sábado, 10 de fevereiro de 2018

NATALIDADE-


NATALIDADE ou NA TAL IDADE - 1º da biografia

NA TAL IDADE…

I

Segundo afirmam os livros de registo do concelho de Vila Nova de Foz Côa, nasci em Castelo Melhor, a quatro de Março de mil novecentos e trinta e nove.
Não é verdade!
A partir deste erro, todos os outros, e não foram poucos, foram sucedendo.
Para bem ser, seguindo a ordem cronológica do nascimento dos quatro irmãos anteriores, eu devia ter nascido em mil novecentos e trinta e um. Só que, nestas e em tantas outras coisas, como é hábito dizer-se, “o que uma mão tapa a outra destapa”.
A questão deve ter sido outra! E por que não esta?
A família já era numerosa para os meios disponíveis e dessa realidade a ti Amélia Caçote e o ti Miguel Monteiro, tinham perfeita noção. E tomaram os seus cuidados, pelo menos durante cerca de nove anos, sem surpresas!
O ano de mil novecentos e trinta e oito deve ter sido de boas colheitas; mas o que devia ser um motivo de satisfação e festa, naquela latitude acabava sempre por ser, quando o mês de Maio avançava, motivo de grande preocupação! É que em Junho, segundo a teoria e a prática, era de “foice no punho”; ou seja, a canícula que o mês de Junho quase invariavelmente trazia, escaldava as encostas semeadas e não semeadas, pois estas não escapavam aos olhinhos do Sol; só que era o ano de folga, não davam preocupações. As outras sim, sobretudo as de cevada semeadas, davam aflições e não eram pequenas.
Os colmos, ainda esverdeados em Maio e as espigas aprumadas, quando o Junho chegava o colmo mudava de cor e as espigas perdiam o porte aprumado e dobravam-se pela base e, envergonhadas, não mais tiravam os “olhos” do chão. Os trigos nem tanto, aguentavam-se mais, os colmos eram mais robustos e os centeios, os poucos que eram semeados, sempre em terras mais frescas e dando poucos cuidados no mês de Junho.
Os problemas de Junho eram sem dúvida as cevadas e tanto maiores eram quanto o fossem a área semeada e o tamanho das espigas; se demorasse a ser ceifada, era mais que certo que uma boa parte ficava na terra; por isso havia que ceifá-la e enrolheirá-la antes de ficar ressequida.
E como este problema a todos os lavradores e ao mesmo tempo, era sentido por todos, em simultâneo. O “drama” era maior quanto maior fosse a área semeada. E o ti Miguel esgravatava tudo o que era terra, por vezes parecendo que até os calços e as fragas ele obrigava a produzir. Não as terras dele que as não tinha, mas sim as dos outros, a meias ou a terças. E assim ele era, segundo as estatísticas de então, o segundo maior lavrador da aldeia.
O tal ano de trinta e oito deve ter sido um desses anos em que a cevada era muita, o Sol escaldava e poucas as mãos para a ceifar.
A tia Amélia, com o seu temperamento guerreiro, deve ter dito das boas: “oh, excomungado homem que quando pega na rabiça não dá um minuto de descanso ao gado! E agora, como é que vamos dar conta deste sarilho?”
O ti Miguel, todo ele paz e conformação, lá ia rezando a ladainhado costume: “cá nos havemos de arranjar; na ladeira é que ela não fica!”. Fracas as desculpas para tamanha preocupação. E não ficava. Nunca, sendo ou não fracas as desculpas dadas.
A realidade estava bem presente, a cevada nas ladeiras e o Sol não dava folgas.
Certo dia, quando tudo estava sossegado, a dormir de cansaço, só o calor chegava para os deixar prostrados, certamente para apagarem os azedumes, devem ter-se descuidado ou com alguma confiança por pensarem que já não havia perigo, o último filho tinha já nove anos, e o que não devia ter acontecido, aconteceu.
Era grande a convicção de não haver perigo de engravidar e eram muitos os anos de vida em comum para que se conhecessem bem e certamente sabiam que numa noite bem dormida tudo seria esquecido; a ceifa, os molhos, os rolheiros, depois o transporte para as eiras aguardando a sua vez para serem trilhadas, tratar com outro lavrador com parelha de gado para participar na trilha e uma vez trilhada era esperar pelo vento que, sem ele, não havia separação da palha e do grão.
Andam aí as barranqueiras, vamos preparar que o vento está a chegar; e muitas vezes não chegava!
A cevada ensacada restava ainda deixar a eira limpa e guardar a palha que faria parte da ementa alimentar dos que, com o ti Miguel, puxaram o arado, com o timoneiro a segurar na rabiça e dando ordens que os machos não entendiam, transportaram a cevada para a eira, depois a palha para o palheiro, justo era que de tanto esforço tivessem algum benefício.
De seguida vinham os trigos e as mesmas démarches se repetiam e sem intervalos nem perdas de tempo, porque as amêndoas estavam ainda a acabar de encher e os donos dos amendoais precisavam de todos os braços e mãos disponíveis, umas para varejar, outras para apanhar e ensacar e lá voltavam os animais a fazer viagens e ida e volta transportando a amêndoa ensacada para acabar de secar na eira que os dois maiores proprietários tinham junto das suas residências: o senhor Cassiano Albuquerque e o seu cunhado, José Maria Patrício!
Os restantes tinham meia dúzia de amendoeiras, mal precisavam de espaço para secar os frutos.
Os afazeres eram tantos que a tia Amélia fez, como sempre, a sua parte nas lidas de casa e do campo, sem qualquer alteração, apenas um pouco de mais trabalho de campo.
Estava, naturalmente, a praticar uma das suas regras basilares:” primeiro as obrigações e só depois as devoções”.
Não para servir de exemplo a alguém, mas por ser essa a sua forma de ser e de estar.
Tudo dentro da normalidade e cumprida que foi a definitiva resposta do ti Miguel: “ Na ladeira é que não fica” Esta decisão tanto se aplicava à cevada como ao trigo. E, assim, os trabalhos de campo, um a um, foram sendo metodicamente executados.


