CONTINUANDO NAS RECORDAÇÕES DE ANGOLA, A MINHA GUERRA DE LUANDA! É UM PEQUENO APONTAMENTO, MAS CURIOSO!
A
TÁTICA DO SAGUIM
I
Estávamos ali há mais de um ano e meio; ele também:
passeando-se, pachorrento, pelo chão de terra batida, pelo baço-avermelhado, da
cor do chão que pisava, em direcção à cozinha, onde o rancho estava a ser preparado,
para o almoço fardado ou então, à sombra, dormitando, no mais fresco lajedo, do
chão do “claustro”.
Assistia sempre ao render da parada, em pé, solene e
sonolento, como se aquela cerimónia, todos os dias à mesma hora, também fosse
dele.
Assistiu, ainda com mais solenidade, ao casamento coletivo,
celebrado pelo alferes-capelão, Amador, dos mais de vinte soldados da última
incorporação: com suas noivas de branco vestidas, de grinalda e ramo de flor de
laranjeira, tudo duma imaculada brancura, que a sua pele negra fazia realçar, entrando
num quartel militar, pela primeira vez,
O ventre de algumas das noivas anunciava uma gravidez em
adiantada gestação, outros nem tanto e umas cinco ou seis levavam pela mão,
certamente por não terem quem os guardasse, os monas cabisbaixos, descalços e
contrariados, mas não devia ser por estarem a assistir ao casamento dos pais.
Para maior solenidade, o alferes Amador, incluiu na
cerimónia a celebração da Sagrada Eucaristia, alargando o tempo, demais, para
quem está nada habituado a estes rituais.
E não tardou a alguns pés, habituados a palmilhar terra de
musseque toda a vida, cansados do desajustado sapatinho de verniz branco, já
polvilhado de pó avermelhado, do chão da parada, sem para eles pedirem a
independência, se libertaram, ficando no chão, abandonados, os sapatinhos que
só para estorvar e alguns coxear, as noivas de “São Paulo de Luanda”.
Quando, a brincar, como sempre fazia, desde a Kibaba da
guerra, perguntei ao capelão Amador, se a flor de laranjeira , mesmo que de
seda, branca como as naturais, não era mais o simbolo da castidade, veio logo a
acusação, usada no bananal da guerra, em outras circunstâncias: “ cala-te, és
um hereje” e a sumária condenação: “ainda vais para o inferno!”
Assistiu também, não apenas com solenidade, mas certamente
com alguma e canina inveja, à condecoração, penso que no dia da Artilharia, dos
militares ( oficiais, sargentos e praças ) do GACL- Grupo de Artilharia de
Campanha de Luanda, que se distinguiram pelos bons serviços prestados à Patria,
na provincia de Angola.
Com a unidade formada, em parada, foram sendo chamados, por
grupos de patentes, que deixavam a formatura geral e iam formar, destacados,
onde o Comandante da Região Militar, General, ia pendurando, logo acima do
bolso esquerdo da camisa, uma fita vermelha e verde, dobrada, onde pendia uma
medalha mais acima, dobrado em “U” tinha um arame da cor da medalha, de pontas
afiadas, que perfuravam o tecido da camisa.
Não eram todas iguais, as medalhas: umas eram cobreadas e
as outras prateadas; estranho, me pareceu, uma vez que a razão da condecoração
era igual para todos! Coisas da vida militar.
A que coube ao sargento Páscoa, era cobreada, mas não era o
metal que contava, era o facto de ser distinguido. O sargento em questão era homem
para uns cinquenta anos, artilheiro de bravura inquestionável, porte altivo e
peito aflito, aperreado na pequenez da camisa, aguentou de pé firme a comoção
espiritual do momento e também a dor fisica, que os arames, atravessando a
camisa e as primeiras camadas da pele, atingindo a camada que, no seu caso,
seria adiposo, daqueles mais de cem quilos de altivez, sem um queixume que se
ouvisse ou contracção que se visse. Segundo o regulamento, o militar na posição
de sentido, não fala nem mexe, sendo assim cumprido, pela sargento, esse ponto
do regulamento e respeitado o oficial superior que o condecorou. E só na
posição de descansar é que olhou e viu o que nós, apenas espectadores,
estávamos a ver antes: dois riscos paralelos, que tudo levava a crer serem de
sangue, a descer pelo lado de dentro da camisa, para o cinto, este apertando um
ventre de militar dos serviços.
E foi então que, disfarçando, desenterrou os ganchos que o
General lhe tinha, momentos antes, lhe tinha cravado.
Homem de coragem! Comentava-se depois e nos dias seguintes,
que além da condecoração devia passar a ser-lhe paga uma pensão de sangue1 Riam
alguns, mas o sargento nunca se queixou.
