sábado, 10 de fevereiro de 2018

CASTELO MELHOR-BIOGRAFIA

ESTE TEXTO INCLUI, ALEM DA NOTA  DE APRESENTAÇÃO, OS 

. SENHORES DA MINHA ALDEIA

 OS TI'S DA MINHA ALDEIA

- OS FORASTEIROS

                              CASTELO MELHOR


Como é de supor, Castelo Melhor não fugiu à regra das outras urbes, pequenas ou grandes. Havia muitos mais ti’s do que Senhores! E se alguma fugiu à regra só pode ter sido de uma destas formas, apenas três por não ter tido tempo de aceitar outras:

Primeira – ou o senhor se instalou primeiro, mal ou bem e partiu depois a buscar os que lhe iriam tratar das terras, os ti’s necessários, mas por certo mais que um, senão podia ser complicado, um amo e um escrevo! Não era aconselhável e todos perceberão porquê! É só uma questão de segurança, mas havia outras, a doença ou morte do escravo. Passemos, portanto à

Segunda – ou então o senhor, sanguinário e louco, ou louco primeiro e depois sanguinário, se é uma coisa por certo também é outra, com as armas e um bom aliado, bom não é no sentido da bondade, resolve desfazer-se dos restantes ti’s que o temiam e fica, uma vez a tarefa acabada, só ele senhor e o bom escravo! E lá volta a colocar-se a dificuldade da primeira hipotética forma, ou seja, qual dos dois ficava, sabendo o senhor que o bom Ti que restava, vendo o que se passou com os outros e temendo que, noutro acesso de fúria, o Senhor o aviaria a ele, resolve adiantar-se e, zás, lá vai o Senhor! Só que o Ti, agora sozinho, sem senhor ou dono das terras, concluiu que ele, afinal, sem que tivesse pensado nisso, toma posse “administrativa” (esta é de agora, não daquele tempo) das terras e passa a ser ele o Senhor! Senhor, mas sozinho, como no início da primeira das formas, logo, tem que repetir tudo, mas isto é hipótese que ele, e eu, não iremos repetir! Vamos, então, à

Terceira – ou ainda, como pode muito bem suceder em Castelo Melhor, a curto prazo; os velhos Senhores e os velhos Ti’s já foram desta p’ra melhor, muitos dos Ti’s ainda vivos, porque mais novos, deram à sola, ou para cidades migrando, como eu e a maioria dos da minha geração e seguintes e outros, que à primeira pertenceram, acertaram com os vários caminhos para a estranja, emigrando e em Castelo Melhor hoje, só estão meia dúzia (meia dúzia é uma maneira de dizer) de Senhores e de Ti’s, cada vez olhando mais desconfiados uns para os outros e a botar contas à vida, a ver quem a vida vai deixar primeiro! E poderá muito bem, muito bem não, suceder que o último possa ser um Ti qualquer, que decide não querer ser senhor, até por falta de hábito e habituar-se já não vale a pena, decide zarpar para outro lado, virando costas a tudo, como fizeram os antigos do Castelo Calabre que vieram a fundar Castelo Melhor.
Mas o que eu queria mesmo registar e pelo andar da carruagem digital nunca mais faço, eram os Ti’s, só alguns, lá da aldeia, até por que os Senhores, porque o são, foram os primeiros, sendo natural, mesmo sendo menos, que um ou outro escapasse, mas a ideia inicial era serem todos, mas não passava de intenção, porque podia deixar alguns de livre vontade ou esquecimento, por não ter nenhum compromisso a não ser comigo, podia a qualquer momento decidir não escrever sobre ele, mas como a todos eles o passaporte sem prazo de validade que lhe foi dado para a vida terminou já, não corro o risco de algum em falta poder vir a reclamar!
Vamos lá aos Ti’s e Ti’as e deixemo-nos de conversa fiada! Quem vai ser o primeiro ou a primeira? Uma? Vamos a ela:

                                                 I

A TI LAURA, DE ALCUNHA “BORRINHA”

E digo que será alcunha por não acreditar que alguém, no seu perfeito juízo, fosse dar tal sobrenome ou apelido à Ti Laura.
Morava na Rua debaixo, junto ao ribeiro, agora esgoto, a menos de cinquenta metros da casa onde nasci e sempre vivi até me enviarem para Lisboa. Seria a Tia Laura da idade da minha mãe e tinha, se não estiver errado, três filhos, o mais velho de nome André.
O rapaz era tão bem comportado como os outros da sua idade, até melhor do que outros e passava a vida a brincar perto de casa, com os irmãos mais novos e os primos que moravam na casa ao lado da deles.
A Tia Laura, nunca percebi porquê, cada vez que se lembrava, fosse a que hora do dia ou até da noite fosse, chegava à janela e com um volume de voz impressionante (que beleza no canto lírico!) gritava
                         “ Oh, André Lopes Gastalho!”
Era este o nome completo do rapaz e ninguém podia naquela época ter mais de nome e dois apelidos ou, como era o meu caso, dois nomes e um apelido, o do Pai como a legislação devia impor; no caso do André o Lopes seria da Mãe que gritava e o Gastalho do Pai que ouvia e tapava os ouvidos, tal como ele e os que se encontrassem nas proximidades. A maioria das vezes o André estava mesmo por debaixo da janela, mas o grito-chamamento era sempre igual.
E aldeia, daquele lado, ou uma boa parte dela, com as galinhas a cacarejar e os cães a ganir ou ladrar, murmurava: lá está a tia Laura Borrinha a chamar o filho mais velho!
Nunca percebi, nem lhe perguntei (é o perguntas!?) por que era o André o único filho a beneficiar daquele brado e os outros filhos não eram gritados, eram normalmente chamados! Seria o André um privilegiado da sorte ou um azarento dela?
Muitos murmuravam que o grito era contra o Gastalho pai, mas nunca ia além do murmúrio.
Penso que nem o André alguma vez percebeu o porquê daquele chamado!

Reis Caçote
Dig/14/04/2014


O TI FERNANDES, por alcunha “QUEBRA LINHAS”

                                                 I

Era um dos alfaiates da aldeia, não o mais procurado, talvez por ser um pouco trapalhão, e certamente a alcunha vinha dessa qualidade ou falta dela.
Se bom alfaiate não era, noutras artes era um desastre completo!
De tudo ele dizia saber fazer e alguma faria melhor que a maioria, mas dessas não irei falar, por não me lembrar delas e porque devo ter adquirido o mau hábito, comum a muito boa gente, o que nem é o meu caso, de só falarem do que alguém faz mal.
E nem vala a pena pensar, a título de exemplo, dos governos e das oposições e menos ainda naquela época em que só havia governo! Oposição, não, dizia-se.
O ti quebra-linhas seria hoje um cidadão atualizadíssimo, por ter uma autoestima incomparável! Tudo sabia fazer e bem, dizia ele.
A certa altura convenceu os conterrâneos de que era um exímio matador de porcos, dum só golpe o animal era sangrado e nem tinha tempo de sofrer! Isto seria um grande avanço na arte de matador uma vez que até ali nenhum dos contratados conhecidos conseguiram sangrar os animais de modo a que não fizessem aqueles gritos horrorosos de quem se apercebe que está a um passo da morte, não seria este o caso dos atados porcos, animais de pouca ou nenhuma inteligência.
Na matança que um seu familiar preparava e tendo em conta o apegado saber do seu familiar, há que convidá-lo, pois até ficaria mal se o não fizesse!
As matanças eram logo pela manhã, para dar tempo de tudo preparar antes e depois da matança era lavar as tripas do bácoro já sem vida e aberto de alto- a- baixo ou seria de baixo a alto, já que o cadáver estava agora pendurado de cabeça para baixo, preso pelos tendões das patas traseiras e com o focinho dentro de um alguidar de barro esmaltado, a aparar o sangue qua ainda ficara espalhado pelos órgãos e que não saiu todo na sangria que lhe provocara a morte, talvez paralisado de medo nas veias, e que iria servir para o serrabulho que o pessoal ajudante iria comer. Todo o outro seria mais tarde aplicado nas morcelas.
Estive, como é bom de ver, a falar do ritual da matança, sem grandes pormenores que em nada melhorariam o texto e a ninguém aproveitaria, já que hoje se vai ao talho e do porco se compram as febras, o lombo as costeletas, o entrecosto, o fígado para as iscas, os rins, o chispe e cabeça para o cosido à portuguesa, mesmo que em Espanha seja feito. As duas patas de trás vão ser tratadas com sal e deixadas a enxugar (curar, se chama) e depois adquire o nome e o sabor requintado de presunto. A indústria chama abate à matança e aproveita tudo, o pêlo é que não é aproveitado, mas parece que em tempos foi, pelo menos de alguns, com cabelo à punk e que era depois nomeado por cerdas, bem úteis para os sapateiros enrolarem na ponta da linha e facilitar a passagem pelo buraco feito tela sovela. Deve faltar muito pormenor, mas quem quiser conhecer, tim-tim por tim-tim a matança do princípio ao fim, vai a uma das muitas que são feitas para turista ver e para televisão filmar, mas só mostrar o que não é suscetível de causar algum desagrado aos mais sensíveis.
Quando o ti Fernandes chegou ao local da matança, com suas armas de morte, um grande facalhão que estivera a afiar cuidadosamente momentos antes, já o cevado estava deitado de lado e bem atado ao banco da madeira bem grossa, ainda agarrado por quatro ou mais homens para que o banco se não desequilibrasse e tombasse com o porco aos berros que parecia que o queriam matar e não se enganava; o mestre na arte de matar sem dor rapou os pelos numa pequena área que ele sabia ser a apropriada, entre as patas da frente e virando-se para os ajudantes “segurem-no bem”, enfiou o facalhão até ao cabo no corpo do animal, que aumentou os gritos e esperneou com tal força que os ajudantes se viam e desejavam para o segurar! Deve ter sido quando o porco se convenceu de que iria mesmo ser assassinado! Era um barulho ensurdecedor!
Mas o sangue que devia ser em golfadas pelo cabo da faca não apareceu, só o cevado continuava aos berros e o te Fernandes a tirar a faca e enterra-la, mas nada de sangue vindo do coração, apenas aquele que das veias e artérias superficiais mal sujava o cabo da faca!
Terceira tentativa e novo fracasso sucedeu, com ao ajudantes a olharem-se e o animal nos seus gritos agora um pouco roucos, parecia dizer ao ti Fernandes “ por favor, acabe de uma vez com isto”! O alarido foi tal e durou tanto tempo que a vizinhança, habituada a ouvir matanças, achou que algo não corria bem e começaram uns a ficar preocupados e outros com pena do desgraçado, mas logo se lembraram do que aprenderam de ouvirem dizer “não se pode dizer coitadinho ou outra expressão que revelasse dó, porque demorava mais tempo a morrer o animal, fosse porco, cabrito ou galo e esqueciam os gritos do porco” Aquele aparato fracassado levou alguns vizinhos a pensar que o dia da morte ainda não tinha chegado!
Um dos “ajudas”, como nas touradas, estava já farto de perceber o sofrimento do bicho, largou a pata que lhe calhara das duas traseiras, deu um encontrão no ti Fernandes que este quase se estendia ao comprido, pegou no cabo da faca e de um só golpe atingiu o coração do cevado que estava era a ser sovado, o sangue jorrou com força e os berros da vitima começaram a ficar roucos e mais fracos conforme o sangue ia correndo para o alguidar já com vinagre no fundo.
Os berros foram ficando mais roucos e espaçados e uns minutos passados ficou sossegadinho e calado! Deve ter sido quando entregou a alma ao criador, mas este não deve ter sequer dado por isso, queria era ver o porco chamuscado e bem rapado, pendurado junto da salgadeira.
O ti Fernandes devia ir esclarecer o que correu mal, mas o ajuda que acabou por fazer o que ele, ti Quebra linhas não fez, disse-lhe com firmeza: oh, homem, vá lá para as suas agulhas, tesouras e dedais e não se meta a fazer o que não sabe! E o ti Fernandes, lá partiu, como cão “com o rabo entre as pernas” a pensar em novas sabedorias!
Assim se iniciou uma nova carreira profissional que logo terminou, mas podia ter sido auspiciosa!
                                                

                                                 II

Por razões que terão a ver com o custo da deslocação e estadia, ou pode muito bem ter sido por doença ou outra qualquer razão, o fogueteiro para a festa do Anjo, aquele da lenda, recordam-se? Não apareceu.
Mas como lançar os foguetes, mal ou bem, havia sempre quem o fizesse e alguns, não sendo profissionais de pirotecnia, faziam-no na perfeição, não foguetes dos que estamos a falar, mas dos outros, menos barulhentos, mas não menos perigosos! Dizia-se que, na falta de fogueteiro, houve voluntários para os deixar ir; na aldeia, à alvorada e depois, nas pausas das cerimónias religiosas, depois na romaria pela encosta (mas que grande estirão!), com os andores aos solavancos, tem-te-não-caias, naquele caso era tem-te-santo não caias do andor, as bandeiras e o estandarte que só os mais fortes levavam e alguns para dar nas vistas experimentava, mas à primeira sacudidela de vento era vê-los aos trambolhões, de estandarte já sozinho e quietinho no chão, a gargalhada abafada porque iam na procissão. Quando havia mesmo vento não havia exibicionistas, eram mesmo dos ou três de músculos treinados no ginásio ao ar livre e enxada ou picareta a servir de aparelhos, quem se encarregava do estandarte até ao alto do monte do Anjo, onde vento nunca faltava à romaria.
Nesse ano de fogueteiro ausente até o vento colaborou, quase não se notando! Tudo correndo normalmente até que chegou a hora de lançar o balão e aqui tudo se complicou, era tarefa para especialistas, especifica de fogueteiro.
Os mordomos reuniram e acharam que o melhor mesmo era não ser lançado. A decisão foram comunicar aos romeiros que não se opuseram, mas cochichavam, comparando com outras festas e outros mordomos onde o programa foi cumprido. Havia os eram pelos mordomos outros não e outros nem por uns nem por outros. Quem mais se manifestava a favor do lançamento eram os garotos, era do que mais gostavam, melhor mesmo do que correrem para ver quem apanhava mais canas de foguete.
Ver o balão a encher, ficar cada vez mais gordo e depois a largada, mais ou menos desnorteada no arranque, até se equilibrar nos ventos mais altos e ser seguido, com as mãos a servir de pala, porque o sol aquela hora vinha mesmo a alegrar os olhos entusiasmados da miudagem. Lá vai ele, em direção a Almendra, diziam uns; outros desmentiam, não é nada, vai para a Meda e ficavam nisto até que deixava de ser visto e a paz voltava ao anjo.
Mas estava ainda por decidir se o balão era guardado ou não e parecia não haver consenso, sendo mais os que achavam e quase exigiam que o balão teria que ir para o ar, mas nem um único se oferecia para o preparar e o fazer elevar aos céus, ali bem mais perto do que se fosse lá no fundo, na aldeia.
Eis que, de peito pequeno mas saliente, inchado como balão, o ti Quebra-Linhas se propõe tratar do assunto, que não tinha qualquer segredo, era só olear a mecha, chegar-lhe lume, o balão vazio bem esticado na ponta do fio e este fixado na ponta da vara e uma vez cheio era largá-lo e boa viagem, vai com Deus.
A maior parte não confiava muito nas sabedorias do ti Fernandes, mas estava mais que visto que nas deles confiavam bem menos e lá deram a anuência para ele o lançar.
O problema que parecia estar resolvido parecia voltar à estaca zero quando o balão foi cuidadosamente desembrulhado e se deparou com aquilo que era a “boca” de entrada do fumo e de calor para encher, em vez de ser circular como sempre fora, era um quadrado formado por quatro ripinhas.
Foi grande a confusão que aquilo gerou! O ti Fernandes, o homem dos seis ofícios e não sete como costuma dizer-se, porque o de matador de porcos falhou, resoluto como sempre foi( e neste ponto devia ter o aplauso pela coragem revelada e não o sorriso de mofa que quase sempre lhe dispensam ), sem pensar muito e esse era o seu mal, respondendo às interrogações gerais, explicitas ou implícitas, sentenciou, sem margem para contestação: “ este balão é dos modernos (aprendam técnicos ou aprendizes das leis da Física de todo o mundo, por que mestres assim não aparecem a qualquer hora e de mão beijada! Este recomendação é apenas da responsabilidade do narrador, assim como o foram as pretéritas e o serão as futuras que possam surgir!) e, por isso, dizia o ti Fernandes com segurança, em vez de a mecha ficar fixada no cruzamento dos pedacinhos de ripa e voltada para dentro, era o contrário que tinha de ser feito, ao seja, a mecha em vez de apoiada no tal cruzamento das tabuinhas, ficaria da mesma forma ali fixada, mas pendurada para fora do balão.
O resultado será este, esclareia o técnico: em vez de a mecha funcionar como vela acesa, que ninguém veria, ficava como rabo- de- raposa a arder antes de iniciar a subida e um cometa quando o balão se elevar! Percebem? Perguntou, ufano.
                                                                         Aqui vou ter de meter um aparte de uma cena ocorrida muitos anos mais tarde, com o engenheiro diretor de produção, ao examinar uma linha de secagem de embaladas serigrafadas! Achou que o sistema que outro colega tinha montado na origem da instalação da linha não estava bem. Que a ventoinha instalada sobre os elevadores para aspirar o ar quente de modo que as embalagens serigrafadas chegassem ao fim do percurso estivessem frias e secas, devia estar a soprar o ar ambiente para dentro da linha e dava como exemplo “quando nos queimamos nos dedos o que fazemos? Aspiramos ou sopramos? Teatralizando a atitude”. O responsável da manutenção, eletricista com anos vários de experiência, torceu o nariz, reticente e à parte comentou em voz baixa: “não acredito que o engenheiro que fez a instalação, que esteve em Itália para ver o funcionamento e instalação, tivesse montado a ventoinha ao contrário, mas ele é o diretor e especialista em eletrónica, até pode ter razão, mas duvido”
Decisão tomada, há que passar à acção, ou seja, inverter o movimento de rotação da ventoinha, operação de fácil execução que o electricista tratou e meia hora depois estava tudo pronto para ver o “Ovo de Colombo”. Mal as embalagens chegaram ao alto da primeira subida, atingidas pela corrente de ar da ventoinha, a que não estavam habituadas, saltavam dos respectivos suportes e precipitavam-se em queda com a velocidade natural da gravidade, aumentada pela corrente de ar instalada, onde se iam comprimindo até bloquearem a linha. Chamado o director, decidiu: “voltem a instalá-la como estava” e zarpou! Comentário do electricista: “engenheiros de trazer por casa” e foi repor a posição da ventoinha!
O ti Fernandes assim procedeu, tudo parecia estar a correr bem; o cordel do polo norte a passar pela extremidade do pau em forquilha e a outra ponta bem segura pelo ajudante. Os trapos embebidos em petróleo ardiam no chão e o técnico a direccionar a quadrada boca do moderno balão de modo a que a fumarada e calor expulsassem o ar normal que estava ainda no balão quase vazio.
O ajudante empoleirado mais acima ia aguardando a ver o balão a encher, cada vez mais redondo, mais inchado apenas aguardava ordens para largar a ponta do fio.
Quando o técnico de aerodinâmica (não era o Pedro de Gusmão, mas o ti Fernandes era isso mesmo só que não dizia pelo medo de ficar na história!) achou que estava no ponto, acendeu a mecha que pingava para cima dos trapos fumegantes, ficou com os olhos ainda mais cheios de fumo e a arder, o balão não mais se decidia a partir, mesmo com a ajuda dos impulsos leves que lhe eram dados e quando lhe pareceu que estava no ponto disse ao do pau, larga!
Mal este largou o cordel o balão achatou um pouco, abanou como barco em mar agitado, fez um esforço gigantesco, inclinou-se mais ainda e foi o fim. A mecha, ou melhor, a chama da mecha aproximou-se de um dos lados do quadrado, atingiu o papel e ainda o cometa não tinha subido nem cinco metros, mais a descer do que a subir, ardeu num abrir e fechar de olhos, caindo sobre o rochedo, tombo curto, mas queda mesmo, perante as dezenas de testemunhas!
O ti Fernandes limpava os olhos, não por estar a chorar de pena do balão ou do seu fracasso como lançador de balões, mas porque os lhe ardiam por efeitos do fumo e dos vapores do petróleo!
Agora todos sabiam tudo e comentavam: “como era possível ser a mecha a arder do lado de fora do balão?! Afinal não havia modernice nenhuma, era mais fácil pregar quatro tipas do mesmo tamanho do que fazer um aro circular”
Todos estavam agora contra o ti Quebra Linhas: “ para que se mete no que não sabe” e um que devia ser da oposição atirou para o ar: “ ele é um atrevido, mas nenhum de nós, mesmo com mais anos de ver lançar o balão, se ofereceu e ele o fez!” Silêncio!
E o ti Fernandes, aproveitando este súbito silêncio, declarou: “ Nunca mais lanço nenhum balão” e meteu pés a caminho agora a descer ladeira abaixo, não assistindo ao fim da romaria.

                                                 III

Tinha muitas outras facetas este ilustre conterrâneo, ti Fernandes o Quebra Linhas, mas estas duas, da matança e do balão, são as que mais me encantam, das que recordo.
Não faltava num Carnaval uma iniciativa sua, sempre procurando que fosse uma crítica social e algumas tinham piada, como a do burro com um despertador na pata esquerda da frente, quando começaram a aparecer os relógios de pulso.
A minha ida para Lisboa, com anos a fio sem ir a Castelo Melhor, excepto os de cinquenta e quatro e cinco, devido à bronquite, fui perdendo o contacto, não sabendo o que foi feito dos filhos, o Gualdim, que fazia um bom trabalho como sapateiro, o Viterbo e a filha, cujo nome não recordo, não soube mais o seu destino.
Já com os meus dezoito anos, numa das férias que lá estive, no Verão, quando os estudantes voltavam , cruzei-me com o ti Fernandes, já bem velhote, de volta do seu copito, depois mais uma rodada e outra, que cada um ia pagando, os que o conheciam melhor puxavam-lhe pela língua das mágoas e as estórias ganhavam corpo por si próprio contadas, com piada a maior parte.
Os que com ele estavam todos os anos e sabiam o seu pendor, logo o picavam: “ Então e na cama como é, ti Fernandes?”
E ele, entre o ar triste e brincalhão, lá dizia que a mulher só o deixava lá ir se ele, antes, fosse apanhar um feixe de lenha!
É uma tristeza, queixava-se! E a lenha às vezes dura tempo demais! Risos, dele e nossos!
Era talvez o segundo conterrâneo de que mais gostava!
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O TI ANTONINHO”FERREIRO”

                                                 I

Era um dos filhos de um casal que morava numa casa toda pintada e maior do que a da média das outras, distante daquela onde nasci, não mais de trinta metros.
Tinha, que me recorde, mais sois irmãos, ambos ligados à profissão de ferradores, só o ti Antoninho tinha forja, quase encostada ao ribeiro e tendo de permeio apenas duas apenas duas casas entre esta oficina e a casa da minha família.
Quase todos os dias, à noite, a forja trabalhava, enquanto foi a única, ou para reparar utensílios de lavoura, ou para fazer material novo, tal como ferraduras que ficavam em armazém para quando precisavam de ser usadas ser só adaptá-las ao casco dos machos, cavalos poucos e às unhas das vacas. Havia poucos de cada espécie, mas havia.
Sempre gostei daquele trabalho nocturno da forja, com a oposição de alguns adultos que se sentiam mais à vontade com os juvenis já acamados; era um gôsto ver o carvão de “pedra “ a arder na boca da forja, o grande fole que todos os garotos gostavam de “tocar”, a bigorna maior fixada num grande tronco de árvore cortado em forma tronco cónica e a enorme pia de granito, meia de água, onde as peças, uma vez prontas, eram afogadas, com um som característico de um pedaço de ferro ou aço incandescente a ser mergulhado em fria água, como um gargarejo bucal mas mais forte e até assustador quando a peça era grande.
Quando era para fazer de novo ou substituir as pontas das relhas, eram precisos três homens experientes no manejo das marretas e no ritmo em que teriam de encontrar para, um de cada vez, ir batendo no sitio que o ti Antoninho ia indicando com o seu martelo na mão direita enquanto a esquerda segurava, na ponteira da grande turquês a peça, que ia movimentando para que à marretada fosse ganhando forma e os acabamentos eram feitos pelo ti Antoninho e com o seu martelo empunhado numa mão e a peça na outra. As marretas eram empenhadas com ambas as mãos e não era para todos aquele trabalho onde a força do braço era aliada ao ritmo do trabalho colectivo.
Não era só porque os adultos preferissem estar sós que se preocupavam com os juvenis. É que os jactos de chispas que pareciam setas incandescentes e batiam na cintura dos homens, protegidos por uma peça de cabedal grosso atado, bateriam nos olhos dos pequenos e a cegueira era quase uma certeza. A maior parte deles levavam as roupas mais velhas, já esburacada de sessões anteriores.
E como explicar a tua presença a tocar o fole, a ganhar músculo, diziam alguns, se aos outros era negada? Esta é a pergunta que a mim faço, agora não só para o fole, mas no minério, em que todos ou uma boa parte dos mineiros queriam que eu a eles me associasse e algumas vezes o fiz até que dávamos o filão por saturado. Não sei porquê e embora me intrigue não estou disposto a pensar mais nisso.

                                                 II

Além de ferreiro e ferrador o ti Antoninho, como vários outros, gostava do seu copito e bebido na taberna, com outros, em casa não sabia tão bem, dizia. Como não havia taberna perto de casa, lá tinha ele de se deslocar até ao alto da Rua Larga, onde havia três; o gosto foi-se aperfeiçoando e aos poucos tomando conta da vontade que num ferreiro devia ser férrea, mas não era e acabou por virar vicio e dependência, não sendo raros os dias em que a primeira viagem devota que fazia era a da “capelinha” do deus baco! A devoção e o litúrgico rigor eram tais que muitas das manhãs chegava antes de a porta abrir e poder beber a primeira oração; no Inverno era ainda noite cerrada, mas lá ia ele a cumprir a promessa que todos os dias fazia de deixar de beber, mas mal a fazia já a queria violar.
Durante muito tempo me espantou o facto de ele, ao dirigir-se à taberna, por certo usando o caminho mais curto, teria que passar em frente do portão de entrada para os logradouros e casa das refeições da casa do meu padrinho, onde andava à solta ou preso na ponta de uma corrente, um enorme e já idoso cão “Serra da Estrela”. O pessoal que frequentemente entrava e saía de casa pelo portão, o cão já se não manifestava e com esse descanso amigável, muitas vezes deixavam o portão aberto ou mal fechado e aí estava uma ratoeira para quem passava e que felizmente nunca teve consequências. O cão fazia mais barulho de que trabalho, acabando por dar sentido ao provérbio “cão que ladra não morde”.
A partir de certa altura o cão que ladrava furioso a toda a gente, deixou de ladrar ao ti Antoninho, o que muitos estranharam. Alguém lhe perguntou porque não era atacado pelo animal? A fórmula era de tal modo simples que parecia o ovo de Colombo: “bastou arregaçar as mangas as primeiras vezes e agora já nem do portão sai, ladra sempre, mas nem ao portão se chega!”
O perguntador, desconfiado e porque morava mesmo em frente ao portão, resolveu ir confirmar. Viu o portão mal fechado e o matulão à solta; desceu a rua Larga, tinha que ser senão tinha que passar em frente ao portão e não podia ou dar uma grande volta para apanhar o caminho do ti Antoninho. Desceu, como já disse, a Rua Larga, virou na esquina do senhor Marcolino e foi seguido até entrar na rua do Passadiço e com o receio do costume, apenas com a garantia do ti Antoninho, iniciou a subida que já era a da casa do meu padrinho de um lado e do outro e só no fim seria à direita a casa do senhor Aleixo e à esquerda o muro que era o do espaço das traseiras da casa grande, guardadas pelo cachorrão que, mal se apercebeu de que vinha lá gente apareceu logo a ladrar furioso! Aqui devia incluir o nome do autor do teste, mas como não recordo, fica mesmo assim; ergueu-se em toda a sua altura e mostrando bem os braços ao furioso animal, este estacou, ainda olhou durante uns segundos, virou-se, meteu o rabo entre as pernas e sem pressas dirigiu-se ao portão e entrou!
Assim ficou confirmada versão do madrugador ti Antoninho e a de que o gigante Serra da Estrela, não passava de um medricas que até uns fracotes braços sem mangas o acagaçava!
Por mim fiquei, teoricamente, com mais uma lição e que era quando os adultos, mais os das aldeias dos meus rios, quando se envolviam numa rixa, o gesto primeiro era tirar o casaco se vestido o tinham e de seguida era arregaçarem as mangas, mas para os lutadores não resultava ou não resultava sempre! A vida, com seu ar natural e sem avisar, dá-nos lições que, raramente, lhe reconhecemos o papel de mestra!
No final da vida, o ti Antoninho, corroído pela doença que o vinha minando há anos vários e fortemente, ajudada pelo álcool e seus nefastos efeitos, já acamado e com ataques de perda de equilíbrio, físico e mental, levantava-se do catre e tentava subir pelas paredes de casa, perseguindo os seus monstros que a perturbada mente ia produzindo e só os seus olhos viam.
Um dia, sonhando provavelmente com o céu, com uma tasca e uma forja, a seguir a uma crise violenta, sorriu, fechou os olhos, cansado e não mais regressou do sonho!
Não me recorda quem ficou a trabalhar com a forja, os filhos eram pequenos e só os irmãos ou algum dos seus ajudantes permanentes o poderia ter feito.
Tinha já aberto uma outra, por um familiar Currala, penso que de nome Alberto, que esteve na tropa ao mesmo tempo que o meu irmão Licínio, mas em quarteis diferentes, onde fez o curso de ferreiro e ferrador, aquilo que na linguagem militar se chama especialidade, ficando a oficina relativamente perto da do falecido ti Antoninho. Tenho vindo a usar o termo “perto de”, mas é uma forma de dizer, por que perto estávamos todos uns dos outros, porque a aldeia não era assim tão grande.
Este novo ferreiro teve um período de comportamento psíquico parecido com o do ti Antoninho, quase pela certa devido ao álcool que bebia com abundância, vendo animais terríficos que ele descrevia mas de forma que só ele entendia e que as pessoas mais entendidas com as coisas místicas diziam que ele estava possuído pelo diabo! Se assim fosse era, pela certa, o diabo de serviço aos ferreiros!
Dele se contavam coisas de espantar e de encontros como “mafarrico”, sempre inventadas nos delírios e de que nunca se lembrava.
O espirito do maligno, talvez farto de passar pela má fama de feitos inventados e receando que a sua honra de diabo sério e cumpridor fosse afectada por tão pífios atrevimentos, resolveu não mais chatear as gentes de Castelo Melhor e deve ter partido para outras paragens onde houvesse ferreiros, mas havia quem afirmasse solenemente que o Lucifer foi expulso pelo Anjo São Gabriel e que devido a esse feito foi promovido a Arcanjo!