                                                 II


Aí pelo fim de Outubro ou princípio de Novembro a tia Amélia começou a sentir-se “esquisita” o ventre anormalmente dilatado, uns enjoos que não se lembrava de ter antes.
À ideia lhe vieram as mais variadas possibilidades para se sentir assim, desde o excesso de trabalho no verão, mas nenhuma delas, no seu entender, se ajustava ao que sentia. A única que ganhou raízes foi a  de que seria uma “nascida ruim” eufemismo simpático para explicar o que já tinha nome, tenebroso nome e por isso evitado: cancro!
E assim que este receio se fixou, dele deu conta ao ti Miguel: “deve por aqui andar coisa feia” foi assim anunciado!
Vamos ao doutor Caldeira e ficamos descansados, respondeu o ti Miguel.
E lá partiram, rumo a Almendra.
O doutor Caldeira era o único médico que assistia as populações de  Castelo Melhor e Almendra, onde tinha a sua residência, indo a Castelo Melhor uma vez por semana ou quando  alguém estivesse tão mal que não pudesse deslocar-se a Almendra; ou então nos casos, já sem pressa, o passar a certidão de óbito dos que por velhice ou acidente se despediam do mundo dos vivos.
Durante o percurso pouco falaram, também o ti Miguel fazia mil e uma conjeturas, mais preocupado do que a companheira de viagem e da vida.
A tia Amélia sentada de lado na albarda do burro e o ti Miguel atrás, a pé, e agarrando os pelos do rabo do animal, aproveitava como se fosse à boleia.
A ideia que continuava a presidir às preocupações, era a de que aqueles achaques terem a ver com a tal “nascida ruim”, alguém lhe chamava também tumores, fossem benignos ou malignos.
A tia Amélia entrou no consultório; bom dia senhor doutor, o meu homem pode entrar?
Claro que sim! Respondeu. E logo a pergunta da praxe: “então o que vos traz por cá?”
E lá foi dando conta do que vinha sentindo há uns dias e do inchaço do ventre. Deve ser uma nascida ruim, adiantou a tia Amélia!
O doutor sorriu! Após a auscultação, simples para quem tinha uma experiência de muitos anos, foi suficiente para tirar conclusões. E com o sorriso agora mais aberto, diz com um divertido tom de voz; então prepara-te, daqui a quatro, o mais tardar cinco meses, vais ver a nascida ruim, e riu com vontade, quando olhou para as caras do casal!
…?! ...?!... só a cabeça abanava, tal era o espanto!
Muito eu gostava de ter visto a cara da tia Amélia! Falavam de mim, que devia ser uma nascida ruim e eu sem me poder defender ou ajudá-la a sair daquele espanto! “Deixe lá, Mãe, cá nos havemos de arranjar! Cá dentro é que não fico, assim como as cevadas não ficaram nas ladeiras e foram elas as culpadas deste percalço! Não é porque não goste de aqui estar, pois até me sinto bem e estou a crescer, mas tudo tem o seu tempo e quando chegar a altura…vai ver que até será divertido!”
O ti Miguel, meu Pai, ficou sem pio e quando saiu do pasmo adiantou, sem grande convicção, quase garanto: “antes seja isso (eu) que uma nascida ruim (o tumor)! E, segundo a tia Amélia me contou mais tarde, ambos acabaram por chorar de preocupação e alegria!
A notícia, dada quando chegaram a Castelo Melhor, como é natural, não agradou a todos, segundo fui sabendo, mas o que estava feito, feito estava, bem ou mal, nada havia a mudar agora. Era só esperar que a hora chegasse. E chegou.


