A MARIA ANASTACIA É UMA CONTERRÂNEA, DE IDADE NÃO DEFINIDA, SOFRENDO DA DOENÇA DE "TOURETTE", SE NÃO ESTOU EM ERRO, DA QUAL SOUBE QUE ESTEVE OU ESTARÁ, INTERNADA NUM LAR DA MISERICÓRDIA, NAS CHÂS OU MUXAGATA! NUM SUBTITULO ESCREVI: UMA VIDA QUE NUNCA FOI!
MARIA
ANASTÁCIA
Uma vida
que nunca foi…
I
Os meses
de Verão – Junho, Julho, Agosto e parte de Setembro – naquela faixa do País,
junto à fronteira com Espanha, que vai, ou vem, como for mais cómodo, do
estremo Nordeste do Distrito de Bragança, atravessa o rio Douro e se estende
ainda por diversos quilómetros do distrito da Guarda, sempre junta à raia, são
de todo desaconselháveis a quem não esteja bem habituado e até mesmo a estes,
em certas horas do dia.
Ou aos
que, como o Silvério e eu, por exemplo, que desde há muitos anos, por razões
que todos devem saber, até melhor que nós sabemos, deixámos o triângulo formado
pelo rio Douro e pelo seu afluente da margem esquerda, o Côa.
Só mesmo
quem tenha que ali estar ou passar é que se aventura! O Sol, não sei por que
razão especial, mas que deve ter muito a ver com a limpidez da atmosfera,
parece descarregar ali as suas fúrias astrais, dissolvendo em vapores
ineficazes a pouca humidade e sem um mínimo de dó tenta, e muitas vezes
consegue, secar tudo onde acerta! Sim, por que vai acertando sempre, mais nuns
sítios que noutros, mais nas soalheiras, encostas do Sul e Poente, por isso
lhes chamam soalheiras, do que as voltadas a Nascente e Norte.
Não
tinha previsto este ano ir para aqueles lados, mas a ida da minha única irmã, a
Maria Juliana, para o lar da Misericórdia de Foz Côa, agora não é já Vila Nova
de Foz Côa como o fora durante séculos, por ter ganho o estatuto de cidade e
aos meus conterrâneos, que sabem destas coisas que eu não sei e saberão outras
que eu não entenderei também, nem faço esforço para entender, terão achado que
se é cidade não deve ser vila e, ufanos, duma só penada, suprimiram o Vila Nova
de e agora já se não sabe se é Nova, de meia-idade, ou se, o que é mais certo,
anda já pela terceira idade, designação moderna, culta e educada que passou a
ser a dos antigos velhos! Durante o pouco tempo que lá estive, há dias, só vi
idosos (os velhos antigos acabaram), dentro e fora do Lar. E poucos! Ou porque
estavam resguardados em casa ou em alguma sombra onde passasse uma brisa,
daquelas que não dão sequer para acordar os espanta espíritos ( e neste caso
ainda bem porque não faço a mínima ideia do que possa suceder com um espirito
espantado, porque nunca vi nenhum e nada sei sobre espíritos, a não ser aqueles
dichotes que nem parecem de gente culta, “estás com o espirito da mula” ou” não
tens espirito aventureiro” ou ainda e aqui sim, mais elegante e educado, “estás
muito espirituoso!” neste caso deve sempre levar um ponto de exclamação ou de
admiração, como eu mais gostaria), por mais leves que sejam os seus elementos.
As
ovelhas, as poucas que por lá andam espalhadas pelas encostas empinadas, a
balir tristezas e cansaços, mesmo que, naqueles citados meses de Verão, já
aliviadas dos seus casacos de pele de ovelha, melhor dizendo, de lã de ovelha
ou de carneiro, que estes também os usam, por muito carneiros que sejam o frio
e o calor também os não excluem, pela tosquia de Abril, a certas horas do dia
daqueles meses de Verão, quando não encontram no trajecto lento e incerto, uma
ou mais árvores para acarrarem, encostando-se uma às outras, escondendo quase
só a cabeça dos ardores do Sol, mesmo que tal gesto as force, durante horas
seguidas, a inalarem os odores fecais das uma das outras e que nesta espécie
das badanas as fezes se vão acumulando à volta do ânus e aos poucos, conforme a
lã vais crescendo, vai formando pequenas bolas alongadas e que parecem
andaluzas castanholas mal ocadas, quando em movimento.
Tudo é
preferível a apanharem com o sol na cabeça: ou enlouqueciam, não como as vacas
mal comportadas e por isso sequestradas nos civilizados estábulos, porque a
mioleira, com tais raios, o mais certo seria ficar cozida e pronta a servir aos
apreciadores desta iguaria e que desde há muito era recomendada pelos
“pediatras” às crianças tenrinhas ou de tenra idade, como sucedeu com os meus
filhos.