Reis Caçote
Dig/l9/01/14


A TI’ANA DO “FERREIRO

                                                  I

Mãe de todos os ferreiros da aldeia, com excepção do formado pela “Universidade” militar na arte que a família sempre teve, de ferreiro e ferrador. Era uma mulher robusta, altiva, das de têmpera diferente da dada na forja, capaz de ter e criar ferreiros e suas têmperas do aço.
Este porte de matriarca tinha origem não só na origem genética, como hoje se sabe e divulga, mas por outras causas exteriores à questão da ciência biológica.
O seu percurso formativo penso que teve início durante a Segunda Guerra Mundial, onde Portugal era um País neutral, mas não tanto como a lei que institucionalizou a neutralidade! Um pouco como hoje sucede, mais tecnicistas as Leis, feitas por especialistas nas partilhas, onde o provérbio do “quem parte e reparte e no partir tem arte, fica sempre com a melhor parte” se aplica ou assenta como uma luva! A teoria não declarada, mas que está contida no seu mais intimo detalhe, é a de que as Leis não são para cumprir, mas para violar. E assim era a que decretou que Portugal não era visto nem achado naquela briga dura, de que não falarei, porque era estar a seguir o mau exemplo! Minha missão se prende com a ti’Ana.
Alguém, de que nunca ouvi falar e que para o efeito pretendido não faz a mínima falta, descobriu que nas suas terras do Seixo, existia um mineral que tinha algumas aplicações de grande utilidade e que hoje nem sequer é nelas aplicado, mas noutras o será.
O filão da rocha magmática, da família do quartzo vinha dos lados da Mêda, da margem esquerda do rio Côa , atravessava este nas imediações das gravuras rupestres de há trinta mil anos, nem mais nem menos um, mesmo que passados já mais de quinze anos sobre a data em que se mostraram, continuam a ter trinta mil anos.
Estes despormenores geológicos, geográficos e históricos levam-me quase sempre a esquecer, a esquecer não, a adiar ou desviar do tema em apreço. Não gosto, mas não consigo fugir à tentação; ainda um dia destes terá de vir o Anjo São Gabriel, e bom seria que não tardasse, a acudir-me e proteger-me destas tentações, mesmo que não sejam demoníacas, ele sempre me dará uma ajuda e eu lhe agradecerei.
O tal filão, aqui é daquelas coisas que me agradam pela quase perfeita designação, por me parecer uma derivação de “fila” indiana, outra coisa que à India devíamos ter já agradecido e pago os direitos de autor, assim como todo o mundo, pois filas não faltam e cada vez mais, mas isso é capaz de ser política e eu não quero o tacho de ninguém, mas que as há cada vez mais, lá isso há! Agora até para a sopa dos bancos da fome, o que é uma vergonha para a sociedade da abundância e do saber que tão incensada foi.
Dizia que o tal filão entra nas terras da margem direita do Côa por uma “estrada” que ainda abrange uma faixa de terras de Almendra e vem andando, passa pelas terras de muita gente, sobe até ao Alto de Santa Bárbara, desce até ao Douro, deve atravessar o rio por debaixo das águas, tal como fez no Côa, e perde-se em Trás-os-Montes ou continua, não sei até se não irá para Espanha, mas mesmo no tempo dos passaportes para estas filas nunca foi exigido. Um dos locais de passagem tem a designação de Canada do Inferno que, no seu inicio ou no fim, não vale a pena discutir, junto ao rio, é onde está o maior núcleo das ditas gravuras rupestres, todas agora em Foz Côa, quando deviam ser mais exactos e dizer no concelho de, pois Foz Côa fica na margem esquerda e a maioria das gravuras, reconhecidas pela UNESCO, fica nas terras nobres de Castelo Melhor, ou seja, na margem direita.
Mas era sobretudo nas terras do Seixo, propriedade da ti’Ana do Ferreiro que o filão e suas pequenas veias e artérias, se deixaram invadir por este mineral da família do Volfrâmio – o Scheelite - de que falámos e a ti’Ana enriqueceu, porque este mineral era usado como activador da combustão da pólvora, por fricção, mas embora não constasse, devia estar já a ser usado na indústria metalúrgica para obter ligas mais resistentes.
A formação da ti’Ana, de rija têmpera, não teve a ver com os Ferreiros ou com a pequena fundição da forja que para temperar, dando ao ferro a dureza do aço, eram os choques térmicos do ferro incandescente mergulhado na pia de água fria e nalguns casos era usado um corno de cabra que era esfregado na ponta ao rubro da relha, mas que não devia ser fácil provar que dava algum resultado, mas com o ter de lidar com os “garimpeiros”, à moda portuguesa, a quem ela cobrava uma percentagem sobre o minério extraído e que sempre acusou de a quererem roubar, não me custando a acreditar porque assisti várias vezes a esconderem uma parte do minério, era a fuga ao fisco de hoje.

                                                 II

As terras do Seixo de que a ti’Ana era proprietária, nada produziam, a terra arável era má, como quase todas o eram, mas a sua exposição ao sol era tão pouco favorável e a inclinação tão acentuada que ninguém as arrendava!
Assim, pareciam as terras esperar pelas guerras, como que descansando entre elas, para depois se transformar num campo de batalha, martirizado pela artilharia dos garimpeiros, em violentos combates de incertos resultados.
O que se passou, se é que algo se terá passado, nas terras da ti’Ana do Ferreiro, na I Guerra Mundial, nada sei. Nada tive a ver com essa guerra e, por isso, só chegou ao meu campo da memória o que fui ouvindo dos mais velhos: os gaseados, as feridas, de mortes não ouvi falar muito e do livro de história, com as confusões que se seguiram e a antecederam, pouco ficou registado e o que ficou deve ter sido atamancado.
Da segunda é já diferente! Quando nasci já andava no ar assim como que uma trovoada ao longe, não se viam os relâmpagos nem se ouviam os trovões, mas parecia algo a rastejar e aproximar.
E, seis meses depois, um fulano chamado Adolfo, como o meu vizinho da frente, lá num país distante, chateou-se com alguns de quem não gostava, os judeus, na minha aldeia também não deviam gostar deles e até diziam aos miúdos, quando se portavam mal, “não faças judiarias” ou deixa-te de “judiarias” e até nos chamavam judeus! Mas não havia qualquer maldade nestas pedradas verbais que nos atiravam os meus conterrâneos, posso garantir. Esta linguagem devia ter mais a ver com o que o Apóstolo Judas fez ao Cristo e não um problema judaico com a dimensão de Castelo Melhor! Isso é mais de agora, mas dos únicos que lá não gostavam mesmo e penso que continuam a não gostar, nunca percebi porquê, nem hoje percebo, era mesmo dos russos! Penso que era uma questão de cor do cabelo, pois assim que um aparecia com o cabelo mais claro, os garotos a brincar e os adultos não sei se seria também, mal o garoto fazia e até quando não fazia nada, os mais velhos diziam-lhe: ah, “russo de mau pêlo, má raça pior cabelo!”. Ora, isto também não podia ter a ver com o Adolfo, pois do que mais tarde soube ele gostava dos loiros, mesmo que ele usasse cabelo preto, contradições que vá lá a gente entender. Ficamos então assim: era dos russos que os adultos se serviam para injuriar os miúdos e estes uns ao outro só para provocar a reacção e darem umas boas corridas, esconderem-se atrás do que estava mais perto, sempre rindo, até que o de má raça e pior cabelo desatava a rir e tudo acabava em abraço e mudança de brincadeira.
O senhor Padre é que ao domingo, durante a missa, passava a vida a dizer que a Rússia tinha que ser convertida e que a Senhora de Fátima lá estava a cuidar do assunto, tal como o Anjo Gabriel, lá do alto do monte, cuidava de todos nós.
Não percebi muito bem esta parte final da Rússia?! Insistia um dos conterrâneos, quando ali passei uns dias com o meu irmão Licínio. A Rússia converteu-se e agora? Se calhar a Senhora de Fátima fica sem trabalho! E acrescentava: “mas olha, também já merece descansar uns tempos, levou tantos anos a converter! Teimosos, estes Russos!”
Da II Guerra Mundial dizia, essa sim, já mexeu bem com as terras da ti’Ana do Ferreiro! Como o negócio começou não deve haver registo, deve ter sido só de boca-a-boca e mais ou menos assim:
“Vós ides dar-me cabo da terra, enchê-la de buracos e como vós e eu não sabemos onde os vão abrir, não posso arrendá-la! Vamos fazer assim: do minério que tirais dais-me uma parte a mim pelos estragos e assim podeis esburacar à vontade”.
O pessoal, nesse aspecto e nos outros todos, foi sempre gente de uma só palavra, não era precisas declarações escritas, nem para o minério nem para as outras coisas da vida. Combinava-se, cumpria-se. A burocracia chegou muito mais tarde e não atacou em todas as frentes nem traseiras, ao mesmo tempo! Foi minando, devagarinho, assim como quem não quer a coisa, assentou arraiais de tal maneira que ainda continua, mais disfarçada nuns lados do que noutros, mas está aí para ficar!
Aquelas encostas do Seixo, de nascente e Sul, foram esburacadas, esventradas é um termo forte demais, durante o tempo que a guerra durou e, segundo consta, eu não tomei nota na memória porque andava entretido a aprender outras coisas, tais como: andar, falar, brincar pouco, depois a fazer as tais “judiarias” que não era nenhum santo…! E a ti’Ana, no fim do dia, lá esperava os pesquisadores para cobrar a “dizima”; uns lá pagavam, outros não porque vinham de mãos a abanar por nada terem pesquisado.
Uns acertavam e continuavam, outros falhavam e desistiam.
Alguns ganharam muito dinheiro e quase todos o gastaram, sem proveito e pouca glória, os apanhadores, antes chamados de garimpeiros como nos Brasis, lá do outro lado do oceano. Não sei se a designação de garimpeiros está bem ou mal aplicado, nem vou tentar saber, mas apanhadores é que não tem ponta por onde se pegue, porque, como está bem claro antes, não era chegar e apanhar! Dava mesmo muito trabalho este trabalho de apanhador!
Os que terão enriquecido, para além da ti’Ana, terão sido os negociantes, alguns de longe e outros de nem sequer sabiam. Vinham em determinado dia da semana, pagavam e levavam. E um ou dois da aldeia que funcionavam como grossistas, guardando os minérios de cada um, em separado, pois o preço variava em função da pureza do mineral e que era definido pelo peso de meio litro dele; o peso do considerado de grau de pureza bom devia pesar um quilo e meio, se assasse era de alta pureza, mas a maior parte não chegava à média da pureza, ou porque estava mal escolhido, ou porque tinha muitas incrustações de rocha.
Os que calejavam as mãos calejadas e esfolavam o corpo naqueles buracos perigosos, onde por vezes ficavam meio soterrados, mas mortes terão sido poucas. Tudo por uns gramas de minério, quando o achavam.
Fortunas mesmo lá da aldeia, excepto a ti’Ana, eram nenhumas! E podíamos dizer que o provérbio se aplicava: “o dinheiro mal ganhado, água o deu, água o levou!” Mas aqui não tinha aplicação literal; custava mesmo a ganhar na maioria dos casos e eu que o diga, não nesta II Guerra, mas na outra, não memorial, a da Coreia, quando acabei a minha primeira fase de formação académica!
Nessa guerra já eu fui, com muitos outros, um “combatente” de retaguarda. Nunca percebi de que lado da trincheira eu estava, aliás nunca percebi se as guerras tinham fronteiras distintas, só mais tarde entendi, as trincheiras dessa guerra e das que sem descanso se vão iniciando um pouco por todo o lado do mundo!
Posso confessar agora, a ti’Ana já morreu há dezenas de anos e eu há já mais de meio século me deixei de minérios, que nunca lhe paguei a taxa, mas não fiquei a dever nada, pois os garotos como eu que andavam no rebusco e apenas esgaravatavam a dos buracos que outros faziam, estavam isentos de tal taxa.
Se a tivesse pago, também não teria sido com ela que a fortuna que a ti’Ana apregoava, quando exaltada com alguém ou com algo que lhe não agradava, gritando, para que todos os presentes ouvissem, que ainda tinha notas de mil que davam para forrar a casa toda e era bem grande como se disse no início!
Um dia houve em que a zanga era tal, praguejando para todos escutassem: “Oxalá venha uma trovoada tão grande que leve a terra toda para a Côa (no falar lá da aldeia o rio era fêmea!)
E logo um coro, sem treino prévio, mas afinado, respondeu, a rir falando: “Deus a oiça oh ti’Ana, isso queríamos nós, assim ficavam os filões todos à mostra e não precisávamos de andar, dias e dias, de ferro em punho e enxada à mão, a picar o chão e nada encontrar!”
“Maldita gente!” E virou-lhes as costas.
A garimpa da scheelite terminou com a concessão da exploração a uma empresa que, essa sim, quase virava do avesso o monte do Seixo! E só o não fez por que a guerra na Coreia durou menos do que os fornecedores previam e porque foram encontradas novas soluções para substituir aquele mineral. Durou o suficiente para ter causado ou apressado o passamento da
Ti’Ana do Ferreiro!

Reis Caçote
Dig/21/01/14


O TI’ARI

                                                 I

O ti Ari, que morava lá para as Pintas, assim chamada uma área situada entre a traseira das casas juntas ao ribeiro, constituída por um Largo que ia até a casa do senhor João Grilo e duas ruas que convergiam, sem se juntarem, num pequeno Largo triangular que na época terminava junto da última ponte sobre o ribeiro mais a montante.
Sempre senti alguma curiosidade do porquê do nome, mesmo que a Rua onde eu nasci fosse a dos Pintos! Sempre aceitei o nome da minha rua, tal como está na certidão de nascimento, repousando na convicção de que ali tivesse morado, em tempos antigos, algum Pinto que tivesse a importância social para ter direito a uma rua com o seu nome, mas Pintas…bem, deixemos este segredo como está, se não foi esclarecido na altura que a curiosidade era maior muito menos o será hoje que os mais velhos já se cansaram da vida e os mais novos na idade perderam completamente a curiosidade histórica ou outra, são poucos e vivem a vida por certo sem este tipo de curiosidades! Estamos num século novo onde as altas e baixas tecnologias são o teorema e os corolários duma geometria quase só rectangular.
O ti Ari estivera emigrado no Brasil e quando eu nasci já ele teria deixado as Terras de Vera Cruz e de Pedro Álvares Cabral e estava a residir em Castelo Melhor há não sei quantos anos, com a esposa e dois filhos, um casal, já crescidos ambos.
A minha convicção de que ele teria deixado o Brasil há anos vário era a ausência de sotaque, mas este pormenor não serve de base para grandes e definitivas convicções, podia muito bem ele ser um caso raro daqueles que não atinam com a outra língua e o sotaque não se assimila do nada! A família também não falava um português-brasileiro e isso me levou a pensar que ele e a família não encontraram a ”árvore das patacas” que outros terão achado rapidamente e regressou antes mesmo de se vincular oralmente à língua que nunca foi a de Camões.
Tinha a fama de amestrador de cães de guarda, arte que nunca presenciei, talvez por eu gostar mais dos de caça, de que cheguei a ter um cachorro, por mim escolhido duma ninhada (outro vocábulo que acho mal usado, se as aves nascem num ninho e para eles a ninhada estará bem aplicada, agora para os mamíferos…!...vamos andando, senão ainda me esqueço que o protagonista deste Ti é o ti Ari) que a cadela do senhor Antoninho, este safou-se, tinha parido e que pouco tempo cuidei dele; teve um acidente com água a escaldar e teve de ser abatido para não sofrer mais tempo! Decidi na altura que não voltaria a ter cães e só terei violado a promessa que a mim fiz e que são as que mais respeito, mal cheguei a Luanda, ainda no edifício inacabado dos futuros laboratórios da Petrofina e que nunca chegaram a ser. Apareceu, com ar desorientado, junto aos edifícios um animal adulto, mas de pequeno porte, que mal o afaguei não mais me largou. Duma correia de mochila fiz uma coleira para o primeiro amigo em Luanda e como não sabia o nome e ele devia ter esquecido e documentos não tinha consigo, nem Bilhete de Identidade, Carta de Condução ou Carteira Profissional, escrevi o nome de Comandante, que ela não rejeitou. Mas quem o rejeitou mesmo foi o major, comandante dos artilheiros e do Pelotão onde fomos integrados. Chamou-me e ordenou que o animal voltasse a ficar anónimo, não queria aquele nome na coleira e…ainda procurei explicar que eu também era comandante da minha secção de abastecimento de munições, mas ele não alinhou na conversa e lá tirei a coleira ao novo comandante. Não sei se o animal levou a mal ou se pensou que aquele gesto era de rejeição, o que não era, mas dum momento para o outro, tal como apareceu, desapareceu. E foi pena, pois no dia seguinte de manhã apareceram os verdadeiros donos a oferecer quinhentos angulares para lhe devolverem o seu animal. Era um animal de Marca, mas eu não sabia e se soubesse não iria prender o cão à espera das alvíssaras! Foi o segundo me muitos incidentes tidos com a hierarquia, o primeiro foi o do gelado, no desfile de apresentação e chegada, com o gelado que o capitão, com inveja, me mandou deitar fora!

                                                 II

Desculpe, ti Ari, mas não me esqueci!
Além de amestrador de cães de guarda era também um versejador, dos que mais tarde soube a designação, repentista! E com esta característica cativava a garotada que andava na escola, onde já se foram habituando aos versos e os da pré-escola em que o espaço para os ATL era a aldeia quase toda.
Era sempre à noite, nas noites de Verão, que ele se sentava na soleira da porta de casa, a ver, como ele dizia, o bailado dos morcegos a fazer pela vida, desbastando o bando de mosquitos que, na falta de iluminação ou fonte de luz que os atraísse, aproveitavam a luz que da lua emanava, do Sol reflexo, e usavam o palco mais amplo em busca não sei de quê! Os morcegos era fácil saber, eram os mosquitos que eles procuravam e nas suas manobras acrobáticas iam entretendo o ti Ari e outros, que para a rua vinham por não se poder estar em casa com o calor de fornalha do dia e que só amainava quando outro dia de estorricar se apresentava.
Não eram muitos os garotos, mas sempre se juntavam três ou quatro e aí começava poesia à desgarrada, como vim depois a conhecer em Lisboa, nas tascas do Bairro Alto e Mouraria. O ti Ari dizia uma quadra, sempre rimada e aguardava que um dos garotos, todos no chão sentados, fizesse sinal para dizer a sua, em resposta à do ti Ari! Como o vocabulário era pobre, na maioria das vezes saía mal o que dava para uma gargalhada geral. Por vezes saía bem e sem graça nenhuma. Quanto maior fosse o disparate maior era o aplauso do riso!
E assim se passavam horas até que os garotos, alguns a cair de sono, debandavam para suas casas, sempre ali perto.

                                                 III

Como ficou descrito no bloco dedicado aos Senhores, o senhor Aleixo lá está, como reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela. Tínhamos, então, um emigrante do Brasil e um reformado de Angola, um vindo do continente americano e outro do africano, qualquer deles do Sul.
Cada um teria as suas vivências e cada um teria as que não viveu e teria gostado de viver, muitas delas eram pura imaginação.
Ou porque o tema poesia estava já a não resultar e ele gostava de companhia para passar o tempo entre a ceia e a deita, não sei se combinado ou não com o senhor Aleixo, o certo é que resultava, transformaram os garotos em mensageiros das suas fantasiosas recordações intercontinentais, funcionando de uma forma simples e lúdica para todos:
O ti Ari dizia que em Angola se tinha cruzado com uma ave de tal modo grande e pesada, que para levantar voo tinha que correr quase um quilómetro em terreno plano ou a descer, que de certeza no Brasil não havia! Um dos garotos, mais atento, ainda perguntou:
- “Como é que o ti Ari sabe que não há ainda maiores?”
Acho que não há aves tão grandes no Brasil, mas o melhor será mesmo ír perguntar-lhe, propunha o africano?
- Vamos lá perguntar ao senhor Aleixo, ao menos ficamos a saber!
E a equipa, nunca maior de quatro, partia a correr, cada um tentando ser o primeiro a chegar ao cadeirão que o senhor brasileiro usava para o mesmo fim, tentar que uma brisa chegasse e amenizasse aquela fornalha que parecia querar estufar vivos os habitantes daquela nossa aldeia.
- Então que há, meninos? Fingindo nada saber, pergunta o senhor Aleixo.
Ouvia a estória como se nada soubesse e logo que acabava, nunca era longa, dizia o brasileiro senhor:
- Digam lá ao ti Ari que no Brasil, vi eu com estes olhos que um dia a terra há-de comer – os miúdos achavam aquilo esquisito, mas não iam além da troca de olhares, era o senhor Aleixo que dizia, tinha que estar certo- vi uma borboleta tão grande, tão grande, que quando batia as asas a voar, derrubava árvores em redor e chegou mesmo a tombar casas, mas isso eu não vi. As asas eram quase tão grandes como daqui a casa do ti Ari!
E lá partia a patrulha a correr até casa d africano Ari.
Resposta transmitida, ficavam a aguardar se o ti Ari tinha alguma coisa ainda mais demolidora…! Havia já claques, pequenas, favoráveis a Angola e ao Brasil, mas não eram fixas nem fanáticas, duravam o tempo do percurso entre os dois Continentes.
- Digam lá ao senhor Aleixo, que tenho dúvidas de que houvesse tal borboleta, e digam-lhe também que no Congo, mesmo pegado a Angola, numa caçada, nos apareceu um elefante tão grande, tão grande, muito maior que a igreja, com torre e tudo – eia! Exclamou um dos miúdos – que deu um peido tão grande e mal cheiroso que se ouviu em Luanda e o cheirete disseram que chegou ao Brasil e se notou mais no domingo de Carnaval, mas ninguém suspeitou que fosse daquele elefante, pois não sabiam que havia tal animal!
O grupo de quatro, entre eles eu, na altura protagonista e agora narrador, desatou a correr e iam comentando baixinho, um deles a dizer para o mais próximo – “ eu não quero nunca ir prá África, cagava-me todo com medo!
Mal o senhor Aleixo nos viu a dobrar a esquina, perguntou, fingindo espanto:
Ainda voltaram? Não me digam que o ti Ari…?
E contámos, sem nada aumentarmos, a aventura do elefante e do mau cheiro que chegou ao Brasil!
- Mas não vos contou que o elefante dele, mal o cheirete chegou ao Brasil, uma jibóia – sabem o que é uma jibóia? – “é uma cobra grande, disse o Antoninho”, pois é, mas esta que eu vi, devia estar escondida na floresta do Amazonas, já ouviram falar? Isso mesmo, uma floresta virgem, devia ser a primeira vez que deixou a floresta, vi-a arrastar-se em direcção ao mar e por aí continuou até que passou toda ara dentro de água, mas levou um dia e uma noite a passar, foi a que foi ao Congo dele e lhe engoliu inteiro o elefante! Gargalhadas dos mensageiros e cada um para sua casa, a correr e a rir!
Eram muitas mais, a maioria delas não recordo e estes exemplares é só para, a esta distância temporal, se pode tirar a lição de que até com exageradas mentiras se aprende.

                                                 III

O ti Ari, mesmo que vivo fosse, não iria ficar melindrado por meter no seu espaço de mestre, uma pessoa que nada tem a ver com ele, apenas são da mesma aldeia e ambos deram a sua contribuição para a cultura geram dos seus conterrâneos. O ti Ari e o senhor Aleixo tomaram a seu cargo a camada juvenil e a outra, de que vou falar de seguida, foi dos adultos, melhor dizendo, das adultas, por serem só mulheres que acompanhavam a aula.
A tia Filomena Caçote, irmã mais nova de minha mãe, terceira dos quatro, três mulheres e um homem, é a pessoa que a seu cargo tomou a classe etária mais idosa para satisfazer seu gosto pela leitura.
Se as duas irmãs mais velhas, a minha mãe e a tia Meliana, não sabiam ler nem escrever, a tia Filomena e o ti Zé Caçote já foram à escola, pois ambos liam e escreviam.
Como já disse antes a minha tia Filomena, entre o normal saber da maioria, ela tinha uma a virtude de gostar de ler. E lia. Nunca soube e agora é tarde para saber, onde ela ia buscar os livros que ia lendo a grupinhos de iletrados, ao serão, nomeadamente Camilo e Júlio Dinis, são destes autores que me lembro melhor, com o Amor de Perdição e as Pupilas do senhor Reitor e Fidalgos da Casa Mourisca.
Quando a necessidade de rigor ultrapassar este quase sagrado e saboroso segredo, eu tentarei saber de onde vinham os livros. Prometo.
Até lá, tia Filomena, vamos ficar com esta grande admiração que sempre tive por si, em primeiro lugar pelo iniciático prazer da leitura que deve ter sido o catalisador do que eu fui anos depois seu seguidor e em segundo por ter andado anos de mal com a sua vizinha mais próxima, de quem era amiga, tudo por minha causa, quando na disputa de um espaço de criança para a construção duma casinha, eu terei bulhado com o Manfredo e o irmão mais novo, o Albertino e que a mãe deles foi a correr separar-nos, pegando-me num dos braços e atirando comigo pelo ar, como quem lança lixo para a rua. Discutiram ambas e assim passaram de amigas a inimigas.
E admiro ainda o avanço das suas ideias se comparadas com as dos outros do seu tempo, ao promover a ida da Julieta para a Guarda a especializar-se como auxiliar escolar e vir de lá com a trança cortada, ou sem trança, provocando a ira do ti Zé Relvas, pai da Julieta e meu tio por afinidade.

Reis Caçote
Dig/23/01/14

O TI ZÉ DO “ORGAL”

                                                           I
                                                                                             
Seu nome era José Monteiro e Orgal seria forma de tratamento, penso que por ter nascido naquele lugar, único pertencente à freguesia de Castelo Melhor e que se situa a cerca de quatro quilómetros e onde passava o caminho que ia dar à foz do Côa, hoje transformado em estrada que vai dar à ponte sobre o rio construída ainda no século XX

Não são muito claros os dados, nem para o que pretendo fixar tem a menor importância, não estou a fazer nem a escrever história, mas sim tentar que se não perca de todo a passagem pela vida de pessoas que, por alguma forma marcaram e contribuíram para o que eu sou, mal ou bem. O que se sabe é que um parente próximo de meu pai, dum outro ramo da família dos Monteiros, se terá fixado no Orgal e de lá terá vindo o ti Zé, que veio a casar com uma filha da família dos Guerras, a ti’Ana Guerra.
Nunca perguntei quem primeiro terá chegado aquele cantinho onde eu nasci, se os meus pais os se o ti Zé do Orgal e esposa, mas se atentarmos que a cumeeira da sua casa está apoiada na parede da de meus pais é possível deduzir qual terá sido.
Ao contrário da nossa, a casa deles tinha só um piso e do lado de baixo havia uma porta que dava, através de uns quantos degraus de escada, para o largo da forja do ti Antoninho Ferreiro.
Conheci os dois filhos do casal, um homem e uma mulher, já entrados na idade, o homem já com um filho da minha idade, o Sérgio, que foi para Lisboa, cerca de um ou dois anos depois de mim e tendo como intermediário o meu irmão Licínio, a pedido da família dele.
O ti Zé do Orgal era um homem maciço, a tender para o gordo e pouco mais fazia do que a ida à horta e esperar pela colheita de umas terras que teria e que não sei se eram muitas se poucas, foi assunto a que nunca dei nenhum valor, talvez porque só tínhamos uma courela e outra maior, juntamente com meus tios paternos, resultante da herança não partilhada, mas não deixando de ser estranho, sendo ele o vizinho mais próximo e ainda parente! A verdade é que dele me terá ficado a recordação da sua faceta menos importante, mas para mim, de certeza, a mais hilariante!

                                                 II

As refeições de quem trabalhava no campo eram sobretudo duas: o almoço, ao amanhecer, suficientemente substancial, em valor energético, para manter alimentado e com energia, um organismo que iria ser sujeito a um desgaste físico violento, quer fosse a cavar, a roçar, a lavrar, a ceifar, a varejar ou outro trabalho, até cerca do meio-dia, hora a que, sobretudo no Verão, era comida a merenda, composta de uma ementa muito ligeira, à base pão com azeitonas, ou figos secos e em dias especiais, umas pataniscas de bacalhau ou um pedaço de chouriça ou presunto, aqueles que tinham criado porco para abater.
Seguia-se normalmente um período de descanso, mais dilatado no Verão, pois não é pera doce aguentar a ferocidade do Sol que pelas soalheiras se incendeia!
A refeição da noite, lá designada por ceia, era novamente mais equilibrada, com o caldo de couve ou outro e algo mais que houvesse, carne de porco da salgadeira, um ou outro enchido, sardinha salgada só havia uma vez por semana e algumas nem aparecia a vendedora, vinda de Foz Côa. Carne fresca era uma raridade! Quem tinha dinheiro para a comprar, porque carne e sardinha não era por avença, era paga no acto, fazia sua encomenda e quando o matador via que a vendia toda lá matava cabrito ou borrego e vitela só mandando vir de Foz Côa ou da Figueira, de Castelo Rodrigo, mas para todos Figueira bastava para saberem de que se tratava.
A ementa variava, naturalmente, de casa para casa, o que será o mesmo que dizer, de família para família: mais rica e variada, as mais abastadas, mais simples a das famílias mais pobres.
O ti Zé do Orgal devia fazer ceias opíparas ou então a ti’Ana Guerra, sua cozinheira, não variava muito a ementa e era frequente, logo após a refeição, ainda na cozinha, ouvir-se uma sessão de imprecações; o que se ouvia primeiro, vindas da ti’Ana “já estás a começa?!Ralhava ela “e logo de seguida ele ria à gargalhada! A ti’Ana protestava, agora contra a gargalhada também! Quando mais alto ela gritava, mais sonora era a gargalhada dele! Ela excomungava-o e ele ria quase convulsivamente! Mudava o insulto e com a mudança parecia mudar também o som da gargalhada e assim, sucessivamente: ele peidava-se e ria, ela insultava-o e ele ria! E voltava a peidar-se!
“Não tens vergonha?! Dizia ela” e a resposta era nova gargalhada dele, agora já noutro cenário, a saírem de casa! O riso comprimia-lhe o volumoso estômago e o desabafo do intestino encontrava a saída natural, o ânus. No verão a maior parte das cenas eram fora de casa, ele sentado num banco corrido, encostado à parede do espaço, também deles, onde guardavam os seus materiais, nomeadamente a lenha e os cereais e artefactos da pequena lavoura que ela fazia.
A vizinhança, anos e anos a ouvir a mesma “sinfonia” não levava a mal e muitas vezes até animava o espectáculo com os seus comentários que para o ti’Zé do Orgal eram como aplausos! Mal reparavam que aquele ventre saliente se inclinava para o lado e uma das nádegas (lá eram nalgas) ficava aliviada do banco, já sabiam que era mais uma “trovoada” a chegar e a maldições da ti’Ana! “Oh, maldito homem, não tem respeito por ninguém, sejam velhos ou novos, é uma pouca-vergonha” Ele ria com esta linguagem da mulher e o esforço de rir, sentado, aumentava as manifestações intestinais.
Um ou outro vizinho mais divertido, sobretudo nas noites de calor intenso, em que todos saiam de casa na esperança vã de uma brisa que não chegava, ajudava à brincadeira, com a sugestão: “os mordomos das festas do Anjo e da Senhora do Rosário bem podiam poupar na despesa dos foguetes e dispensar o fogueteiro, pois o ti Zé resolvia o problema e de borla!” Então as gargalhadas eram gerais e o ti Zé, duplamente divertido, levantava a nalga e libertava um isolado, bem sonoro e redondinho e ela dizia, rindo sempre “lá foi mais um morteiro”! Gargalhada geral daquele recanto, agora sem viv’alma e que nessa época moravam, o ti Zé e a ti’Ana, meus pais, eu e o Ernesto, minha irmã e meus 2 sobrinhos, a família dos Morras que eram quatro, a família Chanisca e três filhos e ainda uma família de quatro também, mas que não recordo o apelido a seguir, do lado do ribeiro, mas com entrada pelo pequeno largo, a ti’Ana do Ferreiro, a dona das terras dos minérios e o marido e pegado a eles a família de um dos filhos, donos de uma das lojas de mercearia e os habituais bens de retrosaria, petróleo, vinhos não vendia e que eram mais quatro.
E o ti Zé de Orgal lá continuava na sua festa e a ti Ana Guerra, fazendo uma guerra de impropérios contra o marido: “ oh, desgraçado, era já mais um lamento da ti’Ana, cansada” e a resposta era mais um foguete de várias bombas! Foguetes do ti Zé, insultos da ti’Ana, horas a fio, noites a seguir a outras, até que, já cansado e aliviado, despedia-se “ até amanhã, fiquem com Deus”, mas não sem antes fazer estoirar mais um ou dois no trajecto até casa e dizendo, rindo com vontade, “estes são para a sossega!”
Por vezes a ti’Ana, cansada de tanto barafustar, ia ditar-se antes do marido, mas a festa continuava e ele comentava
“ Sem ela a ralhar até os peidos não saem tão bem!”