                                                 III


No dia dois de Março e não no dia quatro, como ficou registado, mentira que ainda perdura, sendo eu mais velho que os papéis do meu concelho.
Sendo o último dos cinco irmãos, fui o primeiro e último, a nascer na casa que ainda hoje é a da família.
Às duas da manhã terminava a gravidez e a “aparadeira” do costume lá fez as manobras habituais, outras não sabia fazer se a elas houvesse necessidade de recorrer, por que a tanto a sua “formação” (gosto deste tão bonito vocábulo!) não chegava e lá terei dado os sinais de vida, que não terão sido muito afoitos, comparados com outros que ela tinha aparado.
Segundo soube mais tarde, terei nascido com o aspeto de quem não quer resistir muito tempo! Quanto enganados estavam, todos o que o pensaram.
Todos me terão aceitado, menos o mais velho dos cinco, que fazia questão de me não querer conhecer! E lá teria as suas razões: quatro já eram demais para o espaço físico da habitação e também para as posses da família. A chegada de mais um era uma sobrecarga para os outros. Se o fui nenhum deles o terá referido, mas o mais velho insistia, na teimosia dele, em não querer conhecer o mais novo! Birras de primogénito!
A tia Amélia, fina e sensível, de há muito se tinha apercebido que o João Amílcar, assim se chamava o mais velho dos cinco, andava cheio de curiosidade, mas a teimosia e não querer “dar o braço a torcer” tinha a sua força e lá ia resistindo. Até que um dia, já uma semana teria eu de vida, a tia Amélia viu que o João se aproximava de casa e arranjou forma de se esconder. Ele entrou, certificou-se de que não estaria alguém em casa, só eu no berço, aproximou-se, levantou a cortina de tule que servia de telhado para mim e de fronteira ara as moscas, olhou-me por instantes e, bruscamente, atirou a cortina para a posição anterior e foi à vida. Não fez qualquer comentário, naturalmente, ninguém a não ser eu o ouviria e o único ouvinte não estava ainda preparado para ouvir das razões do mais velho. Decididamente, não lhe agradei.