II
Voltando
a Foz Côa e à mudança de nome. Pequena, mas mudança.
Dizia eu
que os entendidos lá da zona, por iniciativa própria ou sábio conselho externo,
pouparam umas quantas letras ao nome da terra na sua passagem de Vila a Cidade.
Bem vistas as coisas, não terá sido nada de tão criativo nem transcendente, se
tivermos em conta que em algumas freguesias do concelho, nomeadamente aquela onde
nasci, quando se referiam à sede do concelho era sempre “vou a Foz Côa fazer
isto ou aquilo” e não nomeavam o cansativo início de Vila Nova de, parecendo
até que havia duas vilas, a Nova e a velha, coisa de que nunca se ouviu falar.
E até
acho muito bem! Quando alguma coisa nasce, não nasce velha e esta Vila, quando
nasceu, só podia ser nova e nova ficaria se não fosse a ainda mais nova ideia e
execução da mudança.
Se
calhar como Vila Franca das Naves, Vila Franca de Xira, Vila Nova de Famalicão,
Vila Verde de Ficalho, Vila Real de Santo António e tantas outras, como Vila
Nova de Ourem, aqui pertinho.
Uns
entendidos deixaram ficar o nome que tinham, outros alteraram-nos e assim é que
é bonito, criativo e bem democrático!
Ou terá
sido por uma questão de estética que uns deixaram e outros apagaram?!
Apagar
as “Vilas Novas”, como as de Gaia, nem fica de todo mal; o mesmo entendimento
para Foz Côa e Ourem! Não seria tão elegante se os de Vila Franca de Xira
resolvessem apagar a “Vila” e ficaria aquela coisa meia-coxa e sem graça
“Franca de Xira”! Franca…de …Xira! Que horror! Era o mesmo que fazer
desaparecer os
Campinos, toiros e
fado
E esperas de gado
E até o
colete encarnado!
E com
Vila Real de Santo António o atentado seria ainda mais desastrado! Ficava Real
de Santo António, porque só Santo António, se ficasse, era o fim da macacada!
Santo António não é nome de terra, é de Santo! Até, ali no antigo fora de
portas de Lisboa, nasceu um santo António, mas para ser de alguém, nesta fúria
desvairada de tudo ter dono, entregaram-no aos Cavaleiros! De onde vieram estes
cavaleiros? Como a não quero nem de borla, fiquem com ela e vos faça bom
proveito.
Quem
previu esta açorda com montes de anos de antecedência foi lá o norte de
Portugal que, sem caganças, chamou apenas Vila Real e assim continua como
cidade, pois ficar só Real, em tempos de República –ahahahah! Republica! –
mesmo a rir não ficava bem e o mais certo era pensarem que estávamos a ser
colonizados pelo Brasil e pela mão do Presidente Lula e o seu Real que o tempo
não era de cruzeiros…
Mas cá
para mim, voltando a Foz Côa, esperando que ninguém me piça, do que os
decisores quiseram ver-se livres, claro que não o confessam e eu também não
garanto que tenha sido por esse motivo, foi do dito que circulava na freguesia
onde nasci, Castelo Melhor, e era assim:
Muxagata das Tomatas
Vila Nova dos
Ladrões
Almendra dos
Urtigões
Castelo Melhor dos
Pimpões
O melhor
é ficarmos por aqui, o assunto já deu o que tinha a dar, e não deu pouco, cada
um fez e fará como entende e isso é que é lindo, democrático, liberal, tudo o
que há de bom e culto, para não dizer outra coisa, que seria disparate pela
certa, pois é com acentuado pendor para ele que o raciocínio descamba.
III
Como a
Rua da Junta e arredores, Castelo Melhor, estava a ficar despovoada (a rua e a
povoação inteira) pois só por ali andavam, como resistentes fantasmas, uma ou
duas dezenas de velhos e um deles me confessou que desde há vinte anos só
nasceu uma criança, filha de um dos últimos professores para ali desterrado.
Actualmente
não há alunos nem professores; fecharam a escola, como fecharam milhares de
outras por esse Portugal que foi, pátria de Heróis e de Santos, de Sábios e
Descobridores, de Camões e outros Poetas, Artistas e Cientistas, Toureiros e
Fadistas e de Adamastores vencedores!
E agora?
Pergunta o náufrago daquela ilha da televisão – Maré Alta – e ao ouvir, já a
salvo no navio de cruzeiro, que o Império, berço de tão nobre gente, se
desmoronava e sem brilho, como todos os impérios e o berço se esvaziavam, o
país se transformava num Paraíso de ladrões, vigaristas, de trastes de todo o
tipo, de onde muitos vão fugindo e outros abandonando por nele se sentirem tão
mal, o naufrago grita
“ Eu não quero ir para a
ilha, eu vou voltar para a ilha” e atira-se ao mar, enquanto outros, mais
reais, se fazem às estradas da terra, do ar e do mar!