Reis Caçote
Dig/25/01/14


              NOTA EXPLICATIVA DE APRESENTAÇÃO DO PEQUENO GRUPO DE                                PESSOAS, NÃO RESIDENTES NA ALDEIA E QUE PERMANECIAM O                      TEMPO QUE QUERIAM E QUE ERA SEMPRE CURTO E QUE                                                        DESIGNEI POR “FORASTEIROS”
                                                          
Foi ponto assente antes de me decidir a falar de alguns momentos, lugares, pessoas e ambientes que contribuíram, cada um de sua forma, para aquilo que hoje sou, com defeitos e qualidades como todos e um ou outro pormenor que será meu apenas.
Das pessoas que mais me marcaram durante a infância, achei que devia incluir o traço que o caricaturista apanha de cada rosto e sem criar o que não existia, uma distinção entre as pessoas, mas tão só a forma distinta que era adoptada voluntariamente por cada um, criando duas classes que outras diferenças não seriam notáveis se não fosse a posse de mais ou menos terras de cultivo. Bem ou mal está feito, um conjunto de Senhores e Senhoras e outro dos Tis e Ti’as.
Mas faltaria um outro pequeno grupo de pessoas não residentes, que fariam uma vida errante, sem residência conhecida e que tal como apareciam do mesmo modo sumiam. Por terem esta característica nómada estive indeciso em os designar por cometas ou forasteiros, não me agradando qualquer deles, mas ficando pelos “Forasteiros” que em nada tinham a ver com os do Oeste americano e que marcaram a adolescência de milhões de jovens como eu fui. Vamos aos tiros:

PRIMEIRO FORASTEIRO

Foram vários, uns quase residentes e outros tão fugidios como estrelas cadentes.
O quase residente que melhor recordo deram-lhe, não sei quem nem onde, o nome de Pan Pan.
Penso que aquela designação deve ter sido adoptada, na falta de nome, por ser a única vocalização que o acompanhava como um ritmo de fundo musical e se assemelhava com um pan pan.
Sofria de alguma perturbação mental, não violenta, apenas reagindo mal quando assediado pelos garotos que o seguiam e entoavam uma cantilena onde entrava o pan pan e que era: “o ti pan pan come cebola albarrã!”
Era aquele bolbo, muito frequente em algumas terras e que fazia parte da flora endémica da região, que ele trazia dentro do saco velho e sujo e que atirava para casa das pessoas quando lhe davam de comer ou beber, no seu perturbado cérebro devia servir de recompensa! Recordo que dinheiro não aceitava!
A pessoa que ele visitava, mal chegava, como no cumprimento de uma promessa, era a senhora Rosinha, dona da mercearia a trinta metros de minha casa e que seria a mais abastecida da aldeia.
Por regra ela recebia-o com a delicadeza que nela era natural e por vezes mais se parecia com missão; servido, ele retribuía com um ou dois bolbos da referida planta.
Vestia andrajosamente e nunca soube qual a sua naturalidade, nem a sua idade, aparentando ter mais de cinquenta anos.
Ainda por terá ficado quando parti para Lisboa, não sabendo mais noticias dele ou de outros.


SEGUNDO FORASTEIRO

A certa altura apareceu um homem, ainda novo, também sem se saber de onde vinha, que apenas pedia água e a bebia como de a não bebesse há dias. Durante a sua curta passagem pela aldeia, nunca alguém o viu comer, mas beber foram litros vários que foram testemunhados.
Eram muitas as estórias que as pessoas da aldeia, na falta de outro entretenimento, inventavam: vivia torturado por não ser correspondido pela mulher que ele amava; ou uma versão mais “pecadora” que teria sido traído pela sua amada!
Como ele não ouvia estas e outras desventuras que a criatividade alimentava, nunca as afirmou ou negou. E duvido que o fizesse, caso ouvisse alguma das versões.
A sua passagem por Castelo Melhor foi um pouco como um viajante no deserto, foi o seu oásis para se dessedentar e comer ele teria outras fontes.
Este forasteiro não deve ter encontrado motivo de interesse e, tal como chegou, deve ter partido, mas ninguém viu!

Reis Caçote
Dig/27/01/14


TERCEIRO FORASTEIRO

Outra estrela de pouca duração foi a de um miúdo, cerca de doze anos, franzino, vindo de não se sabe de onde, e que cantava, para o meu ouvido, tão bem como o miúdo espanhol, o Joselito, que na altura estava em voga e que nas feiras aparecia sempre algum conjunto, normalmente um a tocar e outro a cantar, que o imitava, bem pior que o miúdo que pela aldeia passou.
Não devia ser de muito longe, apareceu mais que uma vez, escoltado de imediato pelos pequenitos da aldeia, entre eles eu, mas que de cantor nada aprendia; deliciou, as vezes que apareceu, miúdos e graúdos numa zona do mundo onde pouco se cantava, a não ser quando ranchos de mulheres trabalhavam, mais na apanha da amêndoa e da azeitona e algumas vezes no lavadouro quando os ribeiros levavam ainda água limpa para lavar e enxaguar.
O miúdo desapareceu de vez, ou regressando a casa ou mudando de rota, espero que para melhor que o Nordeste beirão!

Reis Caçote
Dig/27/01/14


QUARTO FORASTEIRO

Este era tão misterioso como um fantasma, mas lhe chamavam “Catalão”.
Penso que nunca alguém o viu, mas eram várias assuas fisionomias e muitas as aventuras.
Alto, moreno, vestido de preto, de botas de cano brilhantes, chapéu de aba larga, aí com uns incertos trinta anos; ora aterrorizava os injustos, ora protegia os injustiçados por onde passava, mas por todos sendo evitado.
Quando se pretendia saber quem o tinha visto era sempre alguém que outra pessoa conhecia e de quem tinha ouvido as aventuras, tal como eu faço agora em relação à memória.
O Catalão era a sombra e o Sol das mentes mais ou menos criativas que não vão além da rotina do dia de trabalho.
Talvez por isso ele era sempre avistado e nunca visto com aquela aura de mistério, mas que as mais atrevidas mentes o recriavam com ar sombrio, a aba larga do chapéu preto, olhos pretos e frios, lá no alto do seu cavalo, preto também, de pelo luzidio e olhar inquieto, a contrastar com o do cavaleiro, sempre calmo, frio e neutro.
Vi-o sempre, durante as descrições, a atravessar o horizonte distante, recortado num poente de fogo, uma imagem tão nítida como era a voz do narrador!
Saí daquelas terras há anos vários, muitos, mas continuo a ver, como antes via, nítida e perturbante, a esbelta figura da composição plástica equestre, formada pelo solitário Catalão e seu negro cavalo em pose elegante a movimentar-se entre o trote e o galope!
Hei-de voltar a visiona-los! Um dia, em breve, do futuro!

Reis Caçote
Dig/27/01/14


















































 



















































         












Eu terei contribuído também com a opinião de que fosse logo que tivesse vaga, por ser perigoso ficar sozinha todas as noites, uma vez que os vizinhos mais próximos, a família “Currala”, todos de idade avançada também, ficam a cerca de cinquenta metros e dificilmente ouviriam um seu pedido de auxílio.
Em Fevereiro deste ano de dois mil e oito, lá se mudou, de corpo só, de alma não, para Foz Côa.
Cada vez que a contactava por telefone ia dizendo que estava bem, que o Ernesto e família a visitavam uma ou duas vezes por mês, sempre que iam a Castelo Melhor e que o Licínio já a tina visitado, incluído numa excursão sénior que o deixou em Foz Côa e o autocarro seguiu com os restantes excursionistas e depois, no regresso, foi busca-lo. O Licínio já não conduz.
Mas algo ficava sempre no ar e que me levava a pensar que, ao contrário do que afirmava, estava a ser difícil a adaptação, o que me agradava e preocupava; agradava-me, por revelar da sua lucidez e o sequestro do Lar não se coadunava mesmo nada com o seu sentido de independência e porque, como diz o ditado “galinha de campo não quer capoeira”; e preocupação porque se ela rompesse com a situação não havia regresso, voltando tudo ao princípio.
Havia que confirmar. Sem demora.
O Mateus, meu único neto, de quase dezassete anos, mostrava alguma vontade em voltar a Castelo Melhor. Não é temperamentalmente efusivo e as suas curiosidades, fora de duas ou três áreas de interesse, são pouco mobilizadoras.
Aproveitei para propor uma ida à aldeia, juntando o útil ao útil, já que ao agradável seria descabido. O calor esperado não seduzia e os esperados desabafos da “sequestrada” Maria Juliana não ajudavam ao entusiasmo.
Num dos primeiros dias de Julho, coincidindo com a minha folga, fizemo-nos à estrada e percorridas as três centenas de quilómetros lá fomos parar a Foz Côa, já pronta para o “duche” com as cigarras a “cantar” nas sombras dos troncos das árvores.
Perto de Coimbra ainda apanhámos chuvisco, mas quanto mais avançávamos para o interior mais seco e quente era o ar.
A Maria Juliana não esperava visitas, ficando espantada com o nosso aparecimento e logo nos guiou para lugar que seria mais sossegado. O esperado desabafo logo começou, escolhendo a Lena como interlocutora e depressa fez escapulir duas idosas “coscuvilheiras” duma forma bem branda que me espantou. A curiosidade é um bem que não morre e bem mais apurada fica com o isolamento!
Durante o almoço, num dos restaurantes da cidade, continuou o desabafo e pareceu-me bem mais tranquila.
Como parte dos assuntos versados eram por min conhecidos de outras conversas, só atentava mais quando algo de novo ou já esquecido me soava.
Não quis ir connosco a Castelo Melhor, alegando que não dava tempo nem tinha vontade de visitar todos os mais próximos e os que não visitasse ainda iam ficar “enchicharados” , por isso é melhor não ir.
Fomos os quatro e prometemos que no regresso voltaríamos ao Lar para nos despedirmos.

                                                 V

A Lena foi aproveitando, como quis, para fotografar o que ia achando interessante, última actividade que a galvaniza desde há uns dois anos.
Espreitámos o edifício onde funciona o Núcleo Paleolítico das gravuras, antigo armazém do senhor José Madeira e por alcunha “Zé Laco”, onde meia dúzia de pessoas, portugueses e estrangeiros, aguardavam o transporte para chegarem ao Campus, com visita guiada.
Uns com ar descontraído, outros com ar cansado que eu atribuí ao calor.
Mais uma vez adiei a ida aos Prados, só ou acompanhado, mas a promessa feita é válida, aguardando melhor dia. Mais fresco.
Já no momento do regresso a Foz Côa, em conversa com os tais moradores que restam na Rua da Junta, o ti Paredes e a Maria Amélia, fiquei a saber que tinham comprado a casa do senhor Abel, pegada à deles, uma das três ou quatro mais bonitas da aldeia, como eram a da minha tia-avó Amélia Caçote, irmã do meu ídolo avô Joaquim dos Reis Caçote, de quem abusivamente vou usando os apelidos, Reis Caçote, para subscrever as minhas aventuras, quer no campo da escrita, quer no das artes plásticas, mais a pintura; a da professora D.Maria da Graça Pires Rodrigues, junto à igreja e parece que nenhuma mais, a não ser a do meu padrinho, mas era outro o estilo, mais apalaçado.
Disseram ainda que não tinham comprado o lote intermédio da família da Maria Anastácia, por divergências que existem em relação à mesma.
Mas porquê? Perguntei, curiosíssimo.
- Porque devido aquele problema dela e ao falecimento da irmã, tem sido difícil chegar a acordo e, agora, tal como as coisas estão, fomos perdendo o interesse!
Mas a Maria Anastácia!...
- Ainda é viva, está no Lar das Chãs, onde esteve com a irmã, entretanto falecida. E está de tal modo diferente e melhor que ninguém que a conheceu antes acreditaria se a visse!
Esta foi a notícia mais interessante e inesperada ou interessante por inesperada que acabava de ouvir! Havendo a todo o momento, nesta era da comunicação instantânea, milhares de noticias curiosas, por um ou outro motivo inesperadas, desde as mais entusiásticas às mais desesperantes, estas bem mais frequentes que aquelas, a da Maria Anastácia é de “primeira página”. Viva e irreconhecível no sentido de melhoria.
As noticias são registos quase só de eventos passados, alguns sem direito a registo e muitos sem direito a recurso nem recuo. Logo, passam e boa viagem.
A da Maria Anastácia, que poucos conhecem, à Maria e à noticia, é tão importante para mim, ou melhor, é mais importante para mim do que a da morte do que do russo escritor Soljnitsine, prémio Nobel de Literatura, ontem ocorrida.
Só para registo histórico futuro hoje é dia quatro de Agosto do ano dois mil e oito. Que me desculpem os seus familiares e admiradores, mas a franqueza, quando dela podemos usar, continua a ser muito bonita.

                                                 VI

Quando nasci já a Maria Anastácia pelas ruas de Castelo Melhor andava. Não por todas as ruas, ou por decisão própria, o que não creio, ou por limitação familiar, mas todas as ruas estavam disponíveis a quem quisesse e se limitações havia eram só devidas ao mau estado do chão, só meia dúzia estava calcetada e mesmo estas em estado de lástima por falta de manutenção.
Até para os animais domésticos, incluindo galinhas e porcos, as ruas eram de seu uso corrente e só o não eram na totalidade porque a aves e suínos não sobrava curiosidade e atrevimento para aventuras de longo alcance. O que eles buscavam na sua deambulação diária era mais para procurarem algo mais ou algo diferente para completarem a sua dieta alimentar, nem sempre abundante e muito menos variada. O cardápio era sempre o mesmo, alguma cevada, umas folhas de couve ou outro legume e uma mistura de farelo com couve cortada miúda.
Os que tinham menos liberdade eram ovinos e caprinos, muares, equídeos, asininos e bovinos. Os cães e gatos, salvo raras excepções e atitudes menos elegantes de defesa do território, tinha toda a liberdade que queriam e do excesso de uso dela sofriam muitas vezes as consequências, muitas vezes provocadas pelo animal mais evoluído: o bicho homem. Tal como hoje, por razões outras. A bestialidade é a mesma, agora mais refinada.
Desde a idade de fixar rostos, que não o meu, pois os espelhos em casa eram poucos e estavam altos e o do barbeiro só se olhava uma vez por festa, pois a avença anual tinha as suas regras e eram respeitadas.
Entre os que ficaram registados na memória e são muitos, está bem nítido  o rosto e estrutura fisionómica da Maria Anastácia.
Da minha casa à dela não serão mais de sessenta metros; uns trinta até à da Cândida e outros tantos até à rua do Passadiço, sendo logo a primeira casa da direita ao virar da esquina, em direcção à rua Larga.
Era uma casa muito humilde, agora uma quase ruína como tantas outras, de uma família desleixada por formação ou deformação. Azares não faltaram a esta família de cinco pessoas.
A Maria Anastácia sofria de doença congénita, cuja designação clinica não averiguei propositadamente, sendo as manifestações mais visíveis o posicionamento corporal, dobrado pela cintura, quase formando um angulo recto em que o vértice seriam as nádegas e a cabeça, para poder ver um pouco além dos seus pés, assumia a posição da tartaruga ou cágado, opção por este ser mais conhecido que aquela; um fio de baba escorria sem cessar para o queixo, estando este permanentemente ferido, sobretudo nos gélidos invernos, chegando mesmo a gretar.
Vestia sempre uma blusa acinzentada, por vezes quase sem cor, pelo uso e lavagem frequentes e uma saia quase da mesma cor, comprida quase até aos pós se fosse vista na posição erecta, por isso a frente ia arrastando pelo chão, seco ou enlameado, conforme o tempo, empapada quando o tempo era de chuva.
Nunca falava e só muito raramente emitia sons indefinidos, mas que a família devia saber interpretar. Eram mais audíveis quando a mãe ou alguém a contrariava.
A casa da família era como muitas outras da aldeia: um piso térreo destinado aos animais de trabalho e arrumação dos materiais de trabalho na agricultura e um piso acima para os humanos, bem pouco dignas as condições de habitação e também pouco humanos os humanos nalguns casos.
O acesso ao piso superior era feito por uma escada, apoiada de lado na parede e por baixo, formando um polígono trapézio rectângulo sendo em lajes de xisto o telhado do polígono e também cada um dos degraus da escada. Era por aquele espaço que se acedia à habitação e por debaixo das lajes do balcão eram a habitação nocturna de galinhas e nalguns casos como o de minha casa, era também pocilga. Os animais de trabalho de campo e o de todo o serviço, o burro, tinham uma entrada própria, isto na minha casa.
No caso da Maria Anastácia a laje cobria a entrada para o estábulo. Neste espaço era frequentemente aprisionada a Maria de que tenho vindo a falar, ou quando os pais tinham que deslocar-se para mais longe ou nos ataques de fúria mais violentos.
Nunca soube que idade teria e sempre me pareceu ter a mesma idade desde que vi até deixar de a ver, devido às minhas mudanças e permanência bem longe de Castelo Melhor. Só por uma dúzia de vezes, nem tanto, voltei e em algumas nem terei visto a Maria Anastácia! Mas sempre me pareceu igual, sem mudanças.
A vertigem da vida iniciou-se com a ida para a tropa, Angola, depois o casamento, estive quase uma década sem ir a Castelo Melhor e quando lá estive não me recorda de a ter visto ou por ela ter perguntado.
As famílias tinham sofrido alterações profundas: o êxodo da emigração por um lado, a migração que sempre houve um pouco e se acentuou também e a definitiva despedida de muitos, pulverizaram as famílias quase todas; até as de mais posses, igualmente envelhecidas, se não engrossaram o caudal da migração e da emigração, foram assistindo à partida dos mais novos em busca de outros horizontes e eles, mais velhos, por ali foram ficando à espera da chamada do além e alguns desejando que ela viesse.
Todos os elementos da nossa família, excepto inicialmente a Maria Juliana e a tia Amélia, minhas irmã e Mãe, partiram para bem longe, uns a trabalhar nas indústrias do único industrial da freguesia e outros para o Porto e Lisboa, em diferentes afazeres, mas deixando para trás a terra e o seu Castelo, mesmo que do Melhor se tratasse.
O que não faltam são castelos por esse mundo fora! De pedra muitos e de ilusões a maioria deles.
A Maria Juliana, minha única irmã, só mais tarde se aventurou para terras de França, onde já estavam filha e genro e filho e nora e netos também.
Não foi uma emigrante como os outros, foi mais para ajudar os que já lá estavam; e terá ajudado bastante, mas todos sabemos que nem sempre a utilidade do que cada um vai fazendo é em tempo útil reconhecido. Vá lá! Como ela costuma rematar as conversas que já não são.
A emigração, nos primórdios da década de sessenta do passado século era só para homens, o trabalho era pouco recomendado a mulheres e a viagem ainda o era menos.
Assim, ela, Maria Juliana foi ficando, viúva desde quase se casou e assim ficou até agora, pelo menos sessenta anos passados, ou quase.
Fazia companhia à nossa Mãe, viúva também desde o último mês de mil novecentos e sessenta e três, treze dias antes do meu casamento e dois meses após ter regressado de Angola.                                                               Do que eu queria falar mesmo era da Maria Anastácia, mas as conversas, diz-se, são como comer cerejas, e descambei para assuntos que, sendo pertinentes, não estão directamente ligados à que devia protagonizar este registo. Na verdade o que sei da Maria Anastácia é muito pouco, o que seria a sua biografia só mesmo entrevistando quem já não dá entrevistas há muitos anos. Vá lá!

                                                           VII

As condições de vida da Maria Anastácia eram tão más e tão infausta a vida da família – o pai alcoolizado e o irmão com perturbações mentais, ajudante espontâneo de moleiro de azenha, no Rio Douro, onde veio a encontrar a morte, por afogamento, depois de se desequilibrar com um saco de trigo às costas e caindo no ponto onde a corrente logo o arrastou e depositou num fundão que havia junto ao túnel, a jusante da estação de comboios, vindo a aparecer, devolvido pelo rio, uns dias depois.
O destino dele foi sempre esse: a devolução.
Depois de tantos anos passados sem ouvir falar daquela família, pensei que o mais natural morrido também as duas irmãs que restavam, sumindo-se no tempo a semente da família do ti Zé Manel.
A inesperada notícia de que estava viva, não sei explicar o porquê, trouxe-me recordações muito nítidas daquele percurso; e o facto de me dizerem que a Anastácia continuava a viver e sua condição melhorou, a ponto de se manifestar com palmas quando algo lhe agradava, o meu sentimento de culpa pelo olvido ficou um pouco mais atenuado.
A Maria Anastácia não batia palmas, eram os punhos e as mãos meio abertas, pareciam alheias à representação, assim como duas folhas que desconhecem a sua utilidade.
Era bem mais o que gostaria de escrever sobre esta minha conterrânea sem idade e também sem ilusões ou sonhos, mas inventar não faz parte deste tipo de escrita, nem do meu objectivo inicial e que era de penitenciar-me de tão profundo alheamento da recordação viva que ficou.
Fica só a ténue promessa de ir um dia visitá-la ou então, como costumo fazer a todos os que, duma forma ou doutra, fazem parte do meu itinerário mental e emocional, preferir ficar com a recordação da imagem que marcas deixou.
Seja qual for a decisão final, desejo-te, Maria Anastácia, para o tempo de vida que terás, uma maior qualidade desta vida, estejas onde estiveres.
E de alguma felicidade se a tua sensibilidade a compreender, mesmo que poucos ou nenhuns saibam, exactamente o que é felicidade. Eu incluído!
Um pouco como corolário: o ti Zé Manel, pai da Anastácia, foi quem despoletou a confusão que esteve na origem da expulsão e apedrejamento do Senhor Bispo a primeira e única vez que um Prelado visitou o rebanho de Castelo Melhor!
        ESTE E OUTROS TEXTOS, INICIALMENTE, HAVIA A INTENÇÃO DE INTEGRAREM O QUE SERIAM “AS RECORDAÇÕES” E PODEM CONTINUAR A FAZER PARTE, PORQUE OUTRA COISA NÃO SÃO TAMBÉM.
         Os Senhores e Ti’s da minha aldeia, numa forma simplista de designação, são ainda resíduos esbatidos da época do feudalismo que naquela região de pobreza de solo eram poucos os senhores feudais.

    “ Alguns Senhores da Minha Aldeia”

Por razões não muito explicitas, mas aceites naturalmente pela generalidade dos habitantes, determinado conjunto de pessoas era tratado por “Senhor”, enquanto a maioria era tratado por “Ti”e Ti’a”.
Nunca liguei muito a este pormenor, quer enquanto lá estive, quer depois de ter rumado a outras terras, o percurso foi feito sem o questionar. Não me chocava então nem hoje me chocaria, nunca me pareceu sintoma se sujeição de uns em relação aos outros, tendo mais a ver com a forma de educação e respeito.
Se digo que nunca me pareceu uma forma de sujeição é por que, quando me pareciam e no que a mim dizia respeito, as coisas mudavam de figura naturalmente ou então fazia a promoção delas.
Era habitual os afilhados pedirem a bênção aos padrinhos quando com eles cruzavam ou a casa deles iam. Eu tive sempre real dificuldade em juntar as mãos como quem está a rezar, fazer uma vénia bem ou mal desenhada e dizendo: “padrinho, dá-me a sua bença?” Penso que bênção nenhum afilhado dizia, pois os” purismos” linguísticos nem sempre eram bem encarados quando ouvidos por alguns mais velhos.
Verdade seja dita: não via que os miúdos andassem de mãos postas por dá cá aquela palha; ou seja, eu não era a exceção, fique claro.
A rudeza geral das pessoas não era um culto, era uma realidade natural, como natural era o porte das mesmas.
Mas deixemo-nos desta fastidiosa e nada conseguida tentativa de falta ou falha de educação, a que hoje ninguém ligaria, e vamos aos Senhores e, se a “conversa” escrita para lá se encaminhar, falarei também de alguns Tios e Tias, estes sim merecedores de citação, mas que à abundância nem sempre corresponde brilho ou motivo de reparo;
Os senhores;



JOSÉ CASSIANO DE ALBUQUERQUE ANDRADE SARAIVA,                                                           e mais uns seis apelidos de famílias da nobreza brasonada, meu padrinho e, sem exagero, padrinho de mais de metade dos rapazes que nasceram aí uns vinte anos antes de mim.
Era descendente direto da Senhora, esta sim respeitada e certamente respeitável, mas que a maioria dos vivos de então não conhecera, nem o Senhor Cassiano, quase pela certa; fazia parte de uma linhagem de famílias que, segundo li algures, o nome do Senhor Cassiano de Albuquerque e seus vários apelidos, passando pelos Andrades, Saraivas, Vasconcelos, sendo o último, sem muita garantia, o de Albuquerque, não só por ser assim que todos o tratavam, mas por ser este que consta do meu registo de nascimento, que ele subscreveu, registo falseado mas real.
O senhor Cassiano era, naturalmente, o herdeiro directo e parece que  único varão, outro não conheci nem dele ouvi falar, o que não quer dizer que não exista, daquele alinhamento de famílias; tinha duas irmãs, a Dona Maria, casada com o senhor Aníbal Soares, industrial de várias fábricas, todas destinadas ao processo de produtos agrícolas: lagares, fábricas de farinha, de massas alimentícias da marca na época bem conhecida “ Massas Vouga” e também de sabão; a refinação do bagaço da azeitona, que servia para apoiar a dieta alimentar de suínos, trouxe a produção de óleos alimentares; uma outra irmã de meu padrinho, Dona Horácia, casada com um irmão do senhor Aníbal, de nome Virgílio, pais do meu acidental condiscípulo durante dois anos últimos da primária, o Aníbal, por alcunha “de Foz Côa”, que era onde vivia quando os pais se separaram e ele foi viver com o tio e meu padrinho, o senhor Cassiano Albuquerque, o senhor em apreciação neste apontamento; esperemos que sim, pois neste entroncamento de famílias não o garante de todo.
O senhor Cassiano de Albuquerque, além de ser proprietário de terras e quintas, provenientes da herança secular, em conjunto com as irmãs e mais tarde com o cunhado por afinidade, o senhor Patrício, casado com a outra irmã da madrinha Cecília, de quem falaremos depois, era um pouco de tudo.
Do casamento nasceu uma filha, Noémia, minha madrinha de baptismo, com poucos dias de diferença do meu irmão do meio, o Licinio; só não sei qual nasceu primeiro, mas como a Noémia foi amamentada pela minha mãe, por falta dele, em quantidade ou qualidade da minha madrinha! Isto quer dizer, grosseiramente, que o Licínio, meu irmão e a Noémia, minha madrinha, são irmãos de leite.
Não me posso esquecer que é do senhor Cassiano de Albuquerque que estou ou devo falar, senão acaba por dar uma misturada que nem eu entenderei daqui a dias.
Além de grande proprietário de terras este senhor era também, no campo “politico” (oh, padrinho, mantenha-se sossegado onde estiver, mas a linguagem de hoje é assim, tudo é politica excepto a politica) o presidente da Junta de Freguesia, por herança não sei de que ramo da família, desde que nasci até ir para Lisboa e só anos mais tarde deve ter negociado com o cunhado, senhor Patrício, casado com a irmã da minha madrinha Cecilia e mais tarde, não sei quantos anos passou a ser um forasteiro, como o senhor Patrício o terá sido, capador de porcos para engorda e de bois, muito menos, porcos quase metade da povoação tinha, bois só dois ou três lavradores, as terras não eram aconselhadas a bovinos por serem muito acidentadas para as vacas trabalharem e pastagens não havia! O forasteiro capador casou com uma das solteiras abastadas da aldeia.
Era também “enfermeiro”, este senhor de Albuquerque, não para grandes trabalhos de enfermagem que ninguém precisava, cada um tratava das suas feridas, mas para ser responsável pela vacinação dos pequenos, contra a varíola, que também lha chamavam bexigas, e depois contra a coqueluche, aquela tosse que começava e parecia que fim não tinha! A da varíola todos, sem exceção, a partir de não sei que idade, tinha que ser marcados com aquela coisa parecida com um aparo de caneta, com a qual rasgava a pele do braço em dois sítios diferentes mas próximos, aplicando de seguida uma gota de um liquido que seria a vacina. Nunca vi tanto garoto a chorar alto ao mesmo tempo senão no dia em que ele atacou na escola. Os mais pequenos ainda estavam na bicha de espera e já se ouviam os choros abafados e as lágrimas a correrem e a ser limpas às mangas sujas das camisas. Ficavam sempre as cicatrizes para o resto da vida como se fosse gado com a marca Cassiano de Albuquerque. As minhas ainda por cá andam.
Era também o distribuidor do correio, ou melhor, o receptador e entregador, depois de a Benvinda “Xareta” o trazer da estação e do comboio que o transportava; eram um ou dois sacos que vinham fechados a aloquete (cadeado era no Porto e Lisboa) e depois lidos em voz alta, não muito, porque a rua Larga era e é estreita e os esperantes do correio eram poucos, a emigração ainda não tinha começado e a essa não assisti, já estava em Angola. Alguns não estavam na abertura dos sacos e era uma ou outra vizinha ou vizinho quem leva as cartas! A Benvinda só entregava o remanescente.
O consultório médico também era na casa deste senhor que funcionava, uma vez por semana, vindo de Almendra a Castelo Melhor, a cavalo, pois automóveis não tinham ainda sido incluídos no cabaz de compras de dois ou três que poderiam e mesmo que no cabaz o incluíssem lá ficaria, pois não conseguiriam fazer o percurso, quer pela magreza dos caminhos, quer pelo mau trato que a água das chuvas, meio louca a descer as encostas, lhes causava todos os anos. Só em casos de urgência ou já sem urgência alguma quando o caso era a morte, é que o doutor Caldeira se deslocava a Castelo Melhor fora do dia estabelecido.
O primeiro rádio na aldeia foi o do meu padrinho, o senhor Cassiano e só mais tarde apareceu o segundo, de outro senhor que para a aldeia foi viver.
Mas a principal actividade do senhor Cassiano era a gestão das terras que não amanhava, arrendava ou negociava outra forma e no Inverno era o lagar, que fazia a safra de toda a gente que tivesse oliveiras.
Ali sim, era um gosto vê-lo, sobretudo quando as coisas corriam bem: era o único técnico e aferidor da qualidade do azeite extraído. E era muito o azeite e o lagar ainda hoje funciona, não sob a omnisciência do meu padrinho, onde está de nada lhe valeria. O seu genro e meu padrinho também, mas do crisma foi quem voltou o lagar a funcionar e será agora o chefe do lagar.
Era extravagante como um rapazinho em época de férias, mais divertido do que os jovens, ele nunca terá ido além da adolescência, sempre pronto a pregar partidas aos caloiros convidados, cultivando suas praxes e preparando uma excelente jeropiga; as chouriças nunca faltavam na adega e convidados também não.
A Dona Cecilia, minha madrinha e prima de segundo grau, não ouvia nada ou quase nada, mas era uma excelente companheira, talvez por ser surda.
Quando a filha casou e foi viver para Lisboa, tinha muitas vezes como convidado o senhor Cassiano que todos os dias tentava descaminhar-me para a Feira Popular, pelava-se por um bom frango corado!
Foi um senhor curiosíssimo, nas qualidades e nos defeitos!