                                                 IV


Aquela que veio a ser minha madrinha de batismo, testemunha do registo não podia ser por ser menor de idade, era a filha única do meu padrinho, terá sido a grande entusiasta da minha chegada à família.
Tinha a mesma idade, mais dia menos dia, que o meu irmão do meio, o Licínio Augusto, tendo sido amamentada pela tia Amélia, porque a mãe não tinha leite suficiente para alimentar a menina.
Penso que a madrinha Noémia estimava muito a tia Amélia e esta correspondia como uma mãe. O elo familiar entre minha madrinha Cecília e minha mãe, era o de primas diretas, já que os pais de ambas eram irmãos, o avô Joaquim Caçote e a senhora Amélia Caçote, avó da madrinha Noémia.
A madrinha Noémia era filha do representante da família mais antiga e da nobreza, em que já havia cruzamentos de várias famílias, os Andrades, os Vasconcelos, os Almeidas, os Albuquerque e outras, pelo menos catorze eram os apelidos de meu padrinho. A mãe dele “não tinha nome” na aldeia, ninguém a tratava de outro modo que não fosse: a Senhora!
Não por estas razões, apenas mencionadas para situar os parentescos, mas por ter apenas treze anos e ser a menina mimada da aldeia, terá sido a mais entusiasta com a minha chegada e a que mais me prestou assistência nos primeiros tempos de vida.
Não há qualquer erro no meu registo de nascimento e ainda bem que não há, senão lá estaria em causa o rigor e o zelo do delegado do Registo Civil do posto de Castelo Melhor, o que seria uma injustiça, o senhor Pala sempre foi estimado por toda a gente, e rigoroso no seu trabalho.
O que de facto se passou foi, nem mais nem menos, do que aquele aspeto, se calhar fingido, que eu fui mantendo, pelo menos até perto do final do mês, porque nesse ano a Primavera chegou atrasada, não sei, mas penso que alguém o terá feito e a brincar com a situação foi dizendo: ele, ou seja eu, quer ver as amendoeiras em flor e não desiste de o fazer.
O registo foi sendo adiado, deviam saber que tinham trinta dias para o fazer e alguém, que não a minha mãe, terá sugerido: aguardai mais uns dias, por que entretanto ele (eu) acaba por se render e então fazeis logo as duas duma só vez, “com uma só paulada, ou penada, como gosto mais e era a arma a ser usada, a caneta, matais os dois coelhos”, mas o ditado não pode ou não deve por “dá cá aquela palha” ser alterado, ou senão qualquer dia não tínhamos ditado nenhum, o que seria uma perda grande demais para a cultura de um tão pequeno País e uma enorme falta de respeito para com os nossos eruditos do passado, por isso vai ficar paulada e não penada!
O que o proverbial conterrâneo devia querer dizer com aquilo? Que eu “atava as botas”, outro ditote que não se aplicava à situação, porque eu não usava botas ainda e se as usasse não seria capaz de as atar, e fariam ao mesmo tempo o registo de nascimento e o averbamento do óbito!
Eu devia estar atento e achei que aquele pragmatismo (este palavrão só muito mais tarde o aprendi) era duma falta de sensibilidade atroz, não se fazia a uma criança com menos de um mês de vida e mal vivida!
Decidi trocar-lhes as voltas e só  para que entendessem que as coisas da vida e da morte não podem ser tratadas de forma tão simplista, mais a mais envolvendo um ser acabado de nascer. Assim que me apanhei registado e já o Abril, o das águas mil, ensaiava os primeiros passos a fazer o aquecimento, deixei de fingir de enfezado e comecei a tratar da vida, ou seja, a mamar e a crescer, engordar nem tanto, e foi de tal forma a preparação que, só anos mais tarde, já em Lisboa, tomei os primeiros comprimidos e as primeiras injeções, de cálcio.
Tive, como quase todos os garotos, o meu sarampo, a tosse convulsa, penso que também bexigas, mas como o meu padrinho me tinha vacinado e a todos os outros miúdos, mais ou menos daquela idade, das bexigas não tenho marcas. Todos estes males foram sendo tratados com chás de erva-cidreira e da flor de sabugueiro, não me podendo queixar do tratamento.
E como não queria que se incomodassem eternamente comigo, tanto mais que a II Guerra tinha “começado” em Setembro, tinha eu seis meses, em Dezembro comecei a andar. E desde então não mais parei. O mais franzino veio a ser tanto ou mais resistente que os outros quatro.