Como o efectivo do Pelotão de Comando e Serviços, cento e
cinquenta e sete, não fazia parte da Unidade em parada, assistiu, com a
solenidade exigida à cerimónia, assim assistindo, em directo à valentia do
sargento, agora revelada na parada!
Fiquei com a idéia de que, o nosso companheiro e vizinho da
espécie canina, se levantou e desapareceu, mas foi só quando os tambores e
clarins da fanfarra, entraram em competição barulhenta, voltando ao seu lugar
preferido, mal a música cessou.
II
Cada vez que outro canídeo, certamente curioso com o que se
passava dentro daquele recinto murado, se aventurava a entrar, nem que fosse só
para espreitar, de passo indeciso, saía em passo de corrida, de rabo entre as
pernas e a ganir, quase sempre só por medo. Era rei e senhor da unidade!
Num dia qualquer, que não fixei, quando de manhã chegámos
ao quartel, vimos o pachorrento rafeiro acompanhado, não por outro ou outra da
sua espécie, mas sim por um pequeno saguim, em tudo igual aos do palmal da
Fazenda Tentativa, no Caxito, preso na coleira do rei num pedaço de corda fina,
com pouco mais de um metro de comprimento; numa ponta, o grande rei canideo, na
outra o pequeno simio, de coleira também.
No inicio todos achámos piada ao ver cão e macaco em
perfeita harmonia! Foi “sol de pouca dura”!
Uns dias depois, começámos a notar que a harmonia era menos
real do que pensámos e que a idéia, de quem a teve e a pôs em prática, estava a
resultar, de todo, numa canalhice de primeira feita ao cão!
Ele, habituado que estava, a gerir o seu tempo, dormindo
longas sonecas esparrameirado no lajedo e à sombra, sem ser incomodado, a não
ser um ou outro camarada de armas, que o cumprimentava e ele, sem mover a
cabeça da almofada de uma das patas dianteiras, abria os olhos, olhando de
lado, certificando-se de que não havia ameaça e voltava a dormir, ou a fingir.
Só as moscas, de vez em quando, o tiravam do torpor, que o calor da parada
promovia.
Agora, tinha à perna, ou à coleira, aquela nova “mosca”de
pêlo, sempre disposta para todas as brincadeiras e tropelias, o simio,
endiabrado!
Ora lhe saltava para a barriga, ora levantando-lhe o rabo e
espreitando-lhe o anus, ora mordendo-lhe nas patas e no rabo, mas tudo isto o
rafeiro aguentava, tentando abocanhar o saguim, mas sem se levantar.
Era um sem fim de diabruras que o simio inventava e punha
em prática, com elas obtendo fraco resultado; só as moscas ficaram arredadas de
se abastecer do sangue do rafeiro, uma vez que o simio as espantava.
A maior de todas as sacanices que o saguim inventou e usava
com excessiva frequência, foi a de apertar os testículos do rafeiro e este, com
a dor, tentava abocanhá-lo,o simio a fugir à frente, conseguido o que queria!
Galopavam pela parada e não tardou a aprender fingir de jokey de meia tigela,
saltando para o lombo macio da canideo, quando o galope era já bem vivo, nos
proporcionava o espectáculo de uma corrida sem meta, que aquela parelha sempre
ganhava, já que concorrentes não tinha.
Foram milhares de fotografias e penso que até uma curta
metragem de um amador de cinema chegou a
ser feita. Todos ficavam de mal com o saguim, mas nenhum, eu incluido, tomou a
iniciativa de pegar num canivete e libertar a parelha.
A atitude do “sábio” saguim foi frequentemente comentada e
por mim usada com frequência, quando algo ou alguem, não atava nem desatava:
O que aqui está a faltar é a poitica do saguim!
Não entendiam a que eu me referia e acabei por ter de
explicar qual a origem do dito.
E não estranharei muito se ainda tiver de o dizer muitas
mais vezes!
Reis Caçote
1962/dig.2017. (sem revisão e não tendo em conta o acordo ortográfico!)
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ERA EM TUDO SEMELHANTE, O NOSSO AMIGO |
NÃO ERA TÃO REQUINTADO, NEM O ESPAÇO ERA TÃO ATRAENTE! ESTES SÃO, DO SANTO ANTONIO, EM LISBOA, DE UM DOS ANOS!
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ESTE CONJUNTO É VULGAR NAS TERRAS DE ANGOLA, O DO SAGUIM PRESO À COLEIRA DO CÃO, NÃO ACHEI! |
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ERA O QUE O RAFEIRO FAZIA, NO GACL, DESCANSAVA, DORMITANDO! |
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