Reis Caçote


O SENHOR JOSÉ MARIA PATRICIO

Cunhado do primeiro, como já disse e por afinidade também, casou com a outra irmã, a Dona Mariquinhas, ambas primas direitas da minha mãe, mas que eu, desde que me lembro, terei decidido tratar por “Tia do Álvaro” e que foi simpaticamente aceite pelos mais velhos; o motivo deve ter sido porque toda a gente tratava a minha única irmã, a Maria Juliana, por Mariquinhas e devo ter resolvido tratar a outra por Tia do Álvaro, que era o filho mais velho do casal, Patrício e Mariquinhas.
Tinham um outro filho, o Reinaldo, que ainda me recordo dele a descer os degraus da escola, na correria como os outros, empurra daqui e de acolá, se estatelar no chão e ficar com um joelho bem mal tratado; este primo terá sido o primeiro a licenciar-se, em direito, já depois de casado e a trabalhar numa dependência bancária, aquilo a que chamam hoje balcão.
Estes dois primos eram uns moços excelentes; nas férias deles, proporcionavam-me uns bons lanches, pois não faltava lá em casa o bom presunto, chouriça e o bom queijo. O queijo do senhor Patrício era o melhor da aldeia e o que maior produção tinha.
O Reinaldo foi quem leu a mensagem de boas vindas ao senhor Bispo da Guarda quando pela primeira vez e última até agora, um prelado nos visitava! E só não terá lido a de agradecimento, se estivesse prevista, porque o senhor Bispo se portou de forma que o povo achou pouco digna e, indignado, o correu à pedrada pela cascalheira abaixo em direcção a Almendra, no jeep da Guarda Republicana em que tinha chegado.
Voltando ao senhor Patrício, meu primo por afinidade. Era um gestor nato, um pouco de capataz das suas terras e dos contratados.
Atrevo-me no termo de capataz por ser ríspido na exigência do trabalho agrícola, algumas vezes mais para ser respeitado do que por ser o mais sabedor. A frase por ele usada e que melhor fixei, de desaprovação e admoestação aos assalariados, era “mas que grande canudo” e não á além disto.
Não era de Castelo Melhor e sim de Algodres, aldeia que fica entre Almendra e Figueira de Castelo Rodrigo, sendo certo que havia uma família de apelido Patrício, mas ele não fazia parte dela.
Gostava, quando os filhos iam de férias a Castelo Melhor, de fazer quase campeonatos de aritmética entre nós, que eu ganhava sempre; as contas deles eram já outras, bem mais complexas, como mais tarde uns anos eu constatei, mas ou por desconhecimento do senhor Patrício ou não sei por que outro motivo, ele gostava de os pôr à prova.
O Reinaldo, como já ficou dito atrás, licenciou-se em direito e nunca mais vi e o Álvaro, sendo um retratista exímio, ficou-se pelo Magistério e acabou por dar aulas em Castelo Melhor. Recordo a última vez que o vi, estava eu doente com uma daquelas epidemias de gripe, penso que lhe chamaram asiática, em casa do Licínio.

Reis Caçote



O SENHOR ALEIXO

Reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela, apareceu em Castelo Melhor muito próximo do meu nascimento ou início da década de quarenta.
Tinha três filhos, dois rapazes e uma rapariga, o mais novo, Fernando Jorge Aleixo, foi meu colega de escola, talvez dois anos mais velho. Ainda hoje não percebo o motivo de ter sido transformado numa vítima indefesa de Teófilo e dois outros, ambos de nome Aníbal!
Terá sido uma das turmas mais difíceis que a Dona Maria da Graça terá ensinado.
Era o segundo proprietário de um rádio, onde os rapazes da escola iam ouvir as solenidades do treze de Maio, em Fátima e era o único que recebia um dos jornais do Porto todas as semanas.
Nunca soube a que família pertencia, ele ou a esposa, mas para este efeito, ou outro, parece-me não ser importante.
Ali viveram pelo menos até eu ter deixado a aldeia para ir para a capital e quando voltei a família estava já desarticulada, todos os filhos tinham já partido, tal como eu o fiz. O mais velho não o conheci!
O senhor Aleixo e um conterrâneo de nome Ari, que esteve emigrado no Brasil, faziam, sobretudo à noite e no Verão, ocupação dos tempos livres dos garotos, entre eles eu, o senhor Aleixo inventando uma mentira que fosse bem exagerada relacionada com animais ou seres só imaginados dos seus saberes de Africa! Os miúdos iam a correr até casa do ti Ari e davam nota do que o senhor Aleixo tinha contado; este inventava uma ainda mais extraordinária existente ou ocorrida no Brasil e lá ia o pequeno grupo a levar a nova do Brasil! Um exemplo para percebermos melhor:
O senhor Aleixo viu em Angola um elefante tão grande que dava traques que se ouviam no Brasil, o ti Ari respondia que tinha visto uma jibóia que atravessou o atlântico e quando a cabeça desembarcava em Lisboa ainda o rabo da cobra vinha a sair da Amazónia! Eram assim algumas noites dos miúdos em férias!

Reis Caçote,

O SENHOR AFONSINHO

Morava próximo da igreja, a meio caminho entre este lugar de culto e a escola dos rapazes, num casarão enorme e um terreno, em forma de triangulo, sendo a base a parede da casa e o vértice junto ao ribeiro, com uma romãzeira a enfeitar e em cujo tronco, acorrentado, um enorme Serra da Estrela, atacado de raiva (hidrofobia), sofreu durante vários dias, até ser abatido.
Era o único tuberculoso conhecido da aldeia, já em fase de cura, não fosse a penicilina ter aparecido recentemente, quase com a II Guerra Mundial.
Era também um pequeno ditador, fazedor das suas próprias leis para aos outros serem aplicadas. Da parede do muro que ficava em frente à escola, além da citada romãzeira, havia também uma “abebereira” e uma figueira de figos brancos, esta com os ramos pendendo do muro. Uma macieira que ainda não tinha crescido o suficiente para espreitar por cima do muro e mostrar os frutos na altura deles, apenas duas vergônteas mais novas, a medo, começavam a espreitar.
O decreto para punir o furto dos frutos, transformado em multa, de cinquenta escudos por cada romã e de vinte por cada figo ou abebera.
Não me recordo, ou talvez nem saiba, como eram as leis afonsinas antes de eu entrar para a escola, mas durante o meu tempo, sobretudo na parte final  da “formatura” da quarta classe, foi um permanente conflito, não com os figos, o que não faltavam eram figueiras e não eram disputados os figos pelos donos das figueiras, sobretudo os lampos, aqueles que amadurecem por volta do São João, mas as romãs, por haver poucas e quando maduras mostravam aquela boca vermelha em toda a sua beleza, provocadora, irresistível! E além disso estavam ali mesmo à mão de semear, ou doutra forma, à mão de roubar! Eram uma tentação, não pela qualidade, eram acres até às lágrimas, mas por sempre imaginar como um riso de provocação e de desafio ao decreto!
Quando estavam ali baixinhas não era precisa grande técnica para as roubar, mas as outras, as mais altas e quase sempre as que primeiro amadureciam, tinha de ser adoptado o método do calhau, atirado de forma que a romã fosse cair fora do muro, o que nem sempre sucedia.
Isto era feito sobretudo à noite. E mal uma vinha parar fora do muro, a matula a tomava de assalto e corria para os palheiros, a seguir ao lagar, e ali partilhada, acompanhada com gargalhadas de gáudio por mais uma violação impune da lei afonsina.
Uma noite, no regresso da partilha, vi sentado no pequeno muro que definia o largo da escola e definia o caminho calcetado entre ele e o muro da propriedade do senhor Afonsinho, um senhor que, devido à pouca luz e distracção, me pareceu o senhor Júlio, da estação lá bem longe junto ao Douro, o que achei muito estranho o homem estar ali àquela hora!
Estava acompanhado de três miúdos que não tomaram parte no assalto e por isso também não foram parte na partilha.
Uns metros andados na direcção do grupo, reconhecemos o senhor Afonsinho, dono das romãs, que nos esperava. O grito de alarme soou na noite: “ é o senhor Afonso!” e logo o pequeno grupo dispersou, cada um fugindo para seu lado! Ao dobrar a esquina da casa do Ti Charneca um calhau enorme se desfez contra a parede! O tamanho do calhau eu não vi, a avaliação do tamanho foi pelo estardalhaço que fez ao embater na parede! Se me tivesse acertado deixava marcas pela certa. Não acertou, mas a espera da reacção do senhor Afonsinho foram suficientes para que as incursões nocturnas à fruta do vizinho, terminassem.
A Lei afonsina foi posta em causa, essa era a finalidade da minha provocação!

Reis Caçote



O SENHOR EUGÉNIO

Morava no final da aldeia, na rua onde, quase em frente, veio a ser construída a escola das raparigas, por doação feita à Junta de Freguesia pela senhora Dona Maria, esposa do senhor Aníbal Soares, de quem falaremos, se não ficar esquecido.
Com o senhor Eugénio morava a esposa e de tempos- a-tempos aparecia o filho, o Miguelzinho, só por ironia, pois devia ser o homem mais alto da aldeia. Devia sofrer de uma adiantada miopia, usando óculos de grossas lentes, pouco comuns pelo burgo! Talvez devido a esse problema da visão ou outro qualquer de ordem física, o certo é que a locomoção era ainda mais bizarra e sempre chamava a atenção, pela forma “marcial” da sua marcha, levantando o joelho até a coxa fazer uma perpendicular com o tronco ou uma paralela com o chão! Nunca alguém terá sabido ao certo o porquê daquela forma de andar, sendo a mais lógica o estado das ruas e o natural receio de tropeçar nalgum calhau solto ou ainda solidário com o maciço de xisto onde vivera! Agora posso comparar a marcha do Miguelzinho com a dos militares de elite em desfile de exibição! Só agora posso comparar porque lá para aqueles lados não havia militares e muito menos de elite.
Como disse antes o Miguelzinho só aparecia de tempos -a -tempos e nunca me dei ao trabalho de perguntar a algum dos meus irmãos se sabiam o que estranho conterrâneo fazia e onde! O conheci assim e é assim, misterioso, que dela quero “falar”! Nunca o ouvi articular uma palavra, mas também nunca ouvi que fosse mudo! Parecia viver com o corpo onde estava e o Eu dele lá longe e alto, dada a postura da cabeça ao andar.
Mas o protagonista é o Pai e a Mãe, com um papel definido, mas não o Filho, apenas figurante!
O senhor Eugénio, além da idade avançada ou por causa dela, padecia de alguns achaques e doenças que os Ti’s e Ti’as não sofrem e se delas sofriam as bem caladas, porque o médico, de certeza bom profissional, não assistia todos por igual.
A certa altura, no Verão, o senhor Eugénio teve uma das suas maleitas, mais complicada que das vezes anteriores e que parecia que seria a última, tal seria a gravidade.
O doutor Caldeira, médico assistente de toda a gente, mas mais assistente aos que pagavam do que aos que por avença assistia, viu o estado do doente que deve ter achado que era um mau estado, não como agora e de há una anos para cá, sobretudo por Lisboa, que uns senhores com ar bem saudável, falam alto a exigir menos estado, melhor estado, um contra senso por alguns deles, não há muitos anos, eram “A bem da Nação”! Como o mau estado do senhor Eugénio ter coincidido com o seu plano de férias no Porto, onde o filho estudava e onde mais tarde se formaria em medicina. Por vezes me surge a dúvida se o futuro doutor se acabaria por formar em Coimbra ou até em Lisboa, mas logo desisti! Porque a dúvida me agrada mais e o que está em questão são o agravamento da doença do senhor Eugénio e a ausência do único médico.
Segundo as previsões do doutor Caldeira, face ao estado geral do doente, este devia entregar a alma ao Criador dentro de poucos dias, durante o período da sua ausência.
Para não causar transtornos à família, neste caso à esposa do quase moribundo e o seu programa de férias se manter, combinou com a futura cabeça de casal, deixar uma certidão de óbito preenchida e assinada, apenas sem data e hora do passamento, que seria depois acrescentado por ela ou alguém, com o que concordou a esposa e muito agradeceu ao doutor Caldeira pela ideia brilhante, o brilho é da minha responsabilidade.
O doutor lá foi fazer a sua viagem de férias, se fosse hoje tinha ido a um Congresso, e não mais pensou no doente de Castelo Melhor às portas não do castelo, mas às da morte.
Só que o diabo, com o seu conhecido mau feitio e propenso a fazer travessuras só para chatear, decide trocar as voltas aos envolvidos na doença do senhor Eugénio; pregar uma partida aos vivos porque aos mortos não deve ter piada para os vivos e os internos do inferno não acharem graça a nada! E, zás, deve ter combinado com a sua colaboradora e companheira de todas as horas, mortas ou vivas, pois se há horas mortas é porque antes eram vivas, a dama de preto, para que adiasse sine die a ida a casa do candidato de Castelo Melhor, proposta que à dama agradou e não guardou segredo, confessando que gostava pouco de ir a esta aldeia por causa dos caminhos ou falta deles.
E como esta dualidade de decisões alterou tudo, até a paciência do senhor Eugénio, farto de esperar pela chegada da última mensageira e, porque se sentia melhor, há que sair da cama, meio combalido, apoiando-se na cómoda do lado direito da cama; achou estranho estar um papel sobre o móvel onde ainda se apoiava! Pegos nos óculos, iguaria que só a alguns olhos era servida, colocou-os e a estranheza inicial transformou-se em espanto e revolta quando concluiu que papel se tratava.
A primeira reacção foi rasgar a folha, mas ainda bem que o não fez, era a sua morte oficial que ele rasgava e atirava para a lareira e dava como terminada a beleza que se seguiria!
- Ai o grande sacana do doutor Caldeira, tão amigo da família e mal me distrai-o, passa-me a guia de marcha, sem hora e dia, antes de acabar a sua obrigação! Furioso, o senhor Eugénio.
E, sem perda de tempo, com as poucas forças que lhe restavam, mas bem mais do que as esperadas pelo doutor Caldeira, preparou o jumento, a custo o albardou, era a raiva a aumentar as forças, tudo sob o olhar atónito da esposa, que lhe perguntou onde ia e o ia fazer e o lembrava que ainda não estava bem! E do lombo do asno, agitando um papel, ia gritando para a companheira de todos os tempos:
- Tu és tal como ele, queres é ver-me pelas, mas ainda não foi desta! E dava ânimo ao burro.
Foi então que a senhora, companheira fiel e amiga de tantos anos do esposo revoltoso, aos gritos para o animal “ arre burro, arre burro” e os calcanhares a bater na barriga para o espevitar, ladeira abaixo, se lembrou que o papel, que o esposo agitava como espada, era nem mais nem menos que a certidão de óbito deixada pelo doutor, para alguma emergência, antes de partir para a sua viagem!
- O que irá fazer aquele homem, ainda ontem quase morto!? Que vergonha se ele vai para Almendra ajustar contas com o doutor! Isto só pode ser obra do mafarrico, que Deus me perdoe! Pode ser que o doutor ainda esteja em viagem e se não encontrem!
Qual não encontram, qual quê! Então a partida dos dois, diabo e morte, não tinha sido bem planeada?! O resultado era mais que certo! Ambos se queriam vingar, à sua maneira, do doutor Caldeira que, algumas vezes, não muitas, lhes tinha roubado, no seu posto de trabalho, algumas mortes que tinha já como certas! E sem se aperceber, o doutor, estava a pôr em perigo os seus postos de trabalho, como se trabalhassem à peça!
E, invisíveis como sempre, mesmo que alguns digam que já viram a” morte à frente dos olhos” e outros que já tinham “encontrado o mafarrico em bode velho transformado” não passa de conversa de chico esperto e vaidoso para se dar ares de valente que nada teme, eles invisíveis continuavam, atrás do senhor Eugénio, eles a pé e o da frente a cavalo, ou para maior rigor, a burro montado.
Falando entre eles, em voz baixa de forma que o furioso Eugénio não ouvisse, ouvindo eles bem o que o cavaleiro, ou burreiro, ia dizendo: “Oh, excomungado homem! E tanta consideração que eu tinha por ele e a fazer-me uma destas! E o dinheirão que já lhe dei a ganhar e ele a entregar-me, antes do tempo, à morte! Ele não sabe com quem se meteu, ah não sabe não! Ele vai ver com que diabo se meteu!”
O mencionado e a morte, que vinham já a quase não evitar a risada, ao ouvirem isto da boca do homem que eles salvaram, não conseguiram evitar a gargalhada, que aos ouvidos do senhor Eugénio pareceu um trovão! Mas como não podia ser trovão, o tempo estava bonito e sem uma nuvem, olhou para trás e nada viu, naturalmente! “Devo estar com alucinações devido à raiva”, pensou.
O diabo, sempre desconfiado mas cauteloso, deu por si a pensar alto: “será que ele é pior do que eu?” E a morte respondia, com algum cuidado, “eu tenho andado desconfiada de que tens sido brando demais e há já por aí gente bem pior do que tu e eu, só não fazendo tudo “melhor” que nós por falta de prática e ainda não aprenderam a tornar-se invisíveis! Onde já iam os nossos empregos de tantos anos! Aliás, eu, dizia a morte, ando já cansada desta vida… “ah, ah, ah, gargalhou o diabo, a morte a queixar-se da vida, ah, ah, ah”…verdade, se não fosse gostar tanto do que faço já tinha pedido a reforma! O diabo, sempre adiantou: “eu ando cá há muitos mais anos e nem sequer penso na reforma, ainda hei-de levar muitas almas para o meu mundo ou como os vivos dizem, para o inferno!”
E lá seguiram até Almendra, asno alombando com o Eugénio, à frente. Ao chegarem o asno ficou aliviado da fúria do seu dono e que já o estava a enfurecer de tanto protesto ouvir e muito admirado da agilidade do dono ao descer, dinâmica que até ele, Eugénio, deixou espantado!
Em passadas largas dirigiu-se à porta do casarão do doutor, notando e agradecendo a frescura do hall comparado com o calor da rua onde o Sol parecia querer estorricar tudo!
Com gesto decidido empurrou a porta do consultório que estava entreaberta e ficou parado à entrada, no contra luz da porta, a tentar ver qual seria a cara do doutor quando o visse.
Sem levantar a cabeça da leitura que fazia, o doutor disse: “entra, entra” e como ninguém entrava lá olhou, mas no início não reconheceu o visitante devido a estar no contra luz e a morte e o diabo que estavam cada um de seu lado, mas na sua maravilhosa camuflagem de invisíveis.
- Não me reconhece, doutor Caldeira?! Gritou o senhor Eugénio!
É então que o doutor, ao reconhecer aquela voz, se lembrou da morte do senhor Eugénio, “alma” que agora o vinha atormentar, só podia ser, pensava o doutor, ao mesmo tempo que se punha em e se benzia!
Foi tal o espanto- e o medo, pois então, que o doutor entrou em colapso e tombou sobre o tampo da secretária, a respirar agonicamente e a dizer coisa sem nexo, imperceptíveis, como se a vida estivesse a despedir-se!
O senhor Eugénio ao ver o estado do doutor e pensando que ele, sim, ia desta para melhor, como é hábito dizer-se, atirou-lhe com a sua certidão de óbito, sem hora e data, para cima e, apressadamente saiu e, soltando o burro, levou-o pela rédea até ao murete onde montou e partiu pelo mesmo caminho em direcção a casa.
O diabo e a morte, que não tinham previsto nada daquilo e fazendo questão de ser rigorosos na sua profissão, enquanto a morte abanava o doutor e com a certidão de óbito do senhor Eugénio a servir de leque, o diabo espargia-lhe o rosto sem cor com salpicos de água, molhando os dedos no copo que o doutor tinha sobre a mesa, como se fosse o padre a ministrar-lhe a extrema-unção”
Sentiram-se muito mal naquele inesperado papel, ambos a tentar salvar o doutor, o que revelava uma inconcebível falta de ética profissional, mas logo se escapuliram quando o doutor Caldeira pareceu ressuscitar e aos poucos voltou à vida, de nada se recordando.
O doutor Caldeira morreu muito depois do senhor Eugénio, mas este nunca mais o quis como assistente.
O que fica por saber, porque nada foi dito, é se terá passado nova certidão ou se aquela que até a morte usou como meio de salvação, ainda serviu para legalizar, desta vez sim, o óbito do senhor Eugénio.

Reis Caçote



SENHOR ABEL

A sua morada distava daquela em que nasci cerca de cinquenta metros; era uma casa grande, com entrada por duas ruas perpendiculares e era uma das três mais bonitas da aldeia, com seu beiral em madeira trabalhada.
Vivia com a esposa e uma sobrinha. O casal era já de avançada idade e a sobrinha, aparentando não mais de tinta anos, sofria de epilepsia. Não eram muito frequentes os ataques e como saía pouco não me recorda de alguma vez ter assistido a um único.
A esposa, tudo leva a crer, sofria de crónica “preguicite” e teria como objectivo de vida, por razões que só ela ou nem mesmo ela saberia explicar, negra fazer a vida ao seu marido, o senhor Abel.
Esta família, como outras, nunca cheguei a perceber como viviam e como ascenderam à categoria social do diferente tratamento de Senhor e Senhora! Tinham umas territas que não cuidavam nem amanhavam, como uma boa parte dos proprietários, limitando-se a arrendar os solos para serem semeadas, limpas e tratadas e às rendas se juntavam a recolha dos frutos, azeitona ou amêndoa.
É que para limpar os terrenos, ou seja, roçar os cardos, silvas, giestas podia ser feita pelos proprietários se trabalhar não fosse cansativo, mais-a-mais naquelas ladeiras onde o calor ou o frio só por si cansavam os que a esses exageros não estivessem habituados; ou seja, eram feitos por força braçal, mas lavrar eram os animais de trabalho o elemento de trabalho, apenas atirar com as sementes à terra era feita de saca ao ombro e mão treinada.
Mas para que se não fique com uma ideia de só parasitas é sério que se acrescente que a maioria dos habitantes terras não tinha, fábricas não havia para ganharem o seu sustento e das famílias, quase todas numerosas, só tinham uma alternativa, ou melhor, duas, mas não mais: ou sobreviviam a trabalhar à jorna a apanhar as amêndoas e as azeitonas, vindimar não porque as vinhas eram pequenas e ocupavam pouca gente e durante pouco tempo ou então comprarem animais de trabalho para poderem apresentar-se ao arrendamento das terras dos donos delas.
Havia barbeiros, ferreiros, ferradores, albardeiros penso que não, era mão-de-obra que vinha de fora, mas mesmo estes tinham que arranjar a sua pequena ou maior horta, não conforme a família, mas conforme o que houvesse disponível, porque uma horta precisa de água e este era um produto que não abundava, a que não corria para os ribeiros evaporava-se, nas ladeira não ficava, logo hortas nas ladeiras não havia.
Só para ficar uma ideia comparativa entre a que conhecia bem e outra que pensava não existir, a primeira vez que fiz o percurso de automóvel da aldeia para Lisboa e vi repolhos já prontos a serem apanhados nas terras de Alcobaça, o meu espanto foi tal que tive logo que procurar explicação. Era o solo e a água os dois elementos que para os meus lados não havia.
Mas vamos voltar ao senhor Abel, mesmo sabendo que ninguém fica a saber como viviam as pessoas que não trabalhavam como ele; eu fiquei pela fórmula mais aligeirada de resposta: não viviam, sobreviviam e penso que era a realidade naquela época, vivia-se com quase nada.
O senhor Abel não trabalhava as suas terras, logo não precisava ter animais para as amanhar. Mas precisava, como do pão-para-a-boca, de um meio de transporte para se deslocar à horta ou a Almendra ou outro lado qualquer, mas a partir de certa altura para transportar a esposa a partir do momento em que a sua “doença” se agravou.
Comprou uma jumenta para aquelas deslocações durante a semana e para ao domingo levar a esposa ir à igreja assistir em directo à celebração da Eucaristia!
O senhor Abel aparelhava a burra, de albarda e cadeirinha, a cabeçada estava sempre ou quase sempre colocada, para a senhora ir sentada até à igreja, onde era ajudada a descer da asna e amparada até à sua cadeira privada, onde outras cadeiras, de outras senhoras estavam colocadas, entre os bancos corridos dos sem cadeira e mais próximo do altar, ficando entre os altares do Apóstolo São Miguel subjugando o Lucifer, num gesto demasiado teatralizado e pouco angélico para meu entendimento, mas já assim o encontrei e dele gostei, não pelo ar de vencedor que ostentava, mas por meu Pai se chamar Miguel e ter uma espada que herdou da sua passagem de curta duração pela Guarda Nacional Republicana, mas esta tem seu lugar próprio de recriação. À esquerda das cadeiras era o altar de Nossa Senhora do Rosário a quem o povo adorava e pedia bênçãos. Mesmo junto ao patim do altar começavam os seis ou oito degraus de acesso ao púlpito, só usado em celebrações específicas.
A espantosa mudança, a que poderíamos chamar de milagre se não fosse tão radical, deu-se imediatamente a seguir ao passamento do senhor Abel.
A doente e quase inválida senhora, de um dia para o mesmo dia, não de um dia para o outro, ficou tão remoçada e reabilitada que nunca mais precisou da jumenta para se deslocar, quer à horta, quer à missa ao domingo, locomovendo-se com um desembaraço que fez inveja a muita gente.
E o povo comentava, com algum sarcasmo e imensa sabedoria, que o seu mal era o senhor seu marido, o senhor Abel e nada tinha a ver com milagres!