Voltando aos primeiros tempos. Quando comecei a falar, sem que saiba por que razão, quando me perguntavam onde nascera respondia, invariavelmente, que tinha sido na Fontinha e que tinha sido o ti Xareta quem de lá me tirara. Se eu não tinha idade para inventar tal ocorrência, só o João Amílcar me terá inculcado tal estória! Ou o Licínio, com aquele sorriso matreiro, era bem capaz de o fazer.
A Fontinha onde “nasci” era uma pequena poça onde brotava, mesmo no Verão, um pequeno fio de água que devia ser a que se infiltrava por algum pequeno defeito na parede ou até no xisto do fundo do poço da horta do senhor Poínhos, e como a água é elemento reconhecidamente teimoso, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, aquele elemento acaba por caber em tudo, largo ou apertado que seja.
Para dar acesso à Fontinha foi feita uma escada estreita, com meia dúzia de degraus em pedra que era utilizada para abastecer de água para o gado e para as mulheres, quando ainda havia a correr pelo ribeiro, irem lavar as peças de roupa mais pequenas.
O referido ribeiro tinha, como função principal,  encaminhar as águas da chuva que vinham desde o alto de Santa Bárbara, passava pelas eiras e quando chegavam ao largo em frente ao cemitério, a maior parte ia pelo lado esquerdo, atravessava o caminho e já aconchegadinha, descia até ao outro ribeiro do lado oposto ao da Fontinha, passava por debaixo da ponte, feita da pedra daquela zona, uma laje de xisto, neste caso eram duas, suficientemente compridas para atravessarem, chegarem de um lado ao outro lado, onde se apoiavam; depois passavam por outra mais abaixo, a que liga a povoação à parte mais plana onde se situavam outras hortas, tomando este nome: as Hortas. Por vezes as águas eram muitas, umas passavam por debaixo da ponte e as mais apressadas galgavam por cima, mas logo se juntavam às outras, porque gostam de fazer grandes caminhadas, mas juntinhas.
E sem saberem umas das outras, iam encontrando pelo caminho outras, que se juntavam, escorrendo pelos terrenos laterais e só umas centenas de metros mais abaixo, no sitio designado por Vale do Seixo e aí sim, juntas as águas, cantarolando ou fazendo uma barulheira que não era cantada, não havia tempo para cantigas, queriam chegar ao rio Côa, mais propriamente à Côa, era assim que as pessoas lhe chamavam, enquanto o ao Douro era mesmo o Douro ou Doiro.
O ti Xareta, meu descobridor e salvador, meio tonto e de língua afiada, morava com a filha, Benvinda, numa casa grande junto ao “tronco”, na margem direita do ribeiro e a uns trinta metros de minha casa, esta do lado esquerda do ribeiro, agora tapado e que serve para o fim a que servia a céu aberto e também como esgoto para as águas domésticas, luxos que não havia então.
Dizia que o ti Xareta, ou porque lhe contou, que eu o acusava de me ter tirado da Fontinha, injustamente acusado, ou porque não gostava mesmo de mim ou do meu Pai, sempre que eu passava perto da casa dele, o que devia suceder várias vezes por dia, por ser tão perto de minha casa e ficar a meio caminho da casa da tia Filomena, eu me metia com ele, chamando-lhe Xareta ou Jarreta, lá por detrás da porta do quintal, me gritava excomunhões e me chamava filho do Miguel “ranhoso”, atirando com calhaus por cima do muro e que nunca me acertaram, porque não via o atirador, mas via a granada que ele atirava. Não recordo um único traço fisionómico do meu salvador, ou porque ele não se mostrava, ou por que a reclusão voluntária, era já o resultado das suas condições mentais estarem diminuídas; do que tenho ideia, é de que ele seria o meu único inimigo declarado. Ou talvez não, o mais certo era ter já a ver com a sua deteriorada condição.
Muitos anos mais tarde, já depois de passar a moda dos extraterrestres, eu quis aproveitar a ideia para, tendo o tema como base, escrever algo em que o protagonista tinha vindo do interior da Terra, um intraterrestre, oriundo do extrato geológico número setenta e dois, como podiam ser os setenta e três ou setenta e quatro, que o seu nascimento tinha sido anunciado, cinco anos antes, por um emissário do extrato, à minha Mãe, num encontro imediato, no “Canado das Bebereiras”, quando ela vinha dos Prados, horta que a família amanhava, e que ia caindo do burro, por este se ter assustado com o brilho que emanava do estranho ser (ou não ser?).A ideia foi posta de lado, como tantas outras o foram, mas nada prometo, pela negativa, de que um dia, se tiver tempo e disposição, não venha a pegar nela, na ideia. O assunto está vivo e o enquadramento também. Veremos isso depois.