A
Portugal, só de fé…nem de férias!”
IV
A
solidão que invadia a Rua da Junta e todo o povoado, ou melhor, todo o
despovoado, que nem o achamento das gravuras rupestres mudou, como garantia o
picareta Guterres do alto da sua bocial papada, deixa sem protecção, sem abrigo
não, isso é o que não falta por lá, a cair uma boa parte, mas abundância há, ao
ponto de a Maria Juliana, há meses, ter dado uma queda e se quizeram fazer um
simples RX que o clinico tinha recomendado, foi só dar um saltinho à sede do
Distrito, à Guarda, a cerca de oitenta quilómetros de distância! De ambulância!
Cara radiografia!
A idade
da Maria Juliana, acima dos oitenta, justificava a ida para o Lar.É verdade
que, durante o dia, havia o Centro de Dia, de que sempre gostou, mas aos
fins-de-semana e à noite não funciona, por isso é Centro de Dia. Tudo linear.
Eu terei contribuído
também com a opinião de que fosse logo que tivesse vaga, por ser perigoso ficar
sozinha todas as noites, uma vez que os vizinhos mais próximos, a família
“Currala”, todos de idade avançada também, ficam a cerca de cinquenta metros e
dificilmente ouviriam um seu pedido de auxílio.
Em Fevereiro deste ano
de dois mil e oito, lá se mudou, de corpo só, de alma não, para Foz Côa.
Cada vez que a
contactava por telefone ia dizendo que estava bem, que o Ernesto e família a
visitavam uma ou duas vezes por mês, sempre que iam a Castelo Melhor e que o
Licínio já a tina visitado, incluído numa excursão sénior que o deixou em Foz
Côa e o autocarro seguiu com os restantes excursionistas e depois, no regresso,
foi busca-lo. O Licínio já não conduz.
Mas algo ficava sempre
no ar e que me levava a pensar que, ao contrário do que afirmava, estava a ser
difícil a adaptação, o que me agradava e preocupava; agradava-me, por revelar
da sua lucidez e o sequestro do Lar não se coadunava mesmo nada com o seu
sentido de independência e porque, como diz o ditado “galinha de campo não quer
capoeira”; e preocupação porque se ela rompesse com a situação não havia
regresso, voltando tudo ao princípio.
Havia que confirmar.
Sem demora.
O Mateus, meu único
neto, de quase dezassete anos, mostrava alguma vontade em voltar a Castelo
Melhor. Não é temperamentalmente efusivo e as suas curiosidades, fora de duas
ou três áreas de interesse, são pouco mobilizadoras.
Aproveitei para propor
uma ida à aldeia, juntando o útil ao útil, já que ao agradável seria descabido.
O calor esperado não seduzia e os esperados desabafos da “sequestrada” Maria
Juliana não ajudavam ao entusiasmo.
Num dos primeiros dias
de Julho, coincidindo com a minha folga, fizemo-nos à estrada e percorridas as
três centenas de quilómetros lá fomos parar a Foz Côa, já pronta para o “duche”
com as cigarras a “cantar” nas sombras dos troncos das árvores.
Perto de Coimbra ainda
apanhámos chuvisco, mas quanto mais avançávamos para o interior mais seco e
quente era o ar.
A Maria Juliana não
esperava visitas, ficando espantada com o nosso aparecimento e logo nos guiou
para lugar que seria mais sossegado. O esperado desabafo logo começou,
escolhendo a Lena como interlocutora e depressa fez escapulir duas idosas
“coscuvilheiras” duma forma bem branda que me espantou. A curiosidade é um bem que
não morre e bem mais apurada fica com o isolamento!
Durante o almoço, num
dos restaurantes da cidade, continuou o desabafo e pareceu-me bem mais
tranquila.
Como parte dos
assuntos versados eram por min conhecidos de outras conversas, só atentava mais
quando algo de novo ou já esquecido me soava.
Não quis ir connosco a
Castelo Melhor, alegando que não dava tempo nem tinha vontade de visitar todos
os mais próximos e os que não visitasse ainda iam ficar “enchicharados” , por
isso é melhor não ir.
Fomos os quatro e
prometemos que no regresso voltaríamos ao Lar para nos despedirmos.
V
A Lena foi
aproveitando, como quis, para fotografar o que ia achando interessante, última
actividade que a galvaniza desde há uns dois anos.
Espreitámos o edifício
onde funciona o Núcleo Paleolítico das gravuras, antigo armazém do senhor José
Madeira e por alcunha “Zé Laco”, onde meia dúzia de pessoas, portugueses e
estrangeiros, aguardavam o transporte para chegarem ao Campus, com visita
guiada.
Uns com ar
descontraído, outros com ar cansado que eu atribuí ao calor.
