no estabelecimento perto da casa da Micá.
Foi nesse dia que conheci a casa. O senhor Santos tinha saído logo pela manhã, como era costume.
Na véspera andou muito agitado, segundo a Micá ; era o dia de aniversário de nascimento da Ana, vinte e seis, se fosse viva.
Quando chegou para almoçar vinha com aspecto de ter bebido! Pediu desculpa várias vezes e que não era assim que esperava receber-me!
Não tem que preocupar-se comigo, senhor Santos; estou profundamente grato por me receberem em vossa casa, compreendo a vossa dor e sobretudo a respeito. A vida é bem difícil muitas vezes e o senhor Santos sabe isso bem melhor do que eu, quer pela sua idade, quer pela sua experiência. Esteja à vontade e proceda como se eu cá não estivesse.
Amanhã ou depois de amanhã, ou até hoje, se achar bem, vamos continuar a conversar sobre o que o senhor Santos achar, é sempre um prazer grande ouvi-lo. Tenho a tarde e noite disponíveis.
Pouco comeu, quase só fez companhia, mas elogiou o almoço, sobretudo o caril feito pela Maria do Carmo, com coco fresco que eu ajudara a ralar.
O Duda, a seguir ao almoço foi encontrar-se com amigos e o senhor Santos disse que ia descansar um pouco.
Ficou a dona Clara a fazer-nos companhia, pedindo desculpa em nome dos dois por me terem deixado, mas logo reconheceu que eu não estava nada preocupado, tinha percebido que gostava de deixar as pessoas à vontade.
Ela própria, desculpando-se, foi para o anexo, onde estava a cozinha mais utilizada com o lava loiças, começando a tarefa da lavagem.
Mal ficámos sós, talvez para iniciar a conversa, ia começar o seu pedido de desculpa; apercebendo-me disso, segurei-lhe as mãos e quando ia dizer-lhe que nada havia para desculpar, ela puxou as minhas mãos e levou-as ao rosto, que eu segurei e puxei para mim.
Foi nestas condições que o nosso primeiro beijo aconteceu! Quente, tenso também e os braços envolvera os corpos num amplexo que ambos desejámos não terminasse, por tão esperado.
Algum tempo depois, pouco me pareceu, aliviadas as tensões, as primeiras palavras foram para a ausente Sofia, a irrequieta sobrinha que no machimbombo nos proporcionou as condições de nos conhecermos e os sentimentos que estávamos a viver.
Uns dias depois foi o senhor Santos quem me convidou para almoçar, só para os cinco, frisou: ele, Dona Clara, Duda, Micá e eu.
Correu bem. O senhor Santos continuou a falar sobre ele: “que fora um dos primeiros proprietários de camioneta, que tinha ensinado muita gente a conduzir, que entendia de mecânica e de tantos outros saberes que a idade e a vida agitada, com algumas dificuldades, mas que vão ensinando e acumulando, do tempo de espera da concessão da fazenda, do trabalho que nos primeiros tempos ele teve e os que com ele desbravaram a mata virgem para criar os acessos, na esperança de que, brevemente, tudo voltasse à normalidade”.
Recordou o tempo em que um proprietário lhe fez a proposta de, em troca da camioneta e de o ensinar a conduzi-la, lhe passaria para seu nome um terreno à beira-mar, que vai do porto de Luanda até à encosta da Mulemba, onde mais tarde o engenheiro Betencourt de Faria veio a instalar o seu observatório astrológico e um pequeno museu de fósseis marinhos que o mar ia depositando no areal.
Enquanto o namoro com a Maria do Carmo se ia transformando numa relação de desconhecida delicadeza, melhorava também a que mantinha com a família. Só o comportamento do senhor continuava tenso, revelando não ser fácil adaptar-se à vida de Luanda e à sua situação de “desempregado”, ensombrava o ambiente geral.
Um dia qualquer, penso que para festejar o aniversário do Duda, alguém tinha levado de Portugal, um leitão à moda da Bairrada.
Convidaram para ir jantar com eles e à hora combinada cheguei e já todos estavam presentes. Cumprimentei todos já reunidos à volta da mesa, só as crianças preferiam brincar. O senhor Santos estava no compartimento da cozinha, sentado num banco pequeno e à sua frente um pequeno grelhador e perguntou se queria provar do seu petisco.
Depois de me ver a comer com ar de satisfação, sorrindo, foi explicando:
- É peixe do rio, tem o nome de Cacusso, abundante no rio Bengo! Quer provar?
Tinha três Cacussos grelhados num prato, à mão removia os lombos e molhava-os no molho que tinha ao lado, feito à base de óleo de palma a que chamavam “dém-dém” e o indispensável gindungo. Era bem evidente o prazer que sentia na forma como separava os pedaços, os banhava na tigela com o molho e os levava à boca! O ritual era quase litúrgico, mas o ar de satisfação era mais o da criança a quem deram uma guloseima.
Após a breve leitura do acto gastronómico do solitário e recente amigo, foi a vez de me iniciar no cacusso! Provei, saboreei e decidi que era melhor do que leitão, de que não era adepto fiel.
Fui comunicar a opção feita, pedir desculpa ao grupo do leitão, todos acharam bem, que até fazia companhia ao pai. Só o Duda acrescentou que também tinha que provar o leitão. Guardem um bocadinho que esteja bem tostadinho.
O raio do cacusso está tão bom, que até já combinei com o senhor Santos, para quando tiver o petisco me telefonar para o quartel e deixar ao telefonista de serviço o recado: diga ao furriel Monteiro que hoje há, que eu sei já do que se trata! Risos dos mais velhos!
Não foram muitas as vezes que telefonou! E não foi por o acordo ser feito um pouco a brincar!
Continuava deprimido e a beber. Algum tempo depois, suspeitando do tempo que passava fora, averiguaram e concluíram que, ele retomara o “romance”, interrompido há vários anos, com uma senhora que nunca vi,  mas era uma “cabrita” de pele clara, que morou perto da casa deles, no São Paulo.