Reis Caçote 



O SENHOR JOSÉ PALA

Tinha a sua residência, edifício de traça antiga, entalada entre a da Dona Graça, professora dos rapazes e a do Ti João Patrício, ferrador e proprietário. Formavam, as duas, do senhor Pala e ti João Patrício, a base de um triângulo, ou melhor dizendo, um dos catetos e a igreja o outro, do triângulo rectângulo que era o largo da igreja.
Era o delegado do Registo Civil e foi ele que interveio na situação criada e ainda existente, para meu gáudio, à volta do meu registo de nascimento.
Pouco mais sei do senhor Pala, talvez por trabalhar em Vila Nova de Foz Côa e chegar lá partindo de Castelo Melhor, era deveras moroso, cansativo e quase impossível em certos dias de temporal! A dificuldade não se colocava apenas ao senhor Pala, mas a todo aquele que para lá se deslocasse ou no sentido inverso.
Havia naquele tempo três formas de lá chegar ou de lá vir, mas todas elas tinham um grande e acidentado percurso a fazer a pé.
Um deles, o mais utilizado, era a pé; subia-se até ao alto de Santa Bárbara, virava-se à esquerda para o Orgal, único lugar da freguesia de Castelo Melhor, descia-se até à foz do rio Côa, onde se juntavam e as águas do Côa, sem aparato algum, se misturavam com as do Douro e a partir dali eram apenas deste as misturadas águas do Côa e não se pense em colonização ou monopólio das águas, porque a todos, maiores ou mais pequenos, que o Douro foi absorvendo, ribeiras incluídas, a montante ou a jusante sucedeu o mesmo e alguém decidiu chamar a estes afluentes, mas também deviam chamar-se influentes, pois se não fosse a influência destes nunca o Douro, que amo como liquido irmão, teria o prestigio que hoje tem. Retomando: chegados à Foz, para atravessar o Côa da margem direita para a outra margem, ou seja para a direita, ou usava o barco, chamando pelo barqueiro – oh, barqueiro!- quando o barqueiro não estava junto ao barco e lá vinha ele do outro lado do rio, entrava no barco e agarrado a uma corda que atravessava o rio e bem atada dum lado e doutro, à força de braço atravessava e ajudava a embarcar as pessoas e animais se algum levavam, fazendo nova travessia onde ajudava a desembarcar! Por vezes era uma carga de trabalhos fazer entrar um burro no barco e talvez por isso apareceu aquele ditado: “se queres que o burro entre no barco, puxa-lhe pelo rabo”! Das poucas vezes que fui a Foz Côa só uma levámos o burro e foi o fim da macacada para ele embarcar! Levou mais tempo a convencê-lo que a fazer a travessia. Para pessoas sem animais e sem problemas de vertigens, podiam atravessar usando a ponte do comboio, mas tinham que pagar ao barqueiro metade do preço pago se no barco atravessassem. Eram frequentes os protestos por acharem injusto pagarem a quem nada fez e alguns terão passado sem pagar. Depois de atravessado o Côa era preparar as pernas, o coração e os pulmões, para subir a ladeira até quase à entrada da Vila. Duas horas era em média o que demorava.
Outra modalidade era usando o comboio. Agora sim, que maravilha, de bota-fogo, bota-fogo deve ser um descanso, pensarão alguns! Desiludam-se! Tinha que subir até ao alto da Santa das trovoadas e em vez de virar à esquerda como na modalidade anterior, seguia-se em frente e mal se passava num dos topos do campo de futebol, chamado assim porque d vez em quando meia dúzia de ”maduros ” se juntavam e iam para ali dar pontapés numa bola ou nas pedras que sempre sobraram a espreitar, logo começava a descida pela ladeira, bem acentuada, por onde se chegava à estação dos comboios. Se levavam animal tinha um percurso de curvas e contra curvas, quem em novo devia ser uma novidade, como tudo o que novo é, o pavimento coberto com seixos retirados de um filão que vem dos lados da Mêda, atravessa o Côa, ao lado das fragas onde os velhos antepassados que se devem ter perdido por aqueles sítios, há mais de trinta mil anos, sem terem muito que fazer, desataram a riscar nas faces planas que nos xistos aparecem com alguma frequência quando uma fraga maior se separa, e que na altura não deviam ligar muito menos fazer concursos ou campeonatos para ver quem desenhava melhor alguns dos animais selvagens que por ali andariam perdidos, como eles. O filão continua, assim como que para marcar uma fronteira branca e dura no  maciço de xisto sem cor muito definida entre o cinza e o castanho, por vezes azulado, uma misturada sem jeito algum, mas é o que é e agora nada a fazer. Tem muita utilidade, mas não vou aqui ficar a patinar na narrativa! O filão, não sei explicar porquê, trazia agarrado ou formava bolsas, um outro mineral muito mais denso, o mesmo que mais pesado, e que alguém descobriu que podia ter boas aplicações, inclusive na industria dos explosivos e onde eu e outros dois garotos, quando a Coreia “declarou guerra à América” não sei porque carga de água, mas por disputa de fronteiras não foi porque estive a ver no mapa mundo e até ficam em Continentes diferentes e depois me esclareceram que não foi a Coreia a declarar, mas isto foi por volta de mil novecentos e cinquenta, dizia que eu e outros dois garotos, um deles tinha feito em Foz Côa o exame da quarta classe e ainda o filho do senhor Júlio da Estação, andámos ao rebusco do tal minério, chamado xelite, e que era depois vendido a gente de fora que a Castelo Melhor ia comprar. Parece que ainda rendeu uns cobres e eu estive ocupado com os dois colegas a aprender a governar a vida, á custa da guerra! Dizia-se que na outra guerra anterior, a Segunda Mundial, o valor do minério era muito maior, mas também a guerra foi outra bem diferente! Nunca soube se foi muito ou pouco o que foi vendido, os miúdos não tinham a ver com dinheiros e nunca vi nenhum!
O filão passa um pouco ao lado da freguesia, sobe até ao alto de Santa Bárbara, desce até ao Douro, atravessa por baixo de água e vê-se ele a subir ladeira acima da margem direita do rio. Só pode ter sido deste filão que há sei lá quantos anos, alguém atapetou de seixos a parte superior do caminho desenhado, parecido com as estradas romanas, mas na época que eu conheci, os calhaus de seixo, com a fúria das águas se foram separando e rolando ladeira abaixo, mais parecendo agora uma pista daquela modalidade dos ciclistas-equilibristas que sobem e descem por cima de toda a folha. Intransitável ou quase. Chegados à estação com as pernas doridas daquele trajecto, entra-se no comboio e andam-se uns poucos minutos de bota-fogo e estacionamos depois da tal ponte antes citada. E de seguida é a tal ladeira, a pé, porque quem vai de comboio não pode levar um animal como bagagem, até Foz Côa. O tempo é o mesmo.
A hipótese que devia ser a mais cómoda por entrarem já as novas tecnologias ao serviço dos transportes, o automóvel, era ir até perto de Pinhel, onde havia, não sei se boa ou má, se segura ou a cair aos bocados, nova não era de certeza, porque novo-novo só o Estado era, a única ponte para atravessar o Côa, que ali devia ser quase só um ribeiro. Mas não era usada pelas gentes de Castelo Melhor, por que: tinha que ir a pé, de bota cardada ou rasto de pneu, até Almendra, caminho que conhecia bem desde muito novo porque todas as semanas ali ia com a tia Amélia, minha mãe, levantar sete quilos de farinha para fazer o pão da família. Era o tempo do racionamento aplicado num País neutral. São cerca de cinco quilómetros, talvez nem tanto, mas o caminho quase só para cabras, porque estas só gostam de andar por maus caminhos, nunca percebi porquê. Também se podia ir a cavalo, não de cavalo porque era animal raro naquela região, mas sim de burro ou macho. Alugava-se o automóvel e o dono do dito, que não soube nunca quem era ou até se existia, conduziria a novidade por “estrada” de terra mal batida, passando por Figueira de Castelo Rodrigo e durante não sei quantos quilómetros se chegava à tal ponte e voltar pela margem esquerda, passando não sei por quantas localidades até Foz Côa. Tempo de duração do percurso, as mesmas duas horas, ou até mais!
E à boleia do quase desconhecimento do senhor Pala e de ele estar quase sempre em Foz Côa, ficámos a saber, não muito seguramente, o quanto era fácil chegar à sede do concelho. Agora, dez minutos bastam para fazer o percurso de automóvel.
Ao senhor José Pala devo, sem que ele alguma vez o soubesse, e agradeço o ter-me proporcionado, com aquele acerto de datas, acordado com meus pais para não pagarem a multa por falha de registo no prazo de trinta dias, tantos momentos de boa disposição e aproveitamento” literário”.
E falta ainda chegar o momento, mas o vou vivendo com boa disposição agora, que será o do passamento, pois morrerei sempre dois dias mais cedo.
Onde quer que vos encontreis, no céu se para lá foi sua alma, o meu agradecimento, senhor José Pala.

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O SENHOR POINHOS

Tinha a sua residência na Rua do Abixeiro, logo a seguir ao Largo da Igreja, do lado esquerdo de quem sobe em direcção ao Castelo.
Tinha uma propriedade rústica, com algumas árvores de fruto, oliveiras e uma pequena horta, nas traseiras da casa onde nasci, confinando ainda com a minha única irmã, do ti Zé do Orgal, a marcenaria do ti Américo Ferreiro e a forja do ti Antoninho Ferreiro; a nascente com o muro alto dos logradouros da casa grande de meu padrinho e as traseiras de outras casas; a norte confinava com a “calçada” sem nome, talvez por ser um espaço entre duas propriedades rústicas, a do senhor Poínhos e outra de não recordo quem, não havendo casas portanto e a poente confinava com o ribeiro, canal feito para canalizar as águas pluviais e não só, na altura a céu aberto e agora tapado e por onde passam os esgotos, luxo que a democracia trouxe e que na época nem imaginado.
A entrada para a propriedade do senhor Poinhos era pela tal Calçada a norte, ou seja, pela confinante mais distante da casa onde o proprietário morava.
Já eu estava em Lisboa há alguns anos quando, numas férias que passei em Castelo Melhor, a tia Amélia, minha Mãe, me contou o litigio entre ela e o senhor Poínhos, relacionada com as estremas das propriedades.
Entre a parede do lado nascente da casa da Mariquinhas, minha única irmã, nome adoptado pela família e pela aldeia, já que o nome verdadeiro é Maria Juliana, de que parecia não gostar muito, e o muro dos logradouros do meu padrinho, havia um espaço que à frente teria uns dois metros e ao fundo não seria mais de um metro e dez centímetros. Teve sempre, a meia distância entre a frente da casa e a propriedade do senhor Poinhos, um muro a atravessar, onde muitas vezes se guardava lenha e faziam alguns despejos de restos de resíduos sólidos. Era um muro tosco de construção, feito com enormes pedras feita não sei com que intenção.
O senhor Poinhos, certamente cansado de ter que ir dar a volta para entrar no seu terreno, a idade já aconselhava menos esforço e dava pouca confiança para chegar ao terreno por uns degraus feitos no paredão do ribeiro, era perigoso e no Inverno era mesmo inviável quando o ribeiro levava água a boa velocidade por ser em declive, achou que, sem dar explicações, podia passar a usar aquele espaço para aceder à sua propriedade. E era bem pensada a solução.
A ideia tinha o seu jeito e até aplicação fácil, não fosse a ambição desmedida que revelou, isto por um lado e pelo outro a forma silenciosa com que queria realizar o seu objectivo, não dando cavaco aos outros confinantes porventura interessados.
Procedeu à remoção dos tais resíduos, sem qualquer oposição e a um pedreiro mandou fazer por ali uma entrada mesmo à frente, na continuação da parede frontal da casa da minha irmã e encostada a meio da parede da loja ou estábulo do burro da ti Ana “Morra”( entre aspas por não saber se era apelido ou alcunha, como o Grainha da minha mãe).
Com alguma delicadeza e muita firmeza a tia Amélia, minha mãe, disse ao pedreiro e ao adjudicador da obra, o senhor Poinhos, que não fizessem tal obra naquele sitio, pois ela a deitaria abaixo.
Não ligaram, o pedreiro porque cumpria uma ordem e o senhor Poinhos, displicente, voltou-lhe as costas, revelando ambos conhecer mal a autora da ameaça.
No dia seguinte de manhã, quando o pedreiro chegou para continuar viu que teria que recomeçar e não continuar. Se fosse hoje, pegaria no telemóvel que tinha no bolso de fora do casaco e ligaria ao seu patrão, senhor Poinhos; como ainda não telemóvel, nem água canalizada, nem telefone fixo, nem electricidade, foi a pé dar noticia ao dono da obra.
- Bom dia senhor Poinhos (de chapéu na mão), a tia Amélia cumpriu a promessa (este foi o erro, acharam que era promessa e ameaça não) e está tudo no chão!
- Não faz mal, recomeça que ela não é mais teimosa que eu, ordena o senhor Poinhos.
- Ombros encolhidos e chapéu na cabeça o pedreiro lá voltou.
A tia Amélia repetiu a ameaça e o pedreiro, agora só, porque o dono da obra o não acompanhara, recomeçara a construção, contrariado, mas a cumprir o contratado com o senhor Poinhos, voltou a construir a parede e respectivo portal e em cima da obra, como se fosse uma trincheira, colocou um molho de silvas, gesto mais idiota é difícil imaginar! Como se a tia Amélia nunca tivesse visto silvas e as temesse!
Tudo no chão, mal o pedreiro acabou de enfeitar a obra!
Aquilo estava já a parecer-se com a lenda da capela do Anjo, sendo neste caso o anjo a tia Amélia que para anjo não tinha jeitinho algum. Para os que não conheçam a lenda e fiquem a pensar por que carga de água aparece a lenda da capela misturada com o portal que o senhor Poinhos queria ver construído e a tia Amélia teimava em não deixar, com a capela o imbróglio foi igual: os homens de então queriam construir a capela dezenas de metros antes da ponta do rochedo; então eles construíam de dia e de noite um anjo só ou um batalhão deles, penso que no céu não há batalhões, isso é coisa da terra e da guerra, posso emendar para rancho, sempre é mais conhecido, deitavam por terra o antes edificado! E a contenda só parou quando um sensato bispo ordenou: faça-se como Deus quer! O pároco ainda disse que não era ordem de Deus, mas do anjo São Gabriel ao que o bispo aclarou: isto é um modo de dizer. E a capela lá está no local exigido, agora com um estreito largo em frente e um corredor em volta, tudo calcetado e um sítio procurado pelos fotógrafos, por dali, com suas lentes poderem registar a beleza do relevo até quase ao fim do mundo.
O senhor Poinhos voltou a protestar, mas disse ao pedreiro para fazer uma paragem sine die, talvez por saber que a tia Amália ia a caminho de Foz Côa, mesmo sem o aplauso do pacifista ti Miguel, meu Pai, tal como o pároco foi ter com o bispo, para saber se tinha ou não razão de que aquele bocado de terra entre muro e parede não era do senhor Poinhos, como ele garantia.
Como não soube o resultado da viagem da tia Amélia a Foz Côa, o que ele devia ter feito antes de gerar aquela confusão e estragar um dinheirão, deu nova ordem ao pedreiro e o acompanhou até ao local, deram de caras com a tia Amélia que, num tom de voz firme o suficiente, lhe disse para não se atrever a fazer o que pensava naquele local, “ senão eu posso esquecer-me dos seus cabelos brancos e corro-o daqui a pontapé!
Foi remédio santo! Tempos depois, com o “rabo entre as pernas” pediu autorização para fazer o portal ao fundo do espaço entre muros, mas não sendo autorizado pela tia Amélia a encostar as suas pedras às pedras da parede da casa, situação caricata, basta dar um empurrão e lá vai a obra para o chão, como sucedera no início do litígio.
E lá está agora, hoje já encostada uma à outra! Morreram ambos os litigantes!

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O SENHOR JOÃO GRILO

Este senhor morava na casa mais elaborada da aldeia, em termos arquitetónicos! A entrada principal virada quase a nascente, com uma escadaria lateral de acesso ao piso superior, situada bem no alto e limite da freguesia, a caminho do Anjo.
É uma construção maciça, de dois pisos, sendo a fachada virada a norte, no primeiro andar, quase toda envidraçada transformada em estufa, algumas plantas se viam do exterior.
Nunca lá entrei, só o exterior conhecia.
Na citada casa morava o senhor João Grilo e a família, a esposa e dois filhos, o Alberto e a irmã de quem não recordo o nome.
Era um comerciante de solas, com estabelecimento em Figueira de Castelo Rodrigo; talvez tivesse algumas courelas em Castelo Melhor. Mas os rendimentos da família seriam basicamente os da comercialização das solas, com diversas aplicações, mas, sobretudo, para a confecção de botas que os sapateiros iam confecionando por medida do pé de cada um. Os sapatos prontos a usar, se os havia já, não eram para pés daquela zona do mundo.
A filha deve ter ido estudar, tal como o irmão, talvez para o Porto e dela não soube mais, porque parti para a aventura na cidade grande. Mas ainda assisti a uma parte do namoro com o Mário Madeira, que também lhe chamavam Mário Laco, alcunha que era do pai, por linguagem gestual, ela lá no alto da povoação, ele na varanda de sua casa, junto à escola dos rapazes.
Também o Mário foi ara o Porto estudar, isto só para arrumar a questão do namoro, porque o senhor José Madeira terá o seu espaço próprio; penso que não casaram os namorados gestuais.
Ao Alberto não perdi o rasto, voltou depois de interromper os estudos – e que não terão sido muito avançados – casou com a minha vizinha Piedade, filha da senhora Rosinha e do ti Américo (Ferreiro) Patrício.
Já muito mais tarde o soube Presidente da Junta de Freguesia, estive em Castelo Melhor, com o meu irmão do meio, o Licínio, mas não vi o senhor Presidente, apenas me contaram que fazia parte de um pequeno grupo de ex-migrantes, um deles foi meu companheiro de fim-de-semana e meu colega de escola, o Sérgio, que perdi de vista alguns anos depois, deixou de ser aviador de balcão como eu, terá casado com uma ajudante de cabeleireira, casamento que não terá sido duradoiro, mas deu para terem uma filha que passou a morar com o pai em Castelo Melhor. O trio era seguidor da doutrina do deus Baco e pouco se via, mas devia ser por eu ir normalmente no Verão e nesta estação apetece mais a sombrinha de uma adega.
Certo, certo, nunca vi nenhum deles, nem na sede da Junta, nem fora dela!
O senhor João Grilo era, como a maioria dos Senhores, uma pessoa respeitada e respeitadora.
Não confirmei se era filho de alguma família de Castelo Melhor, mas o que a franja de recordação que ficou diz que não, a esposa sim.

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O SENHOR JOSÉ MADEIRA
… Tinha a alcunha de “laco”, de que ele não gostaria muito, mas que o não afetava ou não se mostrava avesso, como bom comerciante, ou melhor, negociante, em que o lema é viver bem com toda a gente, já que de todos precisava para seu modo de vida e maior rendimento.
Não era natural de Castelo Melhor, indo ali parar, como outros o foram, em busca de melhor oportunidade de vida que não encontrariam em suas terras; casou com uma nativa, de que nasceram dois filhos, um casal, e alguma fortuna, mas esta por via dos negócios que fazia e não do casamento.
Comprava aos agricultores cereais e amêndoa a quem a tinha para vender, só a semente, a amêndoa em grão, se fosse antes de partida seria amêndoa em casca. Geralmente era já a amêndoa que os pequenos produtores lhe vendiam.
Era, pela certa, o maior comerciante por grosso, importando também alguns produtos, nomeadamente batata de “semente”.
Os filhos, de que apenas do rapaz recordo o nome, o Mário, foram ambos estudar, penso que para o Porto; não sei se a filha terá terminado algum curso, mas o Mário era o quebra-cabeça do pai, o senhor José Madeira.
O senhor José Laco tinha um pequeno estabelecimento de mercearia e vinhos, tal como os outros dois existentes na aldeia, mas a sua principal actividade e fonte de rendimento era o comércio por grosso; comprava excedentes de cereais e a amêndoa de quase todos os pequenos produtores; os maiores, como era o caso dos senhores José Patrício e Cassiano de Albuquerque, teriam a sua linha própria de escoamento.
Para armazenamento dos produtos em trânsito construiu numa das suas propriedades, mesmo no fim das habitações, no lugar designado por palheiros, na saída a caminho do rio Côa.
Com o avançar dos anos e da sua experiência foi fazendo uma pequena fortuna e seu património imobiliário alargando; como quase sempre sucede onde os casos de sucesso aparecem, dizia-se à boca pequena e às vezes à grande que, ou ele tinha encontrado o” lagarto de dois rabos”, o tal da sorte, ou então o senhor Madeira não era um paradigma de seriedade! Ele, rei em terra de cegos e negociante por vocação, quando algo era insinuado em desabono da sua seriedade, ria com tranquilidade, pois sabia que concorrência não tinha ou quase, uma vez que o senhor José Índio não tinha capacidade para competir, sobretudo nos moldes em que o senhor José Madeira o fazia.
O senhor José Índio era o comerciante por grosso mais antigo e não teria a astúcia do concorrente mais novo e nunca passou da “cepa torta”.
O filho Mário era, garantidamente, o pior “negócio” do senhor Madeira! Terminou a primária e, logo de seguida, foi enviado para o Porto para prosseguir os estudos, mas ele deve ter-se deslumbrado com a cidade grande e a ela dedicaria o seu melhor, deixando os estudos para segundo, terceiro, ou último, já que nem ele próprio saberia o número de planos que nunca elaborou.
Na época dos exames, quando alguém perguntava ao senhor José Madeira: “então o Mário ficou bem?” Ia respondendo sempre, ano após ano, “ele fica sempre bem, quem fica sempre mal sou eu que pago as despesas e resultados nada”!
Quando chegou a altura de o Mário ter de abandonar oficialmente aquilo que ele, oficiosamente, já há muito deixara para trás e ir trabalhar, mesmo sendo nenhuma a vontade, lá foi o senhor Madeira pôr os seus lucros a render, tomando de trespasse, no Porto, um estabelecimento de não sei que especialidade, para o Mário explorar.
Arranjou mais uma carga de trabalhos, pois o Mário não se entendia com o negócio e o pai lá tinha que fazer umas temporadas a ver se as coisas se endireitavam, descurando os negócios em Castelo Melhor.
Andava eu na terceira ou quarta classe, juntamente com um sobrinho por afinidade, o Acácio, que lhe ficava a tomar conta da mercearia e vinhos quando ele estava no Porto. E tantas vezes se tornou necessário ir ao Porto que a certa altura, já a esposa estava muito doente, ele tentou convencer o meu Pai a tomar-lhe conta das terras, na forma de rendeiro e zelador! Sucederam-se as reuniões nocturnas a que não assisti, mas no final, de positivo, resultou muito pouco, mas de negativo resultou: meu Pai que, não fumava há vários anos, voltou a agarrar no cigarro, porque o senhor José Madeira, isto ouvi várias vezes, antes ou durante as reuniões, insistia com o ti Miguel “vai mais um cigarrito, senhor Miguel?” e, daquele jeito, meu Pai voltou a fumar, hábito que veio a abandonar tempos depois.
Mas da sua forma pouco séria de negociar dei-me eu conta; certo dia pediu-nos, a mim e ao sobrinho Acácio, para o ajudarmos a pesar uma quantidade de trigo de um conterrâneo que o armazenara ali até ele, senhor Madeira, ter tempo para o pesar. A falta de tempo invocada era, nem mais nem menos, esperar que o trigo perdesse a natural humidade, para quando fosse pesado o trigo estar mais seco e, logo, menos pesado e quanto menor fosse o peso, menor era a quantia que o senhor Madeira ia pagar.
Mas a esperteza do negociante era ainda mais refinada! Numa mudança de pesos no prato da balança decimal, ao levantar o peso de cinco quilos, caiu um pedaço de chumbo que devia pesar uns duzentos e cinquenta gramas e que não era o chumbo que todos os pesos levam para acertar e ser aferido, como os que tínhamos na escola. Perante o meu olhar de espanto o senhor Madeira não teve dificuldade em arranjar uma desculpa: “era assim mesmo porque o peso estava descalibrado”! Nenhum dos dois a engoliu, o Acácio acenou com a cabeça de forma crítica, mas o tio do Acácio era homem de recursos e não se atemorizou. Era o negociante em pleno.
No ano em que fui para Lisboa e como resultado das negociações entre o senhor José Madeira e o meu pai, a meias semearam grão-de-bico, mais conhecido na aldeia por gravanço, a terra que o senhor Madeira tinha na encosta mais virada a norte da colina do castelo e por detrás do forno da tia Amélia.
Era um regalo ver aquele campo coberto de verdes plantas rasteiras, depois as flores e a seguir carregadas de sementes. Toda a gente gabava a ideia de ali semear gravanço e admirava a sementeira!
Já em Lisboa, meses depois, a tia Amélia, minha mãe, em carta enviada para Lisboa, juntamente com um cabaz de produtos da terra, mandou escrever, ela não sabia, que tinha a intenção de mandar uma taleiga de gravanço, pois tinha sido boa a colheita na Tapada do Forno, a meias com o senhor Madeira, mas o excomungado grão não se coze, nem que se gastasse a lenha toda da aldeia! Não to mando porque o petróleo de Lisboa não chegava para o cozer.
O meu pai, sócio da “boa colheita” queria dá-lo ao gado, juntamente com a palha ou a cevada, mas o sócio senhor Madeira, como bom negociante que sempre foi, comprometeu-se levá-lo à feira de Castelo Rodrigo e tentar vendê-lo; e assim terá feito, o grão era uma beleza, coisa linda de se ver e foi um instante enquanto foi vendido e mais que fosse.
Boas pragas terão sido rogadas ao senhor José Madeira, mas quando os que compraram só quando o tentassem cozer é que ficaram a saber o que os produtores já sabiam e o vendedor estava já longe e não voltaria à feira, aquele não era o seu posto preferido de fazer negócio.
Quem ficou a perder foi o sócio Miguel Monteiro! Como sempre sucedia!

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Cego, não era apelido nem alcunha do senhor João, era sim a deficiência com que nasceu e que os hábitos das pessoas, sempre procurando o lado mais fácil da vida, a adotou e acabou por fazer parte integrante da forma de identificar o senhor João, como se de nome se tratasse. Bom seria que o fosse para ele e não a cegueira, só este pequeno texto, guardando as recordações de tempos distantes, não seria escrito e de o fosse seria de diferente norma.
Como seria a narrativa sendo o apelido Cego, mas vendo perfeitamente?
Era assim que todos o tratavam. Era proprietário de uma das três mercearias, ficando esta no Largo da Igreja, quase iniciando a hipotenusa do triângulo retângulo que era a configuração do largo. No piso superior morava a família, composta pelo casal e quatro filhos, dois rapazes, Octávio e Procópio e duas raparigas, Mili e Noémia.
Ambos os rapazes, terminada a instrução primária, prosseguiram os estudos num seminário, como outros o fizeram quando os recursos da família eram frágeis e como os outros também eles não seguiram a vida eclesiástica.
O senhor João Cego, que morreu recentemente, com perto de um século de vida, tinha um estábulo na Rua Larga, junto da casa do meu padrinho e uns cem metros do largo da igreja; sempre me despertou curiosidade e não menos vontade de perceber qual a forma de orientação usada pelo senhor João, quando o via sair da loja, virar à direita e caminhar cerca de vinte metros ao lado da igreja, depois virar à esquerda e entrar na dita Rua Larga, fazendo o trajeto de ida e volta mais de uma vez por dia sem que alguma vez se enganasse; que eu visse, claro e não era minha ocupação andar a tentar ver se confirmava a afirmação.
Será que contava os passos ou usaria outros sentidos, segundo dizem mais apurados quando um falta? O que usava não sei, nunca lhe perguntei, mas a verdade é que nunca se enganava.
Há coisas a que nem os cegos escapam, neste caso às tropelias dos filhos, quando iam de férias, no Natal, na Páscoa e no Verão; porque gostavam e havia com abundância, várias vezes apanhavam caracóis, os preparavam com a ajuda da mãe, senhora Josefa e os comiam, sempre sob a condenação do pai, que achava ser bicho nojento! Mas era cego!
Numa das férias, filhos e mãe, conluiados em pregar uma partida ao pai, outras lhe terão pregado que não conheço; prepararam os caracóis com arroz, bem temperado e condimentado, de que a mãe também gostava e tentaram acabar com a relutância, mais teimosia que relutância, do senhor João!
A arrozada estava pronta e foi posta na mesa, com a indicação ao cego de se tratar de arroz com “miúdos” de cabrito; fígado, rim, etc.
O senhor João comeu, repetiu e elogiou a especialidade do arroz que a esposa tinha preparado, dizendo: oh, Josefa o arroz está hoje melhor que das outras vezes ou sou eu que estou com mais apetite!
Come, diz a esposa, a tentar conter o riso e os filhos a escaparem-se, incapazes de o conter!
E no final do elogiado repasto, mulher e filhos, quase em coro dizem ao senhor João: “ então era o pai quem não gostava de caracóis, mas souberam-lhe tão bem que repetiu duas vezes!”
Era arroz de caracóis?! Então, a partir de agora, vão apanhá-los todos os dias e a mãe que faça uma arrozada como a de hoje! Que pitéu!
- Até tenho pena de ser cego, senão quem os apanhava era eu!
- E não precisava correr muito! Brincou o mais velho, o Octávio.

Reia Caçote


O SENHOR MARCOLINO

Era o sapateiro mais perfeito, aquele que melhor fazia as botas por medida! Era um regalo vê-lo desenhar o pé do futuro utilizador das botas, colocando ora um ora outro em cima dum pedaço de cartão e ele contornar, com lápis grosso, o pé descalço; não era a sapateiro remendão da história infantil!
Morava com a família numa casa de dois pisos, recentemente construída, tendo no piso rente ao chão a oficina de sapateiro, virada para um pequeno largo e a entrada para o piso superior pela Rua Larga.
Do filho mais velho e um outro a seguir não me recorda ou recordo mal, por isso ficam só como registo. Apenas o Leonel, o Aristides e o Acácio recordo melhor:
O Leonel por ter um jeito raro para jogar futebol, sobretudo a forma como tratava a bola, mesmo de trapos ou de meia com trapos dentro; chamávamos-lhe pezinhos de lã, tal era a forma delicada como ele afagava a bola! Como o nome dele era Leonel, também se dizia, rimando: “ Leonel tem pezinhos de mel”
O Aristides, mal terminou a primária, deve ter partido para o Porto e não me recorda de o ter visto mais!
O Acácio, mais ou menos da minha idade, foi o tal companheiro que fez parte da aventura de aprendizagem do latim para quando o Senhor Bispo da Guarda visitasse o “rebanho” de Castelo Melhor. A vinda e ida do Prelado têm desenvolvimento noutra parte das “ Recordações”, no capítulo sobre a escola.
O senhor Marcolino, para mim que nada sei de sapateiro, era sabedor do seu ofício, sendo o Acácio o filho que mais marcou, pelos anos de escolaridade em que convivemos!
Cada um no seu lugar, e o senhor Marcolino era no de sapateiro.