Mais uma vez adiei a
ida aos Prados, só ou acompanhado, mas a promessa feita é válida, aguardando
melhor dia. Mais fresco.
Já no momento do
regresso a Foz Côa, em conversa com os tais moradores que restam na Rua da
Junta, o ti Paredes e a Maria Amélia, fiquei a saber que tinham comprado a casa
do senhor Abel, pegada à deles, uma das três ou quatro mais bonitas da aldeia,
como eram a da minha tia-avó Amélia Caçote, irmã do meu ídolo avô Joaquim dos
Reis Caçote, de quem abusivamente vou usando os apelidos, Reis Caçote, para
subscrever as minhas aventuras, quer no campo da escrita, quer no das artes
plásticas, mais a pintura; a da professora D.Maria da Graça Pires Rodrigues,
junto à igreja e parece que nenhuma mais, a não ser a do meu padrinho, mas era
outro o estilo, mais apalaçado.
Disseram ainda que não
tinham comprado o lote intermédio da família da Maria Anastácia, por
divergências que existem em relação à mesma.
Mas porquê? Perguntei,
curiosíssimo.
- Porque devido aquele
problema dela e ao falecimento da irmã, tem sido difícil chegar a acordo e,
agora, tal como as coisas estão, fomos perdendo o interesse!
Mas a Maria
Anastácia!...
- Ainda é viva, está
no Lar das Chãs, onde esteve com a irmã, entretanto falecida. E está de tal
modo diferente e melhor que ninguém que a conheceu antes acreditaria se a
visse!
Esta foi a notícia
mais interessante e inesperada ou interessante por inesperada que acabava de
ouvir! Havendo a todo o momento, nesta era da comunicação instantânea, milhares
de noticias curiosas, por um ou outro motivo inesperadas, desde as mais
entusiásticas às mais desesperantes, estas bem mais frequentes que aquelas, a
da Maria Anastácia é de “primeira página”. Viva e irreconhecível no sentido de
melhoria.
As noticias são
registos quase só de eventos passados, alguns sem direito a registo e muitos
sem direito a recurso nem recuo. Logo, passam e boa viagem.
A da Maria Anastácia,
que poucos conhecem, à Maria e à noticia, é tão importante para mim, ou melhor,
é mais importante para mim do que a da morte do que do russo escritor
Soljnitsine, prémio Nobel de Literatura, ontem ocorrida.
Só para registo
histórico futuro hoje é dia quatro de Agosto do ano dois mil e oito. Que me
desculpem os seus familiares e admiradores, mas a franqueza, quando dela
podemos usar, continua a ser muito bonita.
VI
Quando nasci já a
Maria Anastácia pelas ruas de Castelo Melhor andava. Não por todas as ruas, ou
por decisão própria, o que não creio, ou por limitação familiar, mas todas as
ruas estavam disponíveis a quem quisesse e se limitações havia eram só devidas
ao mau estado do chão, só meia dúzia estava calcetada e mesmo estas em estado
de lástima por falta de manutenção.
Até para os animais
domésticos, incluindo galinhas e porcos, as ruas eram de seu uso corrente e só
o não eram na totalidade porque a aves e suínos não sobrava curiosidade e
atrevimento para aventuras de longo alcance. O que eles buscavam na sua
deambulação diária era mais para procurarem algo mais ou algo diferente para
completarem a sua dieta alimentar, nem sempre abundante e muito menos variada.
O cardápio era sempre o mesmo, alguma cevada, umas folhas de couve ou outro
legume e uma mistura de farelo com couve cortada miúda.
Os que tinham menos
liberdade eram ovinos e caprinos, muares, equídeos, asininos e bovinos. Os cães
e gatos, salvo raras excepções e atitudes menos elegantes de defesa do
território, tinha toda a liberdade que queriam e do excesso de uso dela sofriam
muitas vezes as consequências, muitas vezes provocadas pelo animal mais
evoluído: o bicho homem. Tal como hoje, por razões outras. A bestialidade é a
mesma, agora mais refinada.
Desde a idade de fixar
rostos, que não o meu, pois os espelhos em casa eram poucos e estavam altos e o
do barbeiro só se olhava uma vez por festa, pois a avença anual tinha as suas
regras e eram respeitadas.
Entre os que ficaram
registados na memória e são muitos, está bem nítido o rosto e estrutura fisionómica da Maria
Anastácia.
Da minha casa à dela
não serão mais de sessenta metros; uns trinta até à da Cândida e outros tantos
até à rua do Passadiço, sendo logo a primeira casa da direita ao virar da
esquina, em direcção à rua Larga.
Era uma casa muito
humilde, agora uma quase ruína como tantas outras, de uma família desleixada
por formação ou deformação. Azares não faltaram a esta família de cinco
pessoas.