                                                           VI


A Fernanda engravidou pela terceira vez e como a casa, já então pequena, se tornaria ainda mais com o novo habitante, resolveram comprar uma das casas de uma urbanização situada perto da fábrica de cerveja Cuca, para onde foram morar.
A Maria do Carmo passou a ficar em casa da Fernanda, para o caso de ela precisar de ajuda durante o final da gravidez e também para ver se o ambiente tenso, instalado em casa dos pais, melhorava.
Com esta alteração a maior parte das noites eram passadas, até perto das onze horas, quando passava o último autocarro para o centro da cidade.
A casa, bastante pequena, tinha dois pisos diminutos: no de baixo tinha a cozinha, uma sala e uma casa de banho; no de cima eram os quartos, dois: o principal e outro mais pequeno, que seria o dos hóspedes, além da cama, este tinha também um beliche.
Normalmente, logo que terminados os trabalhos de limpeza da cozinha, a Fernanda levava os pequenos com ela para o piso de cima e nós ficávamos na sala. O João trabalhava por turnos e um deles terminava à meia-noite, não o vendo durante toda a semana.
Só os transportes dificultavam as coisas, como disse antes o último autocarro era às vinte e três horas e os táxis, além de ser caro, havia motoristas que não aceitavam fazer o serviço para aqueles lados durante a noite e o bairro começou a ser habitado antes de o empreiteiro fazer os acessos, que ainda continuavam a ser terra solta. A minha assiduidade passou a ser menor, mesmo que a nossa relação tivesse ganho em qualidade, permitindo que nos fossemos conhecendo melhor em intimidade.
A relação entre o senhor Santos com a dona Clara e a dele consigo mesmo, piorava dia a dia. As tensões acumuladas que a inacção ampliou, eram afogadas na bebida, reflectindo-se em casa e no seu organismo.
A Fernanda, através da mãe, ia sabendo do andamento da vida do casal e a certa altura a dona Clara lhe disse que tudo se agravara a partir do dia em que ele se apercebeu de que entrara em perda de erecção, ao mesmo tempo que as permanências em casa da outra senhora eram mais demoradas, aumentando, naturalmente, a tristeza da dona Clara e da família também.
A Fernanda e o Duda, com o acordo da restante família, falaram com o Pai, aconselhando-o a ir mesmo viver com a ex-amante, poderia até ser benéfico para ele e trazer alguma tranquilidade à mãe.
E assim acabou por acontecer, mudando-se para a casa da amante e só de vez em quando contactava com a família.
Este ambiente em casa dos pais, a ida da Fernanda para a urbanização no bairro da Cuca, mas sobretudo por não me aperceber do quanto nefasto devia ser o facto de a Micá nunca ter ido a um baile desde que nos conhecemos! E o baile era quase uma parte do angolano e de seu ritmo, o não ir por minha causa achava pouco saudável-
Coloquei-lhe a questão e, como esperava, não adiantou muito, apenas dizendo que não lhe fazia diferença alguma, preferindo estar comigo a ir para as farras.
Mas eu vou contigo! Para quê se não gostas de dançar?!
Eu não disse que não gostava, disse que não era um grande dançador e até expliquei porquê!
A Fernanda estava sempre a par destas sensibilidades da família e a ela recorri para tentar ficar mais esclarecido, perguntando directamente se a Micá não gostava de ir aos bailes, como todos vós gostais?
- Ela pensa que o Zé ficava aborrecido se ela fosse e o Zé não! Respondeu a Fernanda.
Mas eu já lhe propus ir com ela e dançava com quem entendesse!
- Isso pode parecer simples, mas não o é tanto assim! O nosso hábito é de quando uma rapariga tem namorado, os outros rapazes acham que não devem convidar para dançar! Esclareceu a Fernanda.
Insisti no assunto com a Micá, mas os resultados foram nulos. Mas a sensação, que o tempo veio confirmar, de que nossa relação estava e esfriar!