Reis Caçote
Dig.01/14


O SENHOR ANIBAL SOARES

Como não era natural de Castelo Melhor, mas ser tão próximo em tantos aspetos, decidi incluí-lo no selecionado grupo dos senhores da minha aldeia.
Não era natural de Castelo Melhor, como ficou dito no início e, como era tradição naqueles tempos, deve ter “pago o barro” à rapaziada casadoira da aldeia, numa das tabernas existentes – de que muito duvido! – para poder casar com uma das irmãs de meu padrinho, então Maria Albuquerque, talvez a menina mais rica da urbe.
O que era o barro e por que era pago: segundo a tradição quando algum rapaz não da aldeia se enamorava de alguma rapariga ali nascida, devia pagar aos rapazes em idade de poderem constituir família, um cântaro de vinho, “o tal barro” como tributo! Se a rapariga nasceu e cresceu na aldeia e ia ser levada, ou não, pois podiam ficar a viver lá, devia contribuir com o que seria o valor do barro de um cântaro, por isso era partido depois de bebido o conteúdo. A origem deve perder-se no tempo, mas tudo leva a crer que será uma tradição adaptada do tributo pago ou devido pelo noivo aos pais da noiva e que ainda hoje é praticado por algumas tribos de Africa. Poderá também ser de origem feudal, mais recente portanto, em que o senhor era dono do feudo e de quem lá habitava e trabalhava! Se perdia para outro feudo um dos seus, teria de ser ressarcido. Mas tudo isto são conjeturas que valor algum não terão e se tentarmos aplicar a Castelo Melhor, onde ainda restavam exemplos vários da vivência comunitária, o tributo devido à comunidade era assim cobrado: “ levas o cântaro mas pagas o barro”!
Ainda participei, como curioso assistente, numa dessas arruaças, já pela noite dentro, esperando que o resistente ao pagamento passasse em direcção a Almendra, de bicicleta e confesso que não gostei nada, mesmo que se não tenha consumado o castigo de lhe abrir a braguilha e enfiar barro pela abertura! Os que podiam quase se ofereciam para pagar, mas nem todos podiam e tentavam fugir, ao que hoje seria ao fisco!
Por pouco me esquecia do senhor Aníbal Soares, que era de Almendra, outra aldeia a escassos quilómetros para sudeste!
Era, segundo as vozes que circulavam, o maior empresário industrial da região e contra essa versão não levantarei qualquer dúvida. Todas as indústrias estavam ligadas, direta ou indiretamente, aos produtos agrícolas: lagares para extração do azeite, moagens para a produção da farinha, e depois a das massas alimentares, sendo a mais conhecida a das massas Vouga, com grande aceitação no mercado como confirmei mais tarde em Lisboa, quando fui “aviador de balcão”, mais conhecido por marçano! O slogan usado na altura para publicitar o produto, inscrito na embalagem, era : “ O nome das Massas Vouga chega a toda a parte, as Massas é que não chegam por que não chegam”!
Tinha, pelo menos uma fábrica de sabão, na região do Minho, para aproveitar os resíduos do azeite, um pouco como faziam as pessoas da aldeia, artesanalmente, adicionando soda ao composto dos resíduos recuperados.
Do casamento com a Dona Maria, o Albuquerque foi sendo esquecido, nasceu apenas um filho, que mal conheci e a quem sempre ouvi nomear por doutor Zeca, licenciado em economia e finanças que faria parte da direcção da Companhia de Seguros Soberana, sendo o grupo da família Soares um dos principais acionistas.
Como do senhor Aníbal Soares nunca constou que, como o senhor José Madeira, tivesse o lagarto de dois rabos que lhe indicasse os caminhos da fortuna, bem maior que a deste, os crentes do costume e invejosos crónicos, não o isentaram de responsabilidades, atribuindo-lhe artes e negócios com o belzebu, sobretudo a partir da época da guerra, a Segunda e pós guerra, quando ele mandou construir um conjunto habitacional requintado na então e ainda hoje Quinta do Custódio.
Tinha uma área murada, sobressaindo no ponto mais alto da colina, o palacete, com garagens e lagar e adega nos dois pisos inferiores e no terceiro a moradia, ampla, toda construída com materiais da região, o xisto e o granito, com um largo espaço cimentado em frente, para onde abria a entrada principal, virada a nascente.
Mo perímetro destinado às habitações, a uns escassos metros do terraço, estavam a casa dos caseiros, os estábulos, as alfaias agrícolas e um pouco mais abaixo a eira para a debulha do trigo e outros cereais e logo a seguir, colada a esta eira uma cisterna, com cerca de dois metros de profundidade, para onde eram empurrados os excedentes de palha do trigo ou cevada e onde iam ser despejados, através de canalização, as águas da chuva e dos sanitários, bem como dos currais e estábulo dos animais, transformando tudo, de forma natural, em estrume para adubar pomares, hortas e outros terrenos; ou seja, nada era desaproveitado, aplicando ao espaço e sua utilização o mesmo critério que na sua vida industrial aplicava.
O pomar de citrinos deve ter obedecido a regras estudadas, com plantas de porte baixo, mas robustas, produziam frutos que a família consumia e o excedente devia ser comercializado no Porto, o que duvido.
A vinha começou a ser plantada em terrenos pré-definidos, sendo o terreno saibrado nas meias encostas de solo quase sem terras à superfície. O mesmo se passou com o olival, que foi aumentando conforme ia comprando terrenos que confinavam com os já da família, criando desse modo um perímetro regular para a propriedade total, assim crescendo a área do olival.
A certa altura constou que o senhor Aníbal tivera um acidente de viação à saída do Porto, quando se deslocava de carro com a esposa e o motorista, com destino a Castelo Melhor.
Era Inverno, a estrada tinha ainda geada não derretida em alguns pontos, numa curva para a esquerda o motorista a não conseguir controlar o veículo, resvalando em direção à faixa esquerda sem controlo. A curva da estrada delimitava uma ribanceira de vários metros para a qual o carro se encaminhava, apesar do esforço do motorista. Consta que o senhor Aníbal ao pressentir que o carro e seus ocupantes ia mesmo precipitar-se para o fundo da ribanceira, se terá virado para abraçar a esposa. Foi nesse momento que o embate se deu: o motorista de um autocarro de passageiros que vinha em sentido contrário, apercebendo-se do que iria suceder ao carro dentro de segundos, propositadamente embateu com a parte esquerda do autocarro na zona do farol do automóvel, projetando-o para a faixa de onde vinha resvalando.
Do embate resultou, para além dos danos materiais nos dois veículos, pequenas escoriações no motorista do automóvel e o senhor Aníbal terá fraturado os ossos da bacia e cabeça do fémur, tendo sido assistido no Porto e dias depois, a seu pedido, partiu para Inglaterra onde foi operado; desde aí passou a andar sempre apoiado numa moleta concebida para ser aberta e funcionar como cadeira para descansar.
O motorista do camião, tido como salvador dos ocupantes do automóvel e recompensado pelo senhor Aníbal.
Foi sempre tido como temperamental e da fama devia ter tirado algum proveito, por não ser com festinhas e só boas maneiras que se chega ao patamar da vida em que se encontrava em termos patrimoniais.
Tal como eu, após a saída da escola, fiz duas safras no lagar, também o meu irmão mais velho, o João Amílcar, lá trabalhou. Numa das visitas que o senhor Aníbal sempre fazia ao lagar de que era socio com o seu cunhado e meu padrinho, terá feito algum reparo ao João Amílcar, temperamental também, a conversa deve ter azedado, o senhor Aníbal bateu com a moleta no meu irmão e este lhe atirou com o cincho da prensa que tinha nas mãos! Felizmente o senhor Aníbal não foi atingido e só o cincho ficou em bocados. Este incidente de que ouvi falar a um dos familiares serve apenas para corroborar: a fama de temperamental do industrial e o destemor do trabalhador João Amílcar. Nada mais do que isto.
Só o pormenor de, anos mais tarde, já casado o João Amílcar, foi contratado para trabalhar na Fábrica das Massa Vouga, directamente pelo senhor Aníbal. Da minha lavra acrescento que o senhor Aníbal terá ficado de olho no João e pensado “ este é cá dos meus” e daí o contrato.
Algum tempo depois, já casado também, com a filha mais velha do caseiro da Quinta do Custódio, foi o meu imediato anterior irmão, o Ernesto, trabalhar para a fábrica de refinação de azeite e extracção de óleo que a família Soares tinha a funcionar há não muitos anos, deixando a responsabilidade das vinhas que tinha na Quinta.
Esta fábrica, anos mais tarde, já falecido o senhor Aníbal, foi comprada pela empresa que criou e desenvolveu a marca do óleo alimentar “três ás – AAA- que acabou por desaparecer, anos depois do 25 de Abril, durante o período de encerramento de fábricas.
A morte do senhor Aníbal veio ditar o destino das empresas, que foram falindo progressivamente.
Do meu tempo de Lisboa me recordo das Massas Vouga e do seu tema publicitário, do óleo AAA foi muitos anos depois, como disse antes como também antes ficou registado.
Este senhor Aníbal deve ter um historial riquíssimo, certamente mais rico que a sua fortuna, mas esse historial não o conheço e fazer ficção só para encher páginas, não é minha intenção, não tenho tempo, nem saber, nem vocação para do real fazer ficção.

Reis Caçote
Dig/09/01/14



A SENHORA AMÉLIA CAÇOTE

                                                 I

A senhora Amélia Caçote era a única tia-avó que conheci; era a única irmã do meu avô materno, Joaquim dos Reis Caçote, que nunca conheci, tal como o avô paterno. Do avô Joaquim usurpei os apelidos, que têm servido de refúgio e álibi às minhas debilidades “artísticas” a partir do momento em que pensei parar e de seguida nelas insisti, na convicção de ainda assim aprender alguma coisa.
Sendo pouca a quantidade e fraca a qualidade do que fizera, atrevo-me a garantir que, se o tivesse conhecido, seriam inevitavelmente diferentes as referências que dele me chegaram, mais “lendas” que feitos reais! Mas é assim que dele gosto, misto de realidade e lenda, sem desenho ou retrato, apenas imaginação.
Algo me diz que teríamos feito amizade, avô Joaquim, se em vez de te exilares no Brasil, sim, por que tu não emigraste, viraste costas, para manteres inteiras a estatura física e verticalidade intelectual!
Quem não teme cobras, do tamanho daquela de que tantos fugiram e tu cortaste a meio com um só golpe de roçadoira, lá no moinho que seria já património de tua irmã Amélia, a quem dedico este breve apontamento; e quem, senão tu, alguma vez daria aos dois cães os simbólicos e belos nomes de “Vale quem tem” a um e “Massaroca” ao outro, mesmo que uns neguem e outros encolham os ombros, tu estavas, à tua maneira, a fazer critica social e caracterizar a forma menos ortodoxa e, logo, menos orgulhosa de comportamento da linhagem moral dos Caçotes anteriores, usada pela tua irmã e minha tia-avó Amélia Caçote, de quem passarei de imediato a discorrer. Ou talvez não já!
Façamos de conta (e é o que tenho feito quase toda a vida, avô Joaquim) que é uma carta para ti, lá no outro lado do mar Atlântico, em terras de Santa Cruz, que o Pedro Alvares Cabral encontrara, uns séculos antes de tu e eu termos nascido, mais eu que tu; se a carta chegar a tempo, o que seria a descoberta mais espantosa deste século XXI, não te espantes por te tratar com esta “falta de respeito”! Não é só uma modernice de linguagem no nosso caso, no meu caso, é sobretudo o resultado da íntima relação que venho estabelecendo com a imagem que de ti me chegou distorcida, que sempre me pareceu mal tratada e que eu tenho vindo a tentar limpar e um dia polirei, se achar que vale a pena, mas penso que não vale! Devido a esta proximidade da tua ausência e a forma como te conheço já, sei que não ficarás zangado pela forma de tratamento.
Sem qualquer intenção delatora e apenas para que “vivas” tranquila a tua eternidade, ficas a saber que os teus quatro netos, meus irmãos, filhos da tua filha Amélia, não têm de ti uma imagem imaculada e eu os tento compreender quando a ti se referem em termos menos conciliadores e te acusam de abandonar a avó Josefa com quatro filhos pequenos e partires para tão longe, como se nessa época alguma distância fosse pequena, tendo como exemplo o que hoje leva dez minutos a percorrer, do nosso Castelo Melhor à sede do concelho, Foz Côa, levava então e durante muitos anos, nada menos que duas horas para boas pernas e bom calçado! Os outros netos, o Acácio, filho da tua filha Meliana, que muitos anos depois foram ter com o marido e pai ao País que já te teria assimilado, com algum azar a acompanhá-los, lá na cidade do Cristo Rei, ou do Corcovado, já que o Acácio morreu num acidente de viação, atropelado por um automóvel quando desceu de um bonde fora do local de paragem, só dele recordo a cor ruiva do seu cabelo e o seu forte pontapé na bola que ia de uma baliza à outra e sobre o que ele ou a tia Meliana diziam sobre teu comportamento; os meus primos, teus netos também, filhos da outra tua filha, a Filomena, a Valentina casou por procuração com um dos filhos de Castelo Melhor que estava em Angola há alguns anos e morreu de parto não recordo quanto tempo depois de ter ido ter com o marido; a Julieta foi um tempo para a Guarda para tirar um curso que a autorizava a dar aulas aos miúdos da primária, penso que se chamava Regente Escolar; veio de lá sem a trança e o pai, o ti Zé Bregas, fez uma algazarra sem jeito, mas depois acabou por se habituar, pois era já moda em muitas outras localidades do País, sobretudo nas cidades. De Castelo Melhor recordo quase só as tareias que me dava quando eu não me portava bem e isso era o que eu fazia com mais vontade: portar mal! Depois foi em Luanda, andava eu por lá à espera da minha guerra, quando ela anunciou a sua vinda lá do interior para consultar um oftalmologista. Dei o apoio que podia, ela andava já muito zangada com o ordenado dos graduados da guerra, que nada faziam e ganhavam um dinheirão; coisas da guerra. Não a vi mais e só dela ouvi falar, nada bem por sinal, quando regressou, naquela onda de abandono das colónias com a independência, em que uns eram retornados, outros refugiados e até um encontrei que, talvez para dar nas vistas, se afirmava devolvido, isto ouvi eu numa sessão de esclarecimento numa freguesia do concelho de Leiria, e deve ter sido a última vez que se auto distinguiu, pois logo abandonou a sala quando lhe respondi que as devoluções mais frequentes eram por a mercadoria não servir ou por estar fora de prazo! A Julieta foi casar com o cunhado, de acordo entre eles; o Norberto, mais novo do que eu, deve ter deixado a escola já depois de eu ter ido para Lisboa, dele nada sabendo a não ser que vive no Porto, parece que bem, ainda bem. Os dois filhos do teu único filho homem, o ti Zé Caçote, o Flávio e o Gilberto, o primeiro, talvez um ano mais novo que eu, deve ter herdado do pai uma intuição apurada para tudo o que eram maquinas e seu funcionamento e que a escola deu seu o impulso que faltava. Correu mundo a instalar fornos para cerâmicas e não sei se também para o vidro; tão depressa estava na Argentina como dias depois era na África do Sul! Soube pelo teu filho esta grande aventura do teu neto. Terá feito fortuna, comprou casa no Algarve onde instalou a família e um acidente o levou antes de tempo, mas o passaporte dele para a vida, tal como o de todos, não tinha prazo de validade, a hora chegou e quando ela chega nada há a fazer; nunca mais vi o Flávio. O mais novo, o Gilberto, depois de ter organizado a vida no Porto, quando o teu filho faleceu e já não restava mais ninguém, voltou a Castelo Melhor e gerir o que era património da família. Visitei-o em Agosto de dois mil e nove, quando lá estive com uma amiga portuguesa, a viver na Alemanha desde mil novecentos e noventa e dois, onde casou e me tem proporcionado umas férias bem agradáveis num mundo diferente! Casou com um engenheiro alemão, dois anos mais novo que ela, estão bem e dão-se bem! Sempre mostrou, essa amiga que conheci na Marinha Grande quando ela tinha dez anos, desde que comecei a passar férias na Alemanha sempre mostrou curiosidade em conhecer a nossa aldeia e assim lá fomos, visitámos a tua neta e minha única irmã, Maria Juliana, ela e eu é o que resta da família, a residir num Lar para idosos, que a Santa Casa da Misericórdia ali explora ou mantém, em Foz Côa, hoje já cidade. Almoçámos os três e a convencemos a ir connosco para podermos ver as nossas mansões geminadas, a casa onde nasci e a outra da Maria Juliana. E, claro, uma parte da aldeia, sob um calor de rachar, nesse dia exagerado, não fomos ao Castelo nem à novidade que vais agora saber: as Gravuras rupestres, junto ao Côa, a montante do moinho da cobra que terás partido em duas, e são uns riscos profundos na face plana das fragas, representando animais que deviam andar por ali e que agora se cansaram e se puseram a mexer, como nós fizemos. Dizem que os riscos têm mais de trinta mil anos e eu não faço questão de acreditar, não os vi fazer, nem os vi nunca em nenhuma das vezes que ali passei algum tempo e nunca ouvi alguém mais velho falar dos desenhos. Como disse antes fui visitar o Gilberto, que estava óptimo, andava a ampliar a casa que foi da família, depois de ter restaurado o antes existente. Recebeu-me bem, e fez questão de oferecer à minha companheira de viagem uma garrafa de licor de amêndoa, que ainda ajudei a beber, no ano seguinte, quando estive em casa deles, em Heidenheim.
Como a carta vai longa, embora gostasse de te dar outras novidades, mas era da tua mana, a Amélia Caçote, que eu estava a falar e o farei quase de seguida, depois de deixar esta pequena” jóia literária”! Vamos supor que a alma existe, como alguns o garantem e eu não creio nessa existência, e nesta suposição a tua alma de velha lenda, recebia estes considerandos e os lia! Vejo teu sorriso sábio e irónico, como o do teu único filho português (já que do Brasil as notícias eram poucas e todas mais velhas que eu, ia para escrever filho legitimo e não o fiz por uma questão de formação), o tio José Caçote e dizeres, para nada porque não faço a mínima ideia com quem as almas falarão: “este meu neto deve ter uma pancada razoável” e dobravas o papel e o metias num dos bolsos da alma!

                                                 II

Ao ver esse sorriso irónico sobre a parte que te dediquei e como da tia Amélia Caçote também só a alma andará por aí e partindo do principio que vossas almas não se encontraram em alguma reunião das almas, reunião de família e ele te tenha contado, decidi que ia continuar a carta ou escrever uma revisão suplementar do que já sabes.
Então é assim, caríssimo avô Joaquim:
Quando nasci tua irmã, Amélia Caçote era já uma respeitável e respeitada senhora, com cerca de sessenta anos de idade, sofrendo de uma doença que na época teria uma nome que não recordo e que actualmente é designada por “obesidade mórbida”, não será o nome clinico. Tinha já um volume imponente, a massa adiposa vinha desde o pescoço até cobrir os sapatos.
Via-a quase sempre sentada, à janela de sua casa, talvez a mais bonita da aldeia, situada do lado esquerdo, no início da Cascalheira, e que alguém recentemente alterou e sua beleza anulou. Gostos de modernidade.
Daquela janela do primeiro andar ela via, sem se mexer no cadeirão, a tua sobrinha Cecília, casado com o senhor Cassiano de Albuquerque e minha madrinha de registo, na casa do lado direito da Cascalheira também, onde moraram vários anos, muando-se depois para a casa grande da família Albuquerque, na Rua Larga, quando a tua sobrinha-neta Noémia, única filha do casal, atingiu a maioridade e ficou ela a utilizar a casa, com uma empregada ao serviço.
Só um pequeno aparte que, por inédito, não podia esquecer de te contar:
- terá sido no ano de quarenta e oito ou nove, estava na terceira ou quarta classe, quando o senhor Bispo da Guarda, pela primeira e única vez, foi visitar o seu rebanho (era assim que estava escrito na faixa que encimava um pequeno púlpito montado no inicio da Cascalheira, entre a casa da tua irmã Amélia e a que a Noémia veio ocupar) de Castelo Melhor, o dos Pimpões, subindo a Cascalheira no jeep da Guarda Republicana. Subiu e no mesmo dia desceu, às pressas, no jeep em que chegara, com as ovelhas revoltadas a atirar-lhe calhaus! É verdade, eu estava lá!
Mas, como estava dizendo, ainda sem se mover do seu cadeirão, a tua mana podia ver a outra filha, a Mariquinhas, que morava e nunca terá mudado, na casa de dois pisos, grande também e que fica mesmo em frente à Cascalheira, ocupando o espaço entre duas ruas que se juntam uns cinquenta metros atrás formando um triangulo onde funcionava a queijaria e cozinha e num patamar mais elevado era o terraço para secar a amêndoa ou cereais já prontos a ensacar.
Como já disse antes o senhor José Patrício, teu sobrinho afim por ter casado com a tua sobrinha Mariquinhas, era de Algodres, nada tendo a ver com a família dos Patrícios de Castelo Melhor, bem conhecida também, como outras o eram e ainda serão; destas e outras famílias já nada resta, este é o inexorável caminho da história, das pessoas e de algumas coisas: nascem, crescem ou não e morrem de certeza!
A tia Amélia Caçote, tua irmã, herdeira de duas pequenas ou médias fortunas, vindas dos dois casamentos com viúvos que, ou não tinham descendentes directos ou as leis de então não permitiam o acesso a heranças, terá sido ela a herdeira universal, após a morte de cada um dos dois esposos, convertendo-se na viúva mais abastada da aldeia.
Terá havido uma situação irregular na forma como uma das quintas foi juntar-se às anteriores, adquirida em hasta pública na sede da Comarca, ou seja em Figueira de Castelo Rodrigo por um dos maridos da tua irmã, mas com dinheiros e por encomenda do parente da família, mas isto são pormenores que apenas põem em causa aquilo que na época e durante muitos anos fez lei: a palavra dada.
E como mais tarde as famílias se juntaram pelo casamento ou até já estariam juntas, só um dos herdeiros poderá ter sido prejudicado.
                                                 III

A minha tia-avó, senhora Amélia Caçote, assumiu a postura de senhora “feudal” distribuindo alguns favores e colhendo os rendimentos inerentes.
Habitava, com uma criada, a tal casa mais bonita da aldeia, como já disse e agora modificada para o feio, como também já disse, há muitos anos e da sua janela vai recebendo, de manhã ao anoitecer, os cumprimentos reverentes dos conterrâneos, sobretudo das mulheres, por ali terem que passar a caminho da fonte.
Da sua janela vai sabendo o que se passa, que não se esquece de perguntar; também ali têm que passar todos os que vão a caminho de Almendra ou da Figueira; só os que vão para Foz Côa, a pé, a cavalo ou de comboio é que não passam em frente à janela. Só estou com estes pormenores contigo porque não sei como o mecanismo da alma funciona, se esquece tudo ou não.
Nem todos gostam da tua mana o que é perfeitamente natural, como natural é ela não gostar de todos.
Nas suas arcas, bem conservadas, há roupas do final do século XIX e anteriores e que durante algum tempo voltaram à luz do dia quando, os teus sobrinhos-netos, Álvaro e Reinaldo, numas das suas férias, decidiram recriar o Pedro e Inês da história de Portugal em forma teatral.
Eu, confesso, nunca morri de amores pela tia-avó Amélia Caçote; visitava-a com a regularidade de quem passa e só tive acesso ao andar cimeiro na companhia dos netos referidos e foi então que admirei o seu recheio, sobretudo um gramofone Master Voice, de trabalhado funil ampliador de som, mas nunca o ouvi tocar.
A certa altura, já a escola tinha terminado há um ano ou dois, estava a jogar aos feijões com os teus outros netos, Flávio e Gilberto, filhos do teu único filho homem, o ti Zá Caçote, mesmo por debaixo da janela da tua irmã; assomou-se e de lá atirou uma moeda para cada um dos outros teus netos e para mim atirou um recado: “ tu não precisas, pois ganhas muito dinheiro no minério”!
Grande injustiça! Se alguém nunca soube quanto terei ganho no rebusco do minério, se foi muito ou pouco, esse alguém fui eu, por estranho que possa parecer, mas é a realidade. Nunca pensei no assunto, como hoje o faço em relação a uma quantidade de outras coisas.
Ainda hoje me interrogo sobre qual terá sido a fórmula encontrada para que os três companheiros do rabisco ou rebusco fumassem um maço de cigarros Definitivos por dia, sempre às escondidas dos mais velhos, lá nos campos do Seixo e nos ribeiros em redor, onde lavávamos as terras! E digo que não sei porque nunca a minha mãe, tua filha Amélia, gestora financeira da família, me deu dinheiro algum, excepto uma vez e com um fim especifico: comprar uma gaita – de- beiços, mais conhecido naquelas bandas por realejo e que logo perdi, numa noite de sustos no caminho de Almendra para Castelo Melhor.
Por isso estou hoje convencido de que sempre andei a fumar por conta dos colegas! Colegas sim, não sócios, numa atitude de crava que hoje rejeitaria por princípio.
A partir desse dia de julgamento primário, hoje lhe chamaria sumário, a tua mana Amélia, lá do alto da janela, desceu uma quantidade de pontos na escala da minha reduzida estima!
As visitas passaram a ser só as indispensáveis e ficou muito claro este estado de alma (agora somos duas almas, uma ouvindo outra falando),quando lhe disse muito obrigado, mas não aceito, quando quis arranjar-me casamento com uma de duas raparigas solteiras e que para ela, casamenteira, a rapariga estaria ao nível do meu “estatuto social”, ambas bastante mais velhas que eu. Como resposta ouvi o recado da frustrada tentativa: “és pobre e mal -agradecido”, dito com voz fingindo ofensa! Esta cena passou-se em casa dela, numa das minhas férias passadas em Castelo Melhor.
Assim me lembrei do conflito familiar criado pelo teu neto mais velho, o João Amílcar, meu irmão, ao encarregar a nossa mãe e tua filha, estava ele quase a terminar o serviço militar, para ver se lhe arranjava uma noiva para casar quando voltasse.
A tua filha e nossa mãe acordou com a “casamenteira oficial”, paga com uma fanega de trigo logo que o acordo foi firmado. Só que o João Amílcar não respeitou, enamorando-se de outra que veio a ser sua esposa. Ficou proibido de entrar em casa e nenhum dos irmãos e pais iriam ao seu casamento, assim como não receberia o enxoval habitual aos noivos, que não descrevo por me parecer assunto de “lana caprina” e não o conhecer por inteiro.
Só alguns anos mais é que eu servi de intermediário inocente para a reconciliação familiar, resolvido a bem e a contento de todos.
O meu conflito com a tia-avó Amélia Caçote, tua irmã, é que nunca foi sanado!
Deves estar pelos cabelos, como é hábito dizer-se quando se está farto de aturar alguém, mas no nosso caso não sei se é aplicável uma vez que não sei se a alma tem cabelo e ainda não sei como se dá um abraço de despedida à alma, não sendo grave por não gostar de despedidas ficando assim, se estiveres de acordo
Um dia nos encontraremos e esquecidos deste encontro um pouco estranho, mas agradável: até sempre, avô Joaquim dos Reis Caçote!

Reis Caçote
Dig/13/01/13



                    É A VEZ DOS TI’S E DAS TIA’S DE
                              CASTELO MELHOR


Como é de supor, Castelo Melhor não fugiu à regra das outras urbes, pequenas ou grandes. Havia muitos mais ti’s do que Senhores! E se alguma fugiu à regra só pode ter sido de uma destas formas, apenas três por não ter tido tempo de aceitar outras:

Primeira – ou o senhor se instalou primeiro, mal ou bem e partiu depois a buscar os que lhe iriam tratar das terras, os ti’s necessários, mas por certo mais que um, senão podia ser complicado, um amo e um escrevo! Não era aconselhável e todos perceberão porquê! É só uma questão de segurança, mas havia outras, a doença ou morte do escravo. Passemos, portanto à

Segunda – ou então o senhor, sanguinário e louco, ou louco primeiro e depois sanguinário, se é uma coisa por certo também é outra, com as armas e um bom aliado, bom não é no sentido da bondade, resolve desfazer-se dos restantes ti’s que o temiam e fica, uma vez a tarefa acabada, só ele senhor e o bom escravo! E lá volta a colocar-se a dificuldade da primeira hipotética forma, ou seja, qua dos dois ficava, sabendo o senhor que o bom Ti que restava, vendo o que se passou com os outros e temendo que, noutro acesso de fúria, o Senhor o avaria a ele, resolve adiantar-se e, zás, lá vai o Senhor! Só que o Ti, agora sozinho, sem senhor ou dono das terras, concluiu que ele, afinal, sem que tivesse pensado nisso, toma posse “administrativa” (esta é de agora, não daquele tempo) das terras e passa a ser ele o Senhor! Senhor, mas sozinho, como no início da primeira das formas, logo, tem que repetir tudo, mas isto é hipótese que ele, e eu, não iremos repetir! Vamos, então, à

Terceira – ou ainda, como pode muito bem suceder em Castelo Melhor, a curto prazo; os velhos Senhores e os velhos Ti’s já foram desta p’ra melhor, muitos dos Ti’s ainda vivos, porque mais novos, deram à sola, ou para cidades migrando, como eu e a maioria dos da minha geração e seguintes e outros, que à primeira pertenceram, acertaram com os vários caminhos para a estranja, emigrando e em Castelo Melhor hoje, só estão meia dúzia (meia dúzia é uma maneira de dizer) de Senhores e de Ti’s, cada vez olhando mais desconfiados uns para os outros e a botar contas à vida, a ver quem a vida vai deixar primeiro! E poderá muito bem, muito bem não, suceder que o último possa ser um Ti qualquer, que decide não querer ser senhor, até por falta de hábito e habituar-se já não vale a pena, decide zarpar para outro lado, virando costas a tudo, como fizeram os antigos do Castelo Calabre que vieram a fundar Castelo Melhor.
Mas o que eu queria mesmo registar e pelo andar da carruagem digital nunca mais faço, eram os Ti’s, só alguns, lá da aldeia, até por que os Senhores, porque o são, foram os primeiros, sendo natural, mesmo sendo menos, que um ou outro escapasse, mas a ideia inicial era serem todos, mas não passava de intenção, porque podia deixar alguns de livre vontade ou esquecimento, por não ter nenhum compromisso a não ser comigo, podia a qualquer momento decidir não escrever sobre ele, mas como a todos eles o passaporte sem prazo de validade que lhe foi dado para a vida terminou já, não corro o risco de algum em falta poder vir a reclamar!
Vamos lá aos Ti’s e Ti’as e deixemo-nos de conversa fiada! Quem vai ser o primeiro ou a primeira? Uma? Vamos a ela:

                                                 I

A TI LAURA, DE ALCUNHA “BORRINHA”

E digo que será alcunha por não acreditar que alguém, no seu perfeito juízo, fosse dar tal sobrenome ou apelido à Ti Laura.
Morava na Rua debaixo, junto ao ribeiro, agora esgoto, a menos de cinquenta metros da casa onde nasci e sempre vivi até me enviarem para Lisboa. Seria a Tia Laura da idade da minha mãe e tinha, se não estiver errado, três filhos, o mais velho de nome André.
O rapaz era tão bem comportado como os outros da sua idade, até melhor do que outros e passava a vida a brincar perto de casa, com os irmãos mais novos e os primos que moravam na casa ao lado da deles.
A Tia Laura, nunca percebi porquê, cada vez que se lembrava, fosse a que hora do dia ou até da noite fosse, chegava à janela e com um volume de voz impressionante (que beleza no canto lírico!) gritava
                         “ Oh, André Lopes Gastalho!”
Era este o nome completo do rapaz e ninguém podia naquela época ter mais de nome e dois apelidos ou, como era o meu caso, dois nomes e um apelido, o do Pai como a legislação devia impor; no caso do André o Lopes seria da Mãe que gritava e o Gastalho do Pai que ouvia e tapava os ouvidos, tal como ele e os que se encontrassem nas proximidades. A maioria das vezes o André estava mesmo por debaixo da janela, mas o grito-chamamento era sempre igual.
E aldeia, daquele lado, ou uma boa parte dela, com as galinhas a cacarejar e os cães a ganir ou ladrar, murmurava: lá está a tia Laura Borrinha a chamar o filho mais velho!
Nunca percebi, nem lhe perguntei (é o perguntas!?) por que era o André o único filho a beneficiar daquele brado e os outros filhos não eram gritados, eram normalmente chamados! Seria o André um privilegiado da sorte ou um azarento dela?
Muitos murmuravam que o grito era contra o Gastalho pai, mas nunca ia além do murmúrio.
Penso que nem o André alguma vez percebeu o porquê daquele chamado!