                                                 V


Se da guerra, lá longe, quase nada se sabia, alguns dos seus efeitos foram chegando: militares, a cavalo, que nunca tinham sido vistos por aquelas bandas e se instalaram, de armas e bagagens, nos logradouros da casa do meu padrinho, única com espaço e condições para alojar aquele, mesmo que pequeno, grupo de pessoas e equídeos. Trariam como missão intimar os proprietários das terras que tivessem poços rasos, para rega ou consumo doméstico, a construírem uma cerca de madeira ou outro material, pintada de branco e cobri-los, mas só dois ou três o fizeram; aquele Povo não é de receber ordens de quem não conhece, mesmo que fardado e armado de espada à cinta.
Construíram, também, três talegres, que mais tarde vim a saber que a sua designação, não sei se só militar ou também civil, era de marco geodésico, nos pontos mais altos dos montes em volta da povoação. Mais para o fim da missão, já os talegres estavam construídos, só faltava a pintura, branca e vermelha, cor que ainda havia naquele tempo e que depois, não percebi bem porquê, passou a encarnada, foram explicando, que os pinos lá no alto, eram para ser elaborada a carta topográfica da região, certamente por não existir.
Nunca tinha visto cavalos tão bem tratados e arreados. Nunca assisti a nenhuma refeição dos equídeos, mas à socapa conseguimos ver umas sementes escuras, parecidas com as das ervilhacas, mas em tamanho maior, que um dos militares disse que era alfarroba; até deu uma mão cheia de tais sementes para provarmos, mas aquilo era mesmo uma coisa sem sabor, dura como fava seca e que não teve consumo pelos miúdos, talvez por ser dura demais para nossa dentição.
Outro pormenor que só mais tarde valorizei, foi o do racionamento e que para mim teve a seguinte expressão mais visível quando acompanhava minha mãe, uma vez por semana, a Almendra, levando um pequeno retângulo de papel e em troca trazíamos sete quilos de farinha; não sei se era paga ou não. Recordo outro pormenor ainda: ver o meu pai esconder, no canto esquerdo do fundo do palheiro, uma saca feita de covijões, ou seja, daquelas mantas feitas de trapo e cozidas. Era trigo não dado ao manifesto.
Só mais tarde soube que meu único cunhado, o Antoninho, tinha estado nos Açores, a cumprir o serviço militar e que minha irmã, sua esposa, não terá gostado muito. De todos os irmãos terá sido a ela que couberam a maior parte dos azares da família e que teriam sido menos pesados para ela, se  divididos irmãmente pelos outros irmãos.
O mais grave de todos foi o da sua viuvez com vinte e seis anos de idade e três crianças para cuidar, antecedida, a viuvez, de um sofrimento indescritível do Antoninho que o levou à morte.
Nunca tinha pensado especialmente, por razões que certamente terão uma explicação psicológica simples, na ausência física de ambos os meus Avôs. O avô Luís, pai do meu pai, tinha já falecido quando eu nasci; e o avô Joaquim, pai de minha mãe, há muitos anos emigrado no Brasil, de onde não regressou.
Do avô Luís soube que sofria de asma de forma muito acentuada e que terá contribuído decisivamente para a sua morte. Só muito mais tarde, já em Lisboa, quando, em jeito de critica, sou a ele comparado, pelo meu “tutor”, ou seja, o irmão Licínio! Mais por curiosidade de saber algo mais do meu avô, do que o valor da critica, procurei saber em que era parecido: o avô Luís, já muito idoso, ainda insistia com a avó, Maria José, para o contacto sexual, que ele designava por “refestelo”.