Sobretudo depois de a Natália, amiga da Micá e minha amiga por esta via, ter começado a namorar com o Magalhães, a quem nós o apresentámos e soube que ela não tinha os mesmos preconceitos da Maria do Carmo; se o Magalhães ia, era com ele que dançava, mas quando o Magalhães, por qualquer motivo não ia, a Natália não ficava retida em casa.
A própria Natália confirmou que achava estranho que a Micá deixasse de ir às farras.
Entretanto a Fernanda teve a Rita e, como já calculava, convidou-me para padrinho e à Maria do Carmo para madrinha. Ou seja, fomos as testemunhas no Registo Civil, o baptizado devia ser marcado depois de eu regressar de Portugal!
Para a noite do dia do registo da Rita a Fernanda tinha preparado um jantar para os familiares e alguns amigos também, com baile depois do jantar e a Micá dançou, depois de combinarmos que eu não desceria para não servir de impedimento a que a convidassem para dançar.
De vez em quando aparecia no quarto dela, onde eu estava, algumas vezes com lágrimas, mas sempre a convenci a regressar e continuar.
Penso que essa foi a nossa despedida que não houve.
Chegou o mês de Outubro e eu partia no dia dois. A Micá tentava obter de mim a confirmação que nunca teve, de que eu não mais voltaria: “ eu sei que não voltas, mas fica sabendo que gosto e continuarei a gostar muito de ti; tenho muita pena que não venhamos a ser felizes por muitos anos!”
E, a brincar: “se até ao Natal não vieres, eu e a Rita, nossa afilhada, vamos fazer-te uma macumba e nunca serás feliz longe de nós!”
No Porto de Luanda, da amurada do Vera Cruz, ainda vi os dois cunhados e as duas irmãs.
Eles não devem ter visto o mês gesto de adeus, seria difícil no meio de tantas fardas iguais! Eles sabiam que eu não gostava de despedidas, mas ainda tentaram fazê-lo, como premonição de que me não veriam mais.
O Magalhães e os restantes amanuenses ficaram, não sei por mais quanto tempo, nem se por lá ficou! O namoro com a Natália estava em plena evolução e não ficaria admirado se ele tivesse decidido ficar.
E pode ter sucedido, nunca ter contactado comigo, porventura ofendido, por não ter escrito para Luanda. E esta espécie de segredo se manterá e não muitos mais, pois não tínhamos segredos, como dois irmãos da mesma idade! Ele sabia que as coisas ficaram tensas a partir da altura em que alguém fez constar que eu fazia em Luanda uma vida de rico porque a família da namorada é que me financiava.
Nunca comentou tal atoarda, mas ficou talvez mais chateado do que eu, por avaliar o que um boato pode provocar.
Sabia que ele morava no bairro do Restelo, mas nenhuma outra referência tinha, nomeadamente os nomes dos familiares.
O Pinto, de Jales, visitou-me quando eu ainda trabalhava no Tribunal de Leiria, não muito tempo depois do regresso! Ia casar uns meses depois.
O Gil, que ficou a apoiar no trabalho em que eu prestava já algum serviço, encontrámo-nos no Mercado de Santana, em Leiria, andava ele em viagem com a família, que estava no carro à espera e poucos minutos falámos.
Que algum tempo depois de passar à disponibilidade, aceitou uma proposta de trabalho para a Secil, na Mulemba, onde continuava a trabalhar, estando de férias em Portugal.
Perguntei se sabia alguma coisa do Magalhães e da Natália, mas também deixou de os ver; mas sabia que o Alberto, cunhado da Micá, continuava a trabalhar no porto de Luanda e que ficou com a ideia de que tudo estava bem com a família.
E assim terminou a minha “aventura” angolana, sem brilho nem glória, que nem o cartão de despedida, assinado pelo General, Comandante da Região Militar, lhe conseguiu transmitir.
O que não terminou ainda e é cada dia mais viva, é a saudade, mesmo sabendo que Luanda, hoje, pouco terá já do encanto que me seduziu e a tantos outros que por Luanda passaram.

Reis Caçote
Dig. 29/06/2015 

ERAM COMPANHEIROS DE PAZ


UM ROSTO DOS MUITOS QUE NA AFRICA VIVEM


TAMBEM AFETARAM OS MEUS FAMILIARES


UMA PAISAGEM QUE PODE SER DE QUALQUER PAIS


OS BOATOS, PODEM SER ASSIM TRANSMITIDOS



















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