Reis Caçote
Dig/14/04/2014


O TI FERNANDES, poa alcunha “QUEBRA LINHAS”

                                                 I

Era um dos alfaiates da aldeia, não o mais procurado, talvez por ser um pouco trapalhão, e certamente a alcunha vinha dessa qualidade ou falta dela.
Se bom alfaiate não era, noutras artes era um desastre completo!
De tudo ele dizia saber fazer e alguma faria melhor que a maioria, mas dessas não irei falar, por não me lembrar delas e porque devo ter adquirido o mau hábito, comum a muito boa gente, o que nem é o meu caso, de só falarem do que alguém faz mal.
E nem vala a pena pensar, a título de exemplo, dos governos e das oposições e menos ainda naquela época em que só havia governo! Oposição, não, dizia-se.
O ti quebra-linhas seria hoje um cidadão atualizadíssimo, por ter uma auto-estima incomparável! Tudo sabia fazer e bem, dizia ele.
A certa altura convenceu os conterrâneos de que era um exímio matador de porcos, dum só golpe o animal era sangrado e nem tinha tempo de sofrer! Isto seria um grande avanço na arte de matador uma vez que até ali nenhum dos contratados conhecidos conseguiram sangrar os animais de modo a que não fizessem aqueles gritos horrorosos de quem se apercebe que está a um passo da morte, não seria este o caso dos atados porcos, animais de pouca ou nenhuma inteligência.
Na matança que um seu familiar preparava e tendo em conta o apegado saber do seu familiar, há que convidá-lo, pois até ficaria mal se o não fizesse!
As matanças eram logo pela manhã, para dar tempo de tudo preparar antes e depois da matança era lavar as tripas do bácoro já sem vida e aberto de alto- a- baixo ou seria de baixo a alto, já que o cadáver estava agora pendurado de cabeça para baixo, preso pelos tendões das patas traseiras e com o focinho dentro de um alguidar de barro esmaltado, a aparar o sangue qua ainda ficara espalhado pelos órgãos e que não saiu todo na sangria que lhe provocara a morte, talvez paralisado de medo nas veias, e que iria servir para o serrabulho que o pessoal ajudante iria comer. Todo o outro seria mais tarde aplicado nas morcelas.
Estive, como é bom de ver, a falar do ritual da matança, sem grandes pormenores que em nada melhorariam o texto e a ninguém aproveitaria, já que hoje se vai ao talho e do porco se compram as febras, o lombo as costeletas, o entrecosto, o fígado para as iscas, os rins, o chispe e cabeça para o cosido à portuguesa, mesmo que em Espanha seja feito. As duas patas de trás vão ser tratadas com sal e deixadas a enxugar (curar, se chama) e depois adquire o nome e o sabor requintado de presunto. A indústria chama abate à matança e aproveita tudo, o pêlo é que não é aproveitado, mas parece que em tempos foi, pelo menos de alguns, com cabelo à punk e que era depois nomeado por cerdas, bem úteis para os sapateiros enrolarem na ponta da linha e facilitar a passagem pelo buraco feito tela sovela. Deve faltar muito pormenor, mas quem quiser conhecer, tim-tim por tim-tim a matança do princípio ao fim, vai a uma das muitas que são feitas para turista ver e para televisão filmar, mas só mostrar o que não é suscetível de causar algum desagrado aos mais sensíveis.
Quando o ti Fernandes chegou ao local da matança, com suas armas de morte, um grande facalhão que estivera a afiar cuidadosamente momentos antes, já o cevado estava deitado de lado e bem atado ao banco da madeira bem grossa, ainda agarrado por quatro ou mais homens para que o banco se não desequilibrasse e tombasse com o porco aos berros que parecia que o queriam matar e não se enganava; o mestre na arte de matar sem dor rapou os pelos numa pequena área que ele sabia ser a apropriada, entre as patas da frente e virando-se para os ajudantes “segurem-no bem”, enfiou o facalhão até ao cabo no corpo do animal, que aumentou os gritos e esperneou com tal força que os ajudantes se viam e desejavam para o segurar! Deve ter sido quando o porco se convenceu de que iria mesmo ser assassinado! Era um barulho ensurdecedor!
Mas o sangue que devia ser em golfadas pelo cabo da faca não apareceu, só o cevado continuava aos berros e o te Fernandes a tirar a faca e enterra-la, mas nada de sangue vindo do coração, apenas aquele que das veias e artérias superficiais mal sujava o cabo da faca!
Terceira tentativa e novo fracasso sucedeu, com ao ajudantes a olharem-se e o animal nos seus gritos agora um pouco roucos, parecia dizer ao ti Fernandes “ por favor, acabe de uma vez com isto”! O alarido foi tal e durou tanto tempo que a vizinhança, habituada a ouvir matanças, achou que algo não corria bem e começaram uns a ficar preocupados e outros com pena do desgraçado, mas logo se lembraram do que aprenderam de ouvirem dizer “não se pode dizer coitadinho ou outra expressão que revelasse dó, porque demorava mais tempo a morrer o animal, fosse porco, cabrito ou galo e esqueciam os gritos do porco” Aquele aparato fracassado levou alguns vizinhos a pensar que o dia da morte ainda não tinha chegado!
Um dos “ajudas”, como nas touradas, estava já farto de perceber o sofrimento do bicho, largou a pata que lhe calhara das duas traseiras, deu um encontrão no ti Fernandes que este quase se estendia ao comprido, pegou no cabo da faca e de um só golpe atingiu o coração do cevado que estava era a ser sovado, o sangue jorrou com força e os berros da vitima começaram a ficar roucos e mais fracos conforme o sangue ia correndo para o alguidar já com vinagre no fundo.
Os berros foram ficando mais roucos e espaçados e uns minutos passados ficou sossegadinho e calado! Deve ter sido quando entregou a alma ao criador, mas este não deve ter sequer dado por isso, queria era ver o porco chamuscado e bem rapado, pendurado junto da salgadeira.
O ti Fernandes devia ir esclarecer o que correu mal, mas o ajuda que acabou por fazer o que ele, ti Quebra linhas não fez, disse-lhe com firmeza: oh, homem, vá lá para as suas agulhas, tesouras e dedais e não se meta a fazer o que não sabe! E o ti Fernandes, lá partiu, como cão “com o rabo entre as pernas” a pensar em novas sabedorias!
Assim se iniciou uma nova carreira profissional que logo terminou, mas podia ter sido auspiciosa!
                                                

                                                 II

Por razões que terão a ver com o custo da deslocação e estadia, ou pode muito bem ter sido por doença ou outra qualquer razão, o fogueteiro para a festa do Anjo, aquele da lenda, recordam-se? Não apareceu.
Mas como lançar os foguetes, mal ou bem, havia sempre quem o fizesse e alguns, não sendo profissionais de pirotecnia, faziam-no na perfeição, não foguetes dos que estamos a falar, mas dos outros, menos barulhentos, mas não menos perigosos! Dizia-se que, na falta de fogueteiro, houve voluntários para os deixar ir; na aldeia, à alvorada e depois, nas pausas das cerimónias religiosas, depois na romaria pela encosta (mas que grande estirão!), com os andores aos solavancos, tem-te-não-caias, naquele caso era tem-te-santo não caias do andor, as bandeiras e o estandarte que só os mais fortes levavam e alguns para dar nas vistas experimentava, mas à primeira sacudidela de vento era vê-los aos trambolhões, de estandarte já sozinho e quietinho no chão, a gargalhada abafada porque iam na procissão. Quando havia mesmo vento não havia exibicionistas, eram mesmo dos ou três de músculos treinados no ginásio ao ar livre e enxada ou picareta a servir de aparelhos, quem se encarregava do estandarte até ao alto do monte do Anjo, onde vento nunca faltava à romaria.
Nesse ano de fogueteiro ausente até o vento colaborou, quase não se notando! Tudo correndo normalmente até que chegou a hora de lançar o balão e aqui tudo se complicou, era tarefa para especialistas, especifica de fogueteiro.
Os mordomos reuniram e acharam que o melhor mesmo era não ser lançado. A decisão foram comunicar aos romeiros que não se opuseram, mas cochichavam, comparando com outras festas e outros mordomos onde o programa foi cumprido. Havia os eram pelos mordomos outros não e outros nem por uns nem por outros. Quem mais se manifestava a favor do lançamento eram os garotos, era do que mais gostavam, melhor mesmo do que correrem para ver quem apanhava mais canas de foguete.
Ver o balão a encher, ficar cada vez mais gordo e depois a largada, mais ou menos desnorteada no arranque, até se equilibrar nos ventos mais altos e ser seguido, com as mãos a servir de pala, porque o sol aquela hora vinha mesmo a alegrar os olhos entusiasmados da miudagem. Lá vai ele, em direção a Almendra, diziam uns; outros desmentiam, não é nada, vai para a Meda e ficavam nisto até que deixava de ser visto e a paz voltava ao anjo.
Mas estava ainda por decidir se o balão era guardado ou não e parecia não haver consenso, sendo mais os que achavam e quase exigiam que o balão teria que ir para o ar, mas nem um único se oferecia para o preparar e o fazer elevar aos céus, ali bem mais perto do que se fosse lá no fundo, na aldeia.
Eis que, de peito pequeno mas saliente, inchado como balão, o ti Quebra-Linhas se propõe tratar do assunto, que não tinha qualquer segredo, era só olear a mecha, chegar-lhe lume, o balão vazio bem esticado na ponta do fio e este fixado na ponta da vara e uma vez cheio era largá-lo e boa viagem, vai com Deus.
A maior parte não confiava muito nas sabedorias do ti Fernandes, mas estava mais que visto que nas deles confiavam bem menos e lá deram a anuência para ele o lançar.
O problema que parecia estar resolvido parecia voltar à estaca zero quando o balão foi cuidadosamente desembrulhado e se deparou com aquilo que era a “boca” de entrada do fumo e de calor para encher, em vez de ser circular como sempre fora, era um quadrado formado por quatro ripinhas.
Foi grande a confusão que aquilo gerou! O ti Fernandes, o homem dos seis ofícios e não sete como costuma dizer-se, porque o de matador de porcos falhou, resoluto como sempre foi( e neste ponto devia ter o aplauso pela coragem revelada e não o sorriso de mofa que quase sempre lhe dispensam ), sem pensar muito e esse era o seu mal, respondendo às interrogações gerais, explicitas ou implícitas, sentenciou, sem margem para contestação: “ este balão é dos modernos (aprendam técnicos ou aprendizes das leis da Física de todo o mundo, por que mestres assim não aparecem a qualquer hora e de mão beijada! Este recomendação é apenas da responsabilidade do narrador, assim como o foram as pretéritas e o serão as futuras que possam surgir!) e, por isso, dizia o ti Fernandes com segurança, em vez de a mecha ficar fixada no cruzamento dos pedacinhos de ripa e voltada para dentro, era o contrário que tinha de ser feito, ao seja, a mecha em vez de apoiada no tal cruzamento das tabuinhas, ficaria da mesma forma ali fixada, mas pendurada para fora do balão.
O resultado será este, esclareia o técnico: em vez de a mecha funcionar como vela acesa, que ninguém veria, ficava como rabo- de- raposa a arder antes de iniciar a subida e um cometa quando o balão se elevar! Percebem? Perguntou, ufano.
                                                                         Aqui vou ter de meter um aparte de uma cena ocorrida muitos anos mais tarde, com o engenheiro diretor de produção, ao examinar uma linha de secagem de embaladas serigrafadas! Achou que o sistema que outro colega tinha montado na origem da instalação da linha não estava bem. Que a ventoinha instalada sobre os elevadores para aspirar o ar quente de modo que as embalagens serigrafadas chegassem ao fim do percurso estivessem frias e secas, devia estar a soprar o ar ambiente para dentro da linha e dava como exemplo “quando nos queimamos nos dedos o que fazemos? Aspiramos ou sopramos? Teatralizando a atitude”. O responsável da manutenção, eletricista com anos vários de experiência, torceu o nariz, reticente e à parte comentou em voz baixa: “não acredito que o engenheiro que fez a instalação, que esteve em Itália para ver o funcionamento e instalação, tivesse montado a ventoinha ao contrário, mas ele é o diretor e especialista em eletrónica, até pode ter razão, mas duvido”
Decisão tomada, há que passar à acção, ou seja, inverter o movimento de rotação da ventoinha, operação de fácil execução que o electricista tratou e meia hora depois estava tudo pronto para ver o “Ovo de Colombo”. Mal as embalagens chegaram ao alto da primeira subida, atingidas pela corrente de ar da ventoinha, a que não estavam habituadas, saltavam dos respectivos suportes e precipitavam-se em queda com a velocidade natural da gravidade, aumentada pela corrente de ar instalada, onde se iam comprimindo até bloquearem a linha. Chamado o director, decidiu: “voltem a instalá-la como estava” e zarpou! Comentário do electricista: “engenheiros de trazer por casa” e foi repor a posição da ventoinha!
O ti Fernandes assim procedeu, tudo parecia estar a correr bem; o cordel do polo norte a passar pela extremidade do pau em forquilha e a outra ponta bem segura pelo ajudante. Os trapos embebidos em petróleo ardiam no chão e o técnico a direccionar a quadrada boca do moderno balão de modo a que a fumarada e calor expulsassem o ar normal que estava ainda no balão quase vazio.
O ajudante empoleirado mais acima ia aguardando a ver o balão a encher, cada vez mais redondo, mais inchado apenas aguardava ordens para largar a ponta do fio.
Quando o técnico de aerodinâmica (não era o Pedro de Gusmão, mas o ti Fernandes era isso mesmo só que não dizia pelo medo de ficar na história!) achou que estava no ponto, acendeu a mecha que pingava para cima dos trapos fumegantes, ficou com os olhos ainda mais cheios de fumo e a arder, o balão não mais se decidia a partir, mesmo com a ajuda dos impulsos leves que lhe eram dados e quando lhe pareceu que estava no ponto disse ao do pau, larga!
Mal este largou o cordel o balão achatou um pouco, abanou como barco em mar agitado, fez um esforço gigantesco, inclinou-se mais ainda e foi o fim. A mecha, ou melhor, a chama da mecha aproximou-se de um dos lados do quadrado, atingiu o papel e ainda o cometa não tinha subido nem cinco metros, mais a descer do que a subir, ardeu num abrir e fechar de olhos, caindo sobre o rochedo, tombo curto, mas queda mesmo, perante as dezenas de testemunhas!
O ti Fernandes limpava os olhos, não por estar a chorar de pena do balão ou do seu fracasso como lançador de balões, mas porque os lhe ardiam por efeitos do fumo e dos vapores do petróleo!
Agora todos sabiam tudo e comentavam: “como era possível ser a mecha a arder do lado de fora do balão?! Afinal não havia modernice nenhuma, era mais fácil pregar quatro tipas do mesmo tamanho do que fazer um aro circular”
Todos estavam agora contra o ti Quebra Linhas: “ para que se mete no que não sabe” e um que devia ser da oposição atirou para o ar: “ ele é um atrevido, mas nenhum de nós, mesmo com mais anos de ver lançar o balão, se ofereceu e ele o fez!” Silêncio!
E o ti Fernandes, aproveitando este súbito silêncio, declarou: “ Nunca mais lanço nenhum balão” e meteu pés a caminho agora a descer ladeira abaixo, não assistindo ao fim da romaria.

                                                 III

Tinha muitas outras facetas este ilustre conterrâneo, ti Fernandes o Quebra Linhas, mas estas duas, da matança e do balão, são as que mais me encantam, das que recordo.
Não faltava num Carnaval uma iniciativa sua, sempre procurando que fosse uma crítica social e algumas tinham piada, como a do burro com um despertador na pata esquerda da frente, quando começaram a aparecer os relógios de pulso.
A minha ida para Lisboa, com anos a fio sem ir a Castelo Melhor, excepto os de cinquenta e quatro e cinco, devido à bronquite, fui perdendo o contacto, não sabendo o que foi feito dos filhos, o Gualdim, que fazia um bom trabalho como sapateiro, o Viterbo e a filha, cujo nome não recordo, não soube mais o seu destino.
Já com os meus dezoito anos, numa das férias que lá estive, no Verão, quando os estudantes voltavam , cruzei-me com o ti Fernandes, já bem velhote, de volta do seu copito, depois mais uma rodada e outra, que cada um ia pagando, os que o conheciam melhor puxavam-lhe pela língua das mágoas e as estórias ganhavam corpo por si próprio contadas, com piada a maior parte.
Os que com ele estavam todos os anos e sabiam o seu pendor, logo o picavam: “ Então e na cama como é, ti Fernandes?”
E ele, entre o ar triste e brincalhão, lá dizia que a mulher só o deixava lá ir se ele, antes, fosse apanhar um feixe de lenha!
É uma tristeza, queixava-se! E a lenha às vezes dura tempo demais! Risos, dele e nossos!
Era talvez o segundo conterrâneo de que mais gostava!
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O TI ANTONINHO”FERREIRO”

                                                 I

Era um dos filhos de um casal que morava numa casa toda pintada e maior do que a da média das outras, distante daquela onde nasci, não mais de trinta metros.
Tinha, que me recorde, mais sois irmãos, ambos ligados à profissão de ferradores, só o ti Antoninho tinha forja, quase encostada ao ribeiro e tendo de permeio apenas duas apenas duas casas entre esta oficina e a casa da minha família.
Quase todos os dias, à noite, a forja trabalhava, enquanto foi a única, ou para reparar utensílios de lavoura, ou para fazer material novo, tal como ferraduras que ficavam em armazém para quando precisavam de ser usadas ser só adaptá-las ao casco dos machos, cavalos poucos e às unhas das vacas. Havia poucos de cada espécie, mas havia.
Sempre gostei daquele trabalho nocturno da forja, com a oposição de alguns adultos que se sentiam mais à vontade com os juvenis já acamados; era um gôsto ver o carvão de “pedra “ a arder na boca da forja, o grande fole que todos os garotos gostavam de “tocar”, a bigorna maior fixada num grande tronco de árvore cortado em forma tronco cónica e a enorme pia de granito, meia de água, onde as peças, uma vez prontas, eram afogadas, com um som característico de um pedaço de ferro ou aço incandescente a ser mergulhado em fria água, como um gargarejo bucal mas mais forte e até assustador quando a peça era grande.
Quando era para fazer de novo ou substituir as pontas das relhas, eram precisos três homens experientes no manejo das marretas e no ritmo em que teriam de encontrar para, um de cada vez, ir batendo no sitio que o ti Antoninho ia indicando com o seu martelo na mão direita enquanto a esquerda segurava, na ponteira da grande turquês a peça, que ia movimentando para que à marretada fosse ganhando forma e os acabamentos eram feitos pelo ti Antoninho e com o seu martelo empunhado numa mão e a peça na outra. As marretas eram empenhadas com ambas as mãos e não era para todos aquele trabalho onde a força do braço era aliada ao ritmo do trabalho colectivo.
Não era só porque os adultos preferissem estar sós que se preocupavam com os juvenis. É que os jactos de chispas que pareciam setas incandescentes e batiam na cintura dos homens, protegidos por uma peça de cabedal grosso atado, bateriam nos olhos dos pequenos e a cegueira era quase uma certeza. A maior parte deles levavam as roupas mais velhas, já esburacada de sessões anteriores.
E como explicar a tua presença a tocar o fole, a ganhar músculo, diziam alguns, se aos outros era negada? Esta é a pergunta que a mim faço, agora não só para o fole, mas no minério, em que todos ou uma boa parte dos mineiros queriam que eu a eles me associasse e algumas vezes o fiz até que dávamos o filão por saturado. Não sei porquê e embora me intrigue não estou disposto a pensar mais nisso.

                                                 II

Além de ferreiro e ferrador o ti Antoninho, como vários outros, gostava do seu copito e bebido na taberna, com outros, em casa não sabia tão bem, dizia. Como não havia taberna perto de casa, lá tinha ele de se deslocar até ao alto da Rua Larga, onde havia três; o gosto foi-se aperfeiçoando e aos poucos tomando conta da vontade que num ferreiro devia ser férrea, mas não era e acabou por virar vicio e dependência, não sendo raros os dias em que a primeira viagem devota que fazia era a da “capelinha” do deus baco! A devoção e o litúrgico rigor eram tais que muitas das manhãs chegava antes de a porta abrir e poder beber a primeira oração; no Inverno era ainda noite cerrada, mas lá ia ele a cumprir a promessa que todos os dias fazia de deixar de beber, mas mal a fazia já a queria violar.
Durante muito tempo me espantou o facto de ele, ao dirigir-se à taberna, por certo usando o caminho mais curto, teria que passar em frente do portão de entrada para os logradouros e casa das refeições da casa do meu padrinho, onde andava à solta ou preso na ponta de uma corrente, um enorme e já idoso cão “Serra da Estrela”. O pessoal que frequentemente entrava e saía de casa pelo portão, o cão já se não manifestava e com esse descanso amigável, muitas vezes deixavam o portão aberto ou mal fechado e aí estava uma ratoeira para quem passava e que felizmente nunca teve consequências. O cão fazia mais barulho de que trabalho, acabando por dar sentido ao provérbio “cão que ladra não morde”.
A partir de certa altura o cão que ladrava furioso a toda a gente, deixou de ladrar ao ti Antoninho, o que muitos estranharam. Alguém lhe perguntou porque não era atacado pelo animal? A fórmula era de tal modo simples que parecia o ovo de Colombo: “bastou arregaçar as mangas as primeiras vezes e agora já nem do portão sai, ladra sempre, mas nem ao portão se chega!”
O perguntador, desconfiado e porque morava mesmo em frente ao portão, resolveu ir confirmar. Viu o portão mal fechado e o matulão à solta; desceu a rua Larga, tinha que ser senão tinha que passar em frente ao portão e não podia ou dar uma grande volta para apanhar o caminho do ti Antoninho. Desceu, como já disse, a Rua Larga, virou na esquina do senhor Marcolino e foi seguido até entrar na rua do Passadiço e com o receio do costume, apenas com a garantia do ti Antoninho, iniciou a subida que já era a da casa do meu padrinho de um lado e do outro e só no fim seria à direita a casa do senhor Aleixo e à esquerda o muro que era o do espaço das traseiras da casa grande, guardadas pelo cachorrão que, mal se apercebeu de que vinha lá gente apareceu logo a ladrar furioso! Aqui devia incluir o nome do autor do teste, mas como não recordo, fica mesmo assim; ergueu-se em toda a sua altura e mostrando bem os braços ao furioso animal, este estacou, ainda olhou durante uns segundos, virou-se, meteu o rabo entre as pernas e sem pressas dirigiu-se ao portão e entrou!
Assim ficou confirmada versão do madrugador ti Antoninho e a de que o gigante Serra da Estrela, não passava de um medricas que até uns fracotes braços sem mangas o acagaçava!
Por mim fiquei, teoricamente, com mais uma lição e que era quando os adultos, mais os das aldeias dos meus rios, quando se envolviam numa rixa, o gesto primeiro era tirar o casaco se vestido o tinham e de seguida era arregaçarem as mangas, mas para os lutadores não resultava ou não resultava sempre! A vida, com seu ar natural e sem avisar, dá-nos lições que, raramente, lhe reconhecemos o papel de mestra!
No final da vida, o ti Antoninho, corroído pela doença que o vinha minando há anos vários e fortemente, ajudada pelo álcool e seus nefastos efeitos, já acamado e com ataques de perda de equilíbrio, físico e mental, levantava-se do catre e tentava subir pelas paredes de casa, perseguindo os seus monstros que a perturbada mente ia produzindo e só os seus olhos viam.
Um dia, sonhando provavelmente com o céu, com uma tasca e uma forja, a seguir a uma crise violenta, sorriu, fechou os olhos, cansado e não mais regressou do sonho!
Não me recorda quem ficou a trabalhar com a forja, os filhos eram pequenos e só os irmãos ou algum dos seus ajudantes permanentes o poderia ter feito.
Tinha já aberto uma outra, por um familiar Currala, penso que de nome Alberto, que esteve na tropa ao mesmo tempo que o meu irmão Licínio, mas em quarteis diferentes, onde fez o curso de ferreiro e ferrador, aquilo que na linguagem militar se chama especialidade, ficando a oficina relativamente perto da do falecido ti Antoninho. Tenho vindo a usar o termo “perto de”, mas é uma forma de dizer, por que perto estávamos todos uns dos outros, porque a aldeia não era assim tão grande.
Este novo ferreiro teve um período de comportamento psíquico parecido com o do ti Antoninho, quase pela certa devido ao álcool que bebia com abundância, vendo animais terríficos que ele descrevia mas de forma que só ele entendia e que as pessoas mais entendidas com as coisas místicas diziam que ele estava possuído pelo diabo! Se assim fosse era, pela certa, o diabo de serviço aos ferreiros!
Dele se contavam coisas de espantar e de encontros como “mafarrico”, sempre inventadas nos delírios e de que nunca se lembrava.
O espirito do maligno, talvez farto de passar pela má fama de feitos inventados e receando que a sua honra de diabo sério e cumpridor fosse afectada por tão pífios atrevimentos, resolveu não mais chatear as gentes de Castelo Melhor e deve ter partido para outras paragens onde houvesse ferreiros, mas havia quem afirmasse solenemente que o Lucifer foi expulso pelo Anjo São Gabriel e que devido a esse feito foi promovido a Arcanjo!

Reis Caçote
Dig/l9/01/14


A TI’ANA DO “FERREIRO

                                                 I

Mãe de todos os ferreiros da aldeia, com excepção do formado pela “Universidade” militar na arte que a família sempre teve, de ferreiro e ferrador. Era uma mulher robusta, altiva, das de têmpera diferente da dada na forja, capaz de ter e criar ferreiros e suas têmperas do aço.
Este porte de matriarca tinha origem não só na origem genética, como hoje se sabe e divulga, mas por outras causas exteriores à questão da ciência biológica.
O seu percurso formativo penso que teve início durante a Segunda Guerra Mundial, onde Portugal era um País neutral, mas não tanto como a lei que institucionalizou a neutralidade! Um pouco como hoje sucede, mais tecnicistas as Leis, feitas por especialistas nas partilhas, onde o provérbio do “quem parte e reparte e no partir tem arte, fica sempre com a melhor parte” se aplica ou assenta como uma luva! A teoria não declarada, mas que está contida no seu mais intimo detalhe, é a de que as Leis não são para cumprir, mas para violar. E assim era a que decretou que Portugal não era visto nem achado naquela briga dura, de que não falarei, porque era estar a seguir o mau exemplo! Minha missão se prende com a ti’Ana.
Alguém, de que nunca ouvi falar e que para o efeito pretendido não faz a mínima falta, descobriu que nas suas terras do Seixo, existia um mineral que tinha algumas aplicações de grande utilidade e que hoje nem sequer é nelas aplicado, mas noutras o será.
O filão da rocha magmática, da família do quartzo vinha dos lados da Mêda, da margem esquerda do rio Côa , atravessava este nas imediações das gravuras rupestres de há trinta mil anos, nem mais nem menos um, mesmo que passados já mais de quinze anos sobre a data em que se mostraram, continuam a ter trinta mil anos.
Estes despormenores geológicos, geográficos e históricos levam-me quase sempre a esquecer, a esquecer não, a adiar ou desviar do tema em apreço. Não gosto, mas não consigo fugir à tentação; ainda um dia destes terá de vir o Anjo São Gabriel, e bom seria que não tardasse, a acudir-me e proteger-me destas tentações, mesmo que não sejam demoníacas, ele sempre me dará uma ajuda e eu lhe agradecerei.
O tal filão, aqui é daquelas coisas que me agradam pela quase perfeita designação, por me parecer uma derivação de “fila” indiana, outra coisa que à India devíamos ter já agradecido e pago os direitos de autor, assim como todo o mundo, pois filas não faltam e cada vez mais, mas isso é capaz de ser política e eu não quero o tacho de ninguém, mas que as há cada vez mais, lá isso há! Agora até para a sopa dos bancos da fome, o que é uma vergonha para a sociedade da abundância e do saber que tão incensada foi.
Dizia que o tal filão entra nas terras da margem direita do Côa por uma “estrada” que ainda abrange uma faixa de terras de Almendra e vem andando, passa pelas terras de muita gente, sobe até ao Alto de Santa Bárbara, desce até ao Douro, deve atravessar o rio por debaixo das águas, tal como fez no Côa, e perde-se em Trás-os-Montes ou continua, não sei até se não irá para Espanha, mas mesmo no tempo dos passaportes para estas filas nunca foi exigido. Um dos locais de passagem tem a designação de Canada do Inferno que, no seu inicio ou no fim, não vale a pena discutir, junto ao rio, é onde está o maior núcleo das ditas gravuras rupestres, todas agora em Foz Côa, quando deviam ser mais exactos e dizer no concelho de, pois Foz Côa fica na margem esquerda e a maioria das gravuras, reconhecidas pela UNESCO, fica nas terras nobres de Castelo Melhor, ou seja, na margem direita.
Mas era sobretudo nas terras do Seixo, propriedade da ti’Ana do Ferreiro que o filão e suas pequenas veias e artérias, se deixaram invadir por este mineral da família do Volfrâmio – o Scheelite - de que falámos e a ti’Ana enriqueceu, porque este mineral era usado como activador da combustão da pólvora, por fricção, mas embora não constasse, devia estar já a ser usado na indústria metalúrgica para obter ligas mais resistentes.
A formação da ti’Ana, de rija têmpera, não teve a ver com os Ferreiros ou com a pequena fundição da forja que para temperar, dando ao ferro a dureza do aço, eram os choques térmicos do ferro incandescente mergulhado na pia de água fria e nalguns casos era usado um corno de cabra que era esfregado na ponta ao rubro da relha, mas que não devia ser fácil provar que dava algum resultado, mas com o ter de lidar com os “garimpeiros”, à moda portuguesa, a quem ela cobrava uma percentagem sobre o minério extraído e que sempre acusou de a quererem roubar, não me custando a acreditar porque assisti várias vezes a esconderem uma parte do minério, era a fuga ao fisco de hoje.