Do avô Joaquim, fiquei com a ideia, do pouco que dele soube também, que deve ter sido um homem destemido e com algum sentido critico. Havia a estória, para mim quase lendária, da cobra que ele terá enfrentado, no moinho que, tudo leva a crer,   era o explorado, quando nasci, pelo tio José Caçote: o ofídio, prendia o rabo num dos caibros do teto e assim bebia água do Côa, na levada que fazia funcionar o moinho! O avô Joaquim terá pegado na roçadoira e de um só golpe cortou a meio a cobra que outros não quiseram sequer dela se aproximar.
Do seu sentido crítico, também por mim definido, tinha como fundamento os nomes dados aos dois cães que tinha: o “Vale quem Tem” e o “Maçaroca” e que eu sempre atribuí à forma como a irmã, a senhora Amélia Caçote, ter formado uma pequena fortuna ao casar com dois viúvos, ricos e sem filhos, acabando por ser a herdeira universal, duma forma pouco ortodoxa para a época, ou talvez não, mas para o caso não tem qualquer interesse.
Outra estória, que sempre achei deliciosa, era a de ele fazer questão de só ir a funerais dos que ao dele fossem! Fabuloso!
Este avô Joaquim, quis eu que, de um momento para outro, num passe de magia, se encontrasse comigo em Lisboa e com ele manter uma relação longa e de grande proximidade, onde ele me contasse as suas aventuras do Brasil, para onde emigrou antes de eu ter nascido e não mais ter voltado. Não sucedeu tal encontro, mas ficou sempre no ar, a ideia de que algo ou alguém, me sussurrava ao ouvido conselhos e que me foram de grande utilidade, no momento exato da minha demanda por Lisboa: seria ele, meu avô, ou o Anjo de Castelo Melhor?!
As avós eram ambas vivas quando nasci. Da avó, Maria José, só recordo o estar já acamada, o que sempre me foi negado pelos meus irmãos durante anos e que só muito recentemente confirmei e convenci, indo com o Ernesto a indicar-lhe a casa onde a vi e vejo, sempre que nela penso, e a forma de chegar a tal casa, hoje habitada e modificada, pelos moradores seguintes.
A avó Josefa viveu ainda muitos anos, falecendo com mais de noventa anos, quase cega, mas perfeitamente lúcida. Sempre gostei muito dela e ela me retribuiu o afeto. Pena foi que a minha ida para Lisboa, aos treze anos, me tivesse dela separado e de quase todos os familiares.
Um pormenor que sempre me desgostou, foi a ausência do apelido Caçote, que se deve ao facto de, na época, não ser permitido mais que três nomes: um nome próprio e os dois apelidos ou então, como foi o meu caso, ter dois nomes próprios e um apelido, que teria de ser o paterno: o Caçote passou a ser o adotado em tudo o que vou fazendo, quer na escrita, quer na pintura. O roubo está ressarcido!
Reis Caçote
Leiria, 1984
(PUBLICADO NO BLOG “O AVÔ JOAQUIM”
orgale.blogspot.com

A PINTURA, PARA SUPRIR ALGUMA FALHA !

AQUI NASCI E VIVI, OS PRIMEIROS 13 ANOS DE VIDA!

COMO ERAM BELOS, OS TEMPOS!






O QUE MAIS ME EMOCIONA, DAS ARTES!











                                                














         
















































































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