                                                 II

As terras do Seixo de que a ti’Ana era proprietária, nada produziam, a terra arável era má, como quase todas o eram, mas a sua exposição ao sol era tão pouco favorável e a inclinação tão acentuada que ninguém as arrendava!
Assim, pareciam as terras esperar pelas guerras, como que descansando entre elas, para depois se transformar num campo de batalha, martirizado pela artilharia dos garimpeiros, em violentos combates de incertos resultados.
O que se passou, se é que algo se terá passado, nas terras da ti’Ana do Ferreiro, na I Guerra Mundial, nada sei. Nada tive a ver com essa guerra e, por isso, só chegou ao meu campo da memória o que fui ouvindo dos mais velhos: os gaseados, as feridas, de mortes não ouvi falar muito e do livro de história, com as confusões que se seguiram e a antecederam, pouco ficou registado e o que ficou deve ter sido atamancado.
Da segunda é já diferente! Quando nasci já andava no ar assim como que uma trovoada ao longe, não se viam os relâmpagos nem se ouviam os trovões, mas parecia algo a rastejar e aproximar.
E, seis meses depois, um fulano chamado Adolfo, como o meu vizinho da frente, lá num país distante, chateou-se com alguns de quem não gostava, os judeus, na minha aldeia também não deviam gostar deles e até diziam aos miúdos, quando se portavam mal, “não faças judiarias” ou deixa-te de “judiarias” e até nos chamavam judeus! Mas não havia qualquer maldade nestas pedradas verbais que nos atiravam os meus conterrâneos, posso garantir. Esta linguagem devia ter mais a ver com o que o Apóstolo Judas fez ao Cristo e não um problema judaico com a dimensão de Castelo Melhor! Isso é mais de agora, mas dos únicos que lá não gostavam mesmo e penso que continuam a não gostar, nunca percebi porquê, nem hoje percebo, era mesmo dos russos! Penso que era uma questão de cor do cabelo, pois assim que um aparecia com o cabelo mais claro, os garotos a brincar e os adultos não sei se seria também, mal o garoto fazia e até quando não fazia nada, os mais velhos diziam-lhe: ah, “russo de mau pêlo, má raça pior cabelo!”. Ora, isto também não podia ter a ver com o Adolfo, pois do que mais tarde soube ele gostava dos loiros, mesmo que ele usasse cabelo preto, contradições que vá lá a gente entender. Ficamos então assim: era dos russos que os adultos se serviam para injuriar os miúdos e estes uns ao outro só para provocar a reacção e darem umas boas corridas, esconderem-se atrás do que estava mais perto, sempre rindo, até que o de má raça e pior cabelo desatava a rir e tudo acabava em abraço e mudança de brincadeira.
O senhor Padre é que ao domingo, durante a missa, passava a vida a dizer que a Rússia tinha que ser convertida e que a Senhora de Fátima lá estava a cuidar do assunto, tal como o Anjo Gabriel, lá do alto do monte, cuidava de todos nós.
Não percebi muito bem esta parte final da Rússia?! Insistia um dos conterrâneos, quando ali passei uns dias com o meu irmão Licínio. A Rússia converteu-se e agora? Se calhar a Senhora de Fátima fica sem trabalho! E acrescentava: “mas olha, também já merece descansar uns tempos, levou tantos anos a converter! Teimosos, estes Russos!”
Da II Guerra Mundial dizia, essa sim, já mexeu bem com as terras da ti’Ana do Ferreiro! Como o negócio começou não deve haver registo, deve ter sido só de boca-a-boca e mais ou menos assim:
“Vós ides dar-me cabo da terra, enchê-la de buracos e como vós e eu não sabemos onde os vão abrir, não posso arrendá-la! Vamos fazer assim: do minério que tirais dais-me uma parte a mim pelos estragos e assim podeis esburacar à vontade”.
O pessoal, nesse aspecto e nos outros todos, foi sempre gente de uma só palavra, não era precisas declarações escritas, nem para o minério nem para as outras coisas da vida. Combinava-se, cumpria-se. A burocracia chegou muito mais tarde e não atacou em todas as frentes nem traseiras, ao mesmo tempo! Foi minando, devagarinho, assim como quem não quer a coisa, assentou arraiais de tal maneira que ainda continua, mais disfarçada nuns lados do que noutros, mas está aí para ficar!
Aquelas encostas do Seixo, de nascente e Sul, foram esburacadas, esventradas é um termo forte demais, durante o tempo que a guerra durou e, segundo consta, eu não tomei nota na memória porque andava entretido a aprender outras coisas, tais como: andar, falar, brincar pouco, depois a fazer as tais “judiarias” que não era nenhum santo…! E a ti’Ana, no fim do dia, lá esperava os pesquisadores para cobrar a “dizima”; uns lá pagavam, outros não porque vinham de mãos a abanar por nada terem pesquisado.
Uns acertavam e continuavam, outros falhavam e desistiam.
Alguns ganharam muito dinheiro e quase todos o gastaram, sem proveito e pouca glória, os apanhadores, antes chamados de garimpeiros como nos Brasis, lá do outro lado do oceano. Não sei se a designação de garimpeiros está bem ou mal aplicado, nem vou tentar saber, mas apanhadores é que não tem ponta por onde se pegue, porque, como está bem claro antes, não era chegar e apanhar! Dava mesmo muito trabalho este trabalho de apanhador!
Os que terão enriquecido, para além da ti’Ana, terão sido os negociantes, alguns de longe e outros de nem sequer sabiam. Vinham em determinado dia da semana, pagavam e levavam. E um ou dois da aldeia que funcionavam como grossistas, guardando os minérios de cada um, em separado, pois o preço variava em função da pureza do mineral e que era definido pelo peso de meio litro dele; o peso do considerado de grau de pureza bom devia pesar um quilo e meio, se assasse era de alta pureza, mas a maior parte não chegava à média da pureza, ou porque estava mal escolhido, ou porque tinha muitas incrustações de rocha.
Os que calejavam as mãos calejadas e esfolavam o corpo naqueles buracos perigosos, onde por vezes ficavam meio soterrados, mas mortes terão sido poucas. Tudo por uns gramas de minério, quando o achavam.
Fortunas mesmo lá da aldeia, excepto a ti’Ana, eram nenhumas! E podíamos dizer que o provérbio se aplicava: “o dinheiro mal ganhado, água o deu, água o levou!” Mas aqui não tinha aplicação literal; custava mesmo a ganhar na maioria dos casos e eu que o diga, não nesta II Guerra, mas na outra, não memorial, a da Coreia, quando acabei a minha primeira fase de formação académica!
Nessa guerra já eu fui, com muitos outros, um “combatente” de retaguarda. Nunca percebi de que lado da trincheira eu estava, aliás nunca percebi se as guerras tinham fronteiras distintas, só mais tarde entendi, as trincheiras dessa guerra e das que sem descanso se vão iniciando um pouco por todo o lado do mundo!
Posso confessar agora, a ti’Ana já morreu há dezenas de anos e eu há já mais de meio século me deixei de minérios, que nunca lhe paguei a taxa, mas não fiquei a dever nada, pois os garotos como eu que andavam no rebusco e apenas esgaravatavam a dos buracos que outros faziam, estavam isentos de tal taxa.
Se a tivesse pago, também não teria sido com ela que a fortuna que a ti’Ana apregoava, quando exaltada com alguém ou com algo que lhe não agradava, gritando, para que todos os presentes ouvissem, que ainda tinha notas de mil que davam para forrar a casa toda e era bem grande como se disse no início!
Um dia houve em que a zanga era tal, praguejando para todos escutassem: “Oxalá venha uma trovoada tão grande que leve a terra toda para a Côa (no falar lá da aldeia o rio era fêmea!)
E logo um coro, sem treino prévio, mas afinado, respondeu, a rir falando: “Deus a oiça oh ti’Ana, isso queríamos nós, assim ficavam os filões todos à mostra e não precisávamos de andar, dias e dias, de ferro em punho e enxada à mão, a picar o chão e nada encontrar!”
“Maldita gente!” E virou-lhes as costas.
A garimpa da scheelite terminou com a concessão da exploração a uma empresa que, essa sim, quase virava do avesso o monte do Seixo! E só o não fez por que a guerra na Coreia durou menos do que os fornecedores previam e porque foram encontradas novas soluções para substituir aquele mineral. Durou o suficiente para ter causado ou apressado o passamento da
Ti’Ana do Ferreiro!

Reis Caçote
Dig/21/01/14


O TI’ARI

                                                 I

O ti Ari, que morava lá para as Pintas, assim chamada uma área situada entre a traseira das casas juntas ao ribeiro, constituída por um Largo que ia até a casa do senhor João Grilo e duas ruas que convergiam, sem se juntarem, num pequeno Largo triangular que na época terminava junto da última ponte sobre o ribeiro mais a montante.
Sempre senti alguma curiosidade do porquê do nome, mesmo que a Rua onde eu nasci fosse a dos Pintos! Sempre aceitei o nome da minha rua, tal como está na certidão de nascimento, repousando na convicção de que ali tivesse morado, em tempos antigos, algum Pinto que tivesse a importância social para ter direito a uma rua com o seu nome, mas Pintas…bem, deixemos este segredo como está, se não foi esclarecido na altura que a curiosidade era maior muito menos o será hoje que os mais velhos já se cansaram da vida e os mais novos na idade perderam completamente a curiosidade histórica ou outra, são poucos e vivem a vida por certo sem este tipo de curiosidades! Estamos num século novo onde as altas e baixas tecnologias são o teorema e os corolários duma geometria quase só rectangular.
O ti Ari estivera emigrado no Brasil e quando eu nasci já ele teria deixado as Terras de Vera Cruz e de Pedro Álvares Cabral e estava a residir em Castelo Melhor há não sei quantos anos, com a esposa e dois filhos, um casal, já crescidos ambos.
A minha convicção de que ele teria deixado o Brasil há anos vário era a ausência de sotaque, mas este pormenor não serve de base para grandes e definitivas convicções, podia muito bem ele ser um caso raro daqueles que não atinam com a outra língua e o sotaque não se assimila do nada! A família também não falava um português-brasileiro e isso me levou a pensar que ele e a família não encontraram a ”árvore das patacas” que outros terão achado rapidamente e regressou antes mesmo de se vincular oralmente à língua que nunca foi a de Camões.
Tinha a fama de amestrador de cães de guarda, arte que nunca presenciei, talvez por eu gostar mais dos de caça, de que cheguei a ter um cachorro, por mim escolhido duma ninhada (outro vocábulo que acho mal usado, se as aves nascem num ninho e para eles a ninhada estará bem aplicada, agora para os mamíferos…!...vamos andando, senão ainda me esqueço que o protagonista deste Ti é o ti Ari) que a cadela do senhor Antoninho, este safou-se, tinha parido e que pouco tempo cuidei dele; teve um acidente com água a escaldar e teve de ser abatido para não sofrer mais tempo! Decidi na altura que não voltaria a ter cães e só terei violado a promessa que a mim fiz e que são as que mais respeito, mal cheguei a Luanda, ainda no edifício inacabado dos futuros laboratórios da Petrofina e que nunca chegaram a ser. Apareceu, com ar desorientado, junto aos edifícios um animal adulto, mas de pequeno porte, que mal o afaguei não mais me largou. Duma correia de mochila fiz uma coleira para o primeiro amigo em Luanda e como não sabia o nome e ele devia ter esquecido e documentos não tinha consigo, nem Bilhete de Identidade, Carta de Condução ou Carteira Profissional, escrevi o nome de Comandante, que ela não rejeitou. Mas quem o rejeitou mesmo foi o major, comandante dos artilheiros e do Pelotão onde fomos integrados. Chamou-me e ordenou que o animal voltasse a ficar anónimo, não queria aquele nome na coleira e…ainda procurei explicar que eu também era comandante da minha secção de abastecimento de munições, mas ele não alinhou na conversa e lá tirei a coleira ao novo comandante. Não sei se o animal levou a mal ou se pensou que aquele gesto era de rejeição, o que não era, mas dum momento para o outro, tal como apareceu, desapareceu. E foi pena, pois no dia seguinte de manhã apareceram os verdadeiros donos a oferecer quinhentos angulares para lhe devolverem o seu animal. Era um animal de Marca, mas eu não sabia e se soubesse não iria prender o cão à espera das alvíssaras! Foi o segundo me muitos incidentes tidos com a hierarquia, o primeiro foi o do gelado, no desfile de apresentação e chegada, com o gelado que o capitão, com inveja, me mandou deitar fora!

                                                 II

Desculpe, ti Ari, mas não me esqueci!
Além de amestrador de cães de guarda era também um versejador, dos que mais tarde soube a designação, repentista! E com esta característica cativava a garotada que andava na escola, onde já se foram habituando aos versos e os da pré-escola em que o espaço para os ATL era a aldeia quase toda.
Era sempre à noite, nas noites de Verão, que ele se sentava na soleira da porta de casa, a ver, como ele dizia, o bailado dos morcegos a fazer pela vida, desbastando o bando de mosquitos que, na falta de iluminação ou fonte de luz que os atraísse, aproveitavam a luz que da lua emanava, do Sol reflexo, e usavam o palco mais amplo em busca não sei de quê! Os morcegos era fácil saber, eram os mosquitos que eles procuravam e nas suas manobras acrobáticas iam entretendo o ti Ari e outros, que para a rua vinham por não se poder estar em casa com o calor de fornalha do dia e que só amainava quando outro dia de estorricar se apresentava.
Não eram muitos os garotos, mas sempre se juntavam três ou quatro e aí começava poesia à desgarrada, como vim depois a conhecer em Lisboa, nas tascas do Bairro Alto e Mouraria. O ti Ari dizia uma quadra, sempre rimada e aguardava que um dos garotos, todos no chão sentados, fizesse sinal para dizer a sua, em resposta à do ti Ari! Como o vocabulário era pobre, na maioria das vezes saía mal o que dava para uma gargalhada geral. Por vezes saía bem e sem graça nenhuma. Quanto maior fosse o disparate maior era o aplauso do riso!
E assim se passavam horas até que os garotos, alguns a cair de sono, debandavam para suas casas, sempre ali perto.

                                                 III

Como ficou descrito no bloco dedicado aos Senhores, o senhor Aleixo lá está, como reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela. Tínhamos, então, um emigrante do Brasil e um reformado de Angola, um vindo do continente americano e outro do africano, qualquer deles do Sul.
Cada um teria as suas vivências e cada um teria as que não viveu e teria gostado de viver, muitas delas eram pura imaginação.
Ou porque o tema poesia estava já a não resultar e ele gostava de companhia para passar o tempo entre a ceia e a deita, não sei se combinado ou não com o senhor Aleixo, o certo é que resultava, transformaram os garotos em mensageiros das suas fantasiosas recordações intercontinentais, funcionando de uma forma simples e lúdica para todos:
O ti Ari dizia que em Angola se tinha cruzado com uma ave de tal modo grande e pesada, que para levantar voo tinha que correr quase um quilómetro em terreno plano ou a descer, que de certeza no Brasil não havia! Um dos garotos, mais atento, ainda perguntou:
- “Como é que o ti Ari sabe que não há ainda maiores?”
Acho que não há aves tão grandes no Brasil, mas o melhor será mesmo ír perguntar-lhe, propunha o africano?
- Vamos lá perguntar ao senhor Aleixo, ao menos ficamos a saber!
E a equipa, nunca maior de quatro, partia a correr, cada um tentando ser o primeiro a chegar ao cadeirão que o senhor brasileiro usava para o mesmo fim, tentar que uma brisa chegasse e amenizasse aquela fornalha que parecia querar estufar vivos os habitantes daquela nossa aldeia.
- Então que há, meninos? Fingindo nada saber, pergunta o senhor Aleixo.
Ouvia a estória como se nada soubesse e logo que acabava, nunca era longa, dizia o brasileiro senhor:
- Digam lá ao ti Ari que no Brasil, vi eu com estes olhos que um dia a terra há-de comer – os miúdos achavam aquilo esquisito, mas não iam além da troca de olhares, era o senhor Aleixo que dizia, tinha que estar certo- vi uma borboleta tão grande, tão grande, que quando batia as asas a voar, derrubava árvores em redor e chegou mesmo a tombar casas, mas isso eu não vi. As asas eram quase tão grandes como daqui a casa do ti Ari!
E lá partia a patrulha a correr até casa d africano Ari.
Resposta transmitida, ficavam a aguardar se o ti Ari tinha alguma coisa ainda mais demolidora…! Havia já claques, pequenas, favoráveis a Angola e ao Brasil, mas não eram fixas nem fanáticas, duravam o tempo do percurso entre os dois Continentes.
- Digam lá ao senhor Aleixo, que tenho dúvidas de que houvesse tal borboleta, e digam-lhe também que no Congo, mesmo pegado a Angola, numa caçada, nos apareceu um elefante tão grande, tão grande, muito maior que a igreja, com torre e tudo – eia! Exclamou um dos miúdos – que deu um peido tão grande e mal cheiroso que se ouviu em Luanda e o cheirete disseram que chegou ao Brasil e se notou mais no domingo de Carnaval, mas ninguém suspeitou que fosse daquele elefante, pois não sabiam que havia tal animal!
O grupo de quatro, entre eles eu, na altura protagonista e agora narrador, desatou a correr e iam comentando baixinho, um deles a dizer para o mais próximo – “ eu não quero nunca ir prá África, cagava-me todo com medo!
Mal o senhor Aleixo nos viu a dobrar a esquina, perguntou, fingindo espanto:
Ainda voltaram? Não me digam que o ti Ari…?
E contámos, sem nada aumentarmos, a aventura do elefante e do mau cheiro que chegou ao Brasil!
- Mas não vos contou que o elefante dele, mal o cheirete chegou ao Brasil, uma jibóia – sabem o que é uma jibóia? – “é uma cobra grande, disse o Antoninho”, pois é, mas esta que eu vi, devia estar escondida na floresta do Amazonas, já ouviram falar? Isso mesmo, uma floresta virgem, devia ser a primeira vez que deixou a floresta, vi-a arrastar-se em direcção ao mar e por aí continuou até que passou toda ara dentro de água, mas levou um dia e uma noite a passar, foi a que foi ao Congo dele e lhe engoliu inteiro o elefante! Gargalhadas dos mensageiros e cada um para sua casa, a correr e a rir!
Eram muitas mais, a maioria delas não recordo e estes exemplares é só para, a esta distância temporal, se pode tirar a lição de que até com exageradas mentiras se aprende.

                                                 III

O ti Ari, mesmo que vivo fosse, não iria ficar melindrado por meter no seu espaço de mestre, uma pessoa que nada tem a ver com ele, apenas são da mesma aldeia e ambos deram a sua contribuição para a cultura geram dos seus conterrâneos. O ti Ari e o senhor Aleixo tomaram a seu cargo a camada juvenil e a outra, de que vou falar de seguida, foi dos adultos, melhor dizendo, das adultas, por serem só mulheres que acompanhavam a aula.
A tia Filomena Caçote, irmã mais nova de minha mãe, terceira dos quatro, três mulheres e um homem, é a pessoa que a seu cargo tomou a classe etária mais idosa para satisfazer seu gosto pela leitura.
Se as duas irmãs mais velhas, a minha mãe e a tia Meliana, não sabiam ler nem escrever, a tia Filomena e o ti Zé Caçote já foram à escola, pois ambos liam e escreviam.
Como já disse antes a minha tia Filomena, entre o normal saber da maioria, ela tinha uma a virtude de gostar de ler. E lia. Nunca soube e agora é tarde para saber, onde ela ia buscar os livros que ia lendo a grupinhos de iletrados, ao serão, nomeadamente Camilo e Júlio Dinis, são destes autores que me lembro melhor, com o Amor de Perdição e as Pupilas do senhor Reitor e Fidalgos da Casa Mourisca.
Quando a necessidade de rigor ultrapassar este quase sagrado e saboroso segredo, eu tentarei saber de onde vinham os livros. Prometo.
Até lá, tia Filomena, vamos ficar com esta grande admiração que sempre tive por si, em primeiro lugar pelo iniciático prazer da leitura que deve ter sido o catalisador do que eu fui anos depois seu seguidor e em segundo por ter andado anos de mal com a sua vizinha mais próxima, de quem era amiga, tudo por minha causa, quando na disputa de um espaço de criança para a construção duma casinha, eu terei bulhado com o Manfredo e o irmão mais novo, o Albertino e que a mãe deles foi a correr separar-nos, pegando-me num dos braços e atirando comigo pelo ar, como quem lança lixo para a rua. Discutiram ambas e assim passaram de amigas a inimigas.
E admiro ainda o avanço das suas ideias se comparadas com as dos outros do seu tempo, ao promover a ida da Julieta para a Guarda a especializar-se como auxiliar escolar e vir de lá com a trança cortada, ou sem trança, provocando a ira do ti Zé Relvas, pai da Julieta e meu tio por afinidade.

Reis Caçote
Dig/23/01/14

O TI ZÉ DO “ORGAL”

                                                           I
                                                                                              
Seu nome era José Monteiro e Orgal seria forma de tratamento, penso que por ter nascido naquele lugar, único pertencente à freguesia de Castelo Melhor e que se situa a cerca de quatro quilómetros e onde passava o caminho que ia dar à foz do Côa, hoje transformado em estrada que vai dar à ponte sobre o rio construída ainda no século XX

Não são muito claros os dados, nem para o que pretendo fixar tem a menor importância, não estou a fazer nem a escrever história, mas sim tentar que se não perca de todo a passagem pela vida de pessoas que, por alguma forma marcaram e contribuíram para o que eu sou, mal ou bem. O que se sabe é que um parente próximo de meu pai, dum outro ramo da família dos Monteiros, se terá fixado no Orgal e de lá terá vindo o ti Zé, que veio a casar com uma filha da família dos Guerras, a ti’Ana Guerra.
Nunca perguntei quem primeiro terá chegado aquele cantinho onde eu nasci, se os meus pais os se o ti Zé do Orgal e esposa, mas se atentarmos que a cumeeira da sua casa está apoiada na parede da de meus pais é possível deduzir qual terá sido.
Ao contrário da nossa, a casa deles tinha só um piso e do lado de baixo havia uma porta que dava, através de uns quantos degraus de escada, para o largo da forja do ti Antoninho Ferreiro.
Conheci os dois filhos do casal, um homem e uma mulher, já entrados na idade, o homem já com um filho da minha idade, o Sérgio, que foi para Lisboa, cerca de um ou dois anos depois de mim e tendo como intermediário o meu irmão Licínio, a pedido da família dele.
O ti Zé do Orgal era um homem maciço, a tender para o gordo e pouco mais fazia do que a ida à horta e esperar pela colheita de umas terras que teria e que não sei se eram muitas se poucas, foi assunto a que nunca dei nenhum valor, talvez porque só tínhamos uma courela e outra maior, juntamente com meus tios paternos, resultante da herança não partilhada, mas não deixando de ser estranho, sendo ele o vizinho mais próximo e ainda parente! A verdade é que dele me terá ficado a recordação da sua faceta menos importante, mas para mim, de certeza, a mais hilariante!

                                                 II

As refeições de quem trabalhava no campo eram sobretudo duas: o almoço, ao amanhecer, suficientemente substancial, em valor energético, para manter alimentado e com energia, um organismo que iria ser sujeito a um desgaste físico violento, quer fosse a cavar, a roçar, a lavrar, a ceifar, a varejar ou outro trabalho, até cerca do meio-dia, hora a que, sobretudo no Verão, era comida a merenda, composta de uma ementa muito ligeira, à base pão com azeitonas, ou figos secos e em dias especiais, umas pataniscas de bacalhau ou um pedaço de chouriça ou presunto, aqueles que tinham criado porco para abater.
Seguia-se normalmente um período de descanso, mais dilatado no Verão, pois não é pera doce aguentar a ferocidade do Sol que pelas soalheiras se incendeia!
A refeição da noite, lá designada por ceia, era novamente mais equilibrada, com o caldo de couve ou outro e algo mais que houvesse, carne de porco da salgadeira, um ou outro enchido, sardinha salgada só havia uma vez por semana e algumas nem aparecia a vendedora, vinda de Foz Côa. Carne fresca era uma raridade! Quem tinha dinheiro para a comprar, porque carne e sardinha não era por avença, era paga no acto, fazia sua encomenda e quando o matador via que a vendia toda lá matava cabrito ou borrego e vitela só mandando vir de Foz Côa ou da Figueira, de Castelo Rodrigo, mas para todos Figueira bastava para saberem de que se tratava.
A ementa variava, naturalmente, de casa para casa, o que será o mesmo que dizer, de família para família: mais rica e variada, as mais abastadas, mais simples a das famílias mais pobres.
O ti Zé do Orgal devia fazer ceias opíparas ou então a ti’Ana Guerra, sua cozinheira, não variava muito a ementa e era frequente, logo após a refeição, ainda na cozinha, ouvir-se uma sessão de imprecações; o que se ouvia primeiro, vindas da ti’Ana “já estás a começa?!Ralhava ela “e logo de seguida ele ria à gargalhada! A ti’Ana protestava, agora contra a gargalhada também! Quando mais alto ela gritava, mais sonora era a gargalhada dele! Ela excomungava-o e ele ria quase convulsivamente! Mudava o insulto e com a mudança parecia mudar também o som da gargalhada e assim, sucessivamente: ele peidava-se e ria, ela insultava-o e ele ria! E voltava a peidar-se!
“Não tens vergonha?! Dizia ela” e a resposta era nova gargalhada dele, agora já noutro cenário, a saírem de casa! O riso comprimia-lhe o volumoso estômago e o desabafo do intestino encontrava a saída natural, o ânus. No verão a maior parte das cenas eram fora de casa, ele sentado num banco corrido, encostado à parede do espaço, também deles, onde guardavam os seus materiais, nomeadamente a lenha e os cereais e artefactos da pequena lavoura que ela fazia.
A vizinhança, anos e anos a ouvir a mesma “sinfonia” não levava a mal e muitas vezes até animava o espectáculo com os seus comentários que para o ti’Zé do Orgal eram como aplausos! Mal reparavam que aquele ventre saliente se inclinava para o lado e uma das nádegas (lá eram nalgas) ficava aliviada do banco, já sabiam que era mais uma “trovoada” a chegar e a maldições da ti’Ana! “Oh, maldito homem, não tem respeito por ninguém, sejam velhos ou novos, é uma pouca-vergonha” Ele ria com esta linguagem da mulher e o esforço de rir, sentado, aumentava as manifestações intestinais.
Um ou outro vizinho mais divertido, sobretudo nas noites de calor intenso, em que todos saiam de casa na esperança vã de uma brisa que não chegava, ajudava à brincadeira, com a sugestão: “os mordomos das festas do Anjo e da Senhora do Rosário bem podiam poupar na despesa dos foguetes e dispensar o fogueteiro, pois o ti Zé resolvia o problema e de borla!” Então as gargalhadas eram gerais e o ti Zé, duplamente divertido, levantava a nalga e libertava um isolado, bem sonoro e redondinho e ela dizia, rindo sempre “lá foi mais um morteiro”! Gargalhada geral daquele recanto, agora sem viv’alma e que nessa época moravam, o ti Zé e a ti’Ana, meus pais, eu e o Ernesto, minha irmã e meus 2 sobrinhos, a família dos Morras que eram quatro, a família Chanisca e três filhos e ainda uma família de quatro também, mas que não recordo o apelido a seguir, do lado do ribeiro, mas com entrada pelo pequeno largo, a ti’Ana do Ferreiro, a dona das terras dos minérios e o marido e pegado a eles a família de um dos filhos, donos de uma das lojas de mercearia e os habituais bens de retrosaria, petróleo, vinhos não vendia e que eram mais quatro.
E o ti Zé de Orgal lá continuava na sua festa e a ti Ana Guerra, fazendo uma guerra de impropérios contra o marido: “ oh, desgraçado, era já mais um lamento da ti’Ana, cansada” e a resposta era mais um foguete de várias bombas! Foguetes do ti Zé, insultos da ti’Ana, horas a fio, noites a seguir a outras, até que, já cansado e aliviado, despedia-se “ até amanhã, fiquem com Deus”, mas não sem antes fazer estoirar mais um ou dois no trajecto até casa e dizendo, rindo com vontade, “estes são para a sossega!”
Por vezes a ti’Ana, cansada de tanto barafustar, ia ditar-se antes do marido, mas a festa continuava e ele comentava
“ Sem ela a ralhar até os peidos não saem tão bem!”

Reis Caçote
Dig/25/01/14


              NOTA EXPLICATIVA DE APRESENTAÇÃO DO PEQUENO GRUPO DE                                PESSOAS, NÃO RESIDENTES NA ALDEIA E QUE PERMANECIAM O                      TEMPO QUE QUERIAM E QUE ERA SEMPRE CURTO E QUE                                                        DESIGNEI POR “FORASTEIROS”
                                                          
Foi ponto assente antes de me decidir a falar de alguns momentos, lugares, pessoas e ambientes que contribuíram, cada um de sua forma, para aquilo que hoje sou, com defeitos e qualidades como todos e um ou outro pormenor que será meu apenas.
Das pessoas que mais me marcaram durante a infância, achei que devia incluir o traço que o caricaturista apanha de cada rosto e sem criar o que não existia, uma distinção entre as pessoas, mas tão só a forma distinta que era adoptada voluntariamente por cada um, criando duas classes que outras diferenças não seriam notáveis se não fosse a posse de mais ou menos terras de cultivo. Bem ou mal está feito, um conjunto de Senhores e Senhoras e outro dos Tis e Ti’as.
Mas faltaria um outro pequeno grupo de pessoas não residentes, que fariam uma vida errante, sem residência conhecida e que tal como apareciam do mesmo modo sumiam. Por terem esta característica nómada estive indeciso em os designar por cometas ou forasteiros, não me agradando qualquer deles, mas ficando pelos “Forasteiros” que em nada tinham a ver com os do Oeste americano e que marcaram a adolescência de milhões de jovens como eu fui. Vamos aos tiros:

PRIMEIRO FORASTEIRO

Foram vários, uns quase residentes e outros tão fugidios como estrelas cadentes.
O quase residente que melhor recordo deram-lhe, não sei quem nem onde, o nome de Pan Pan.
Penso que aquela designação deve ter sido adoptada, na falta de nome, por ser a única vocalização que o acompanhava como um ritmo de fundo musical e se assemelhava com um pan pan.
Sofria de alguma perturbação mental, não violenta, apenas reagindo mal quando assediado pelos garotos que o seguiam e entoavam uma cantilena onde entrava o pan pan e que era: “o ti pan pan come cebola albarrã!”
Era aquele bolbo, muito frequente em algumas terras e que fazia parte da flora endémica da região, que ele trazia dentro do saco velho e sujo e que atirava para casa das pessoas quando lhe davam de comer ou beber, no seu perturbado cérebro devia servir de recompensa! Recordo que dinheiro não aceitava!
A pessoa que ele visitava, mal chegava, como no cumprimento de uma promessa, era a senhora Rosinha, dona da mercearia a trinta metros de minha casa e que seria a mais abastecida da aldeia.
Por regra ela recebia-o com a delicadeza que nela era natural e por vezes mais se parecia com missão; servido, ele retribuía com um ou dois bolbos da referida planta.
Vestia andrajosamente e nunca soube qual a sua naturalidade, nem a sua idade, aparentando ter mais de cinquenta anos.
Ainda por terá ficado quando parti para Lisboa, não sabendo mais noticias dele ou de outros.


SEGUNDO FORASTEIRO

A certa altura apareceu um homem, ainda novo, também sem se saber de onde vinha, que apenas pedia água e a bebia como de a não bebesse há dias. Durante a sua curta passagem pela aldeia, nunca alguém o viu comer, mas beber foram litros vários que foram testemunhados.
Eram muitas as estórias que as pessoas da aldeia, na falta de outro entretenimento, inventavam: vivia torturado por não ser correspondido pela mulher que ele amava; ou uma versão mais “pecadora” que teria sido traído pela sua amada!
Como ele não ouvia estas e outras desventuras que a criatividade alimentava, nunca as afirmou ou negou. E duvido que o fizesse, caso ouvisse alguma das versões.
A sua passagem por Castelo Melhor foi um pouco como um viajante no deserto, foi o seu oásis para se dessedentar e comer ele teria outras fontes.
Este forasteiro não deve ter encontrado motivo de interesse e, tal como chegou, deve ter partido, mas ninguém viu!

Reis Caçote
Dig/27/01/14


TERCEIRO FORASTEIRO

Outra estrela de pouca duração foi a de um miúdo, cerca de doze anos, franzino, vindo de não se sabe de onde, e que cantava, para o meu ouvido, tão bem como o miúdo espanhol, o Joselito, que na altura estava em voga e que nas feiras aparecia sempre algum conjunto, normalmente um a tocar e outro a cantar, que o imitava, bem pior que o miúdo que pela aldeia passou.
Não devia ser de muito longe, apareceu mais que uma vez, escoltado de imediato pelos pequenitos da aldeia, entre eles eu, mas que de cantor nada aprendia; deliciou, as vezes que apareceu, miúdos e graúdos numa zona do mundo onde pouco se cantava, a não ser quando ranchos de mulheres trabalhavam, mais na apanha da amêndoa e da azeitona e algumas vezes no lavadouro quando os ribeiros levavam ainda água limpa para lavar e enxaguar.
O miúdo desapareceu de vez, ou regressando a casa ou mudando de rota, espero que para melhor que o Nordeste beirão!

Reis Caçote
Dig/27/01/14


QUARTO FORASTEIRO

Este era tão misterioso como um fantasma, mas lhe chamavam “Catalão”.
Penso que nunca alguém o viu, mas eram várias assuas fisionomias e muitas as aventuras.
Alto, moreno, vestido de preto, de botas de cano brilhantes, chapéu de aba larga, aí com uns incertos trinta anos; ora aterrorizava os injustos, ora protegia os injustiçados por onde passava, mas por todos sendo evitado.
Quando se pretendia saber quem o tinha visto era sempre alguém que outra pessoa conhecia e de quem tinha ouvido as aventuras, tal como eu faço agora em relação à memória.
O Catalão era a sombra e o Sol das mentes mais ou menos criativas que não vão além da rotina do dia de trabalho.
Talvez por isso ele era sempre avistado e nunca visto com aquela aura de mistério, mas que as mais atrevidas mentes o recriavam com ar sombrio, a aba larga do chapéu preto, olhos pretos e frios, lá no alto do seu cavalo, preto também, de pelo luzidio e olhar inquieto, a contrastar com o do cavaleiro, sempre calmo, frio e neutro.
Vi-o sempre, durante as descrições, a atravessar o horizonte distante, recortado num poente de fogo, uma imagem tão nítida como era a voz do narrador!
Saí daquelas terras há anos vários, muitos, mas continuo a ver, como antes via, nítida e perturbante, a esbelta figura da composição plástica equestre, formada pelo solitário Catalão e seu negro cavalo em pose elegante a movimentar-se entre o trote e o galope!
Hei-de voltar a visiona-los! Um dia, em breve, do futuro!

Reis Caçote
Dig/27/01/14
COPIADA DE ALGURES NO GOOGLE +

As minhas raizes e as das amendoeiras, se confundem!


É  uma inquestionável verdade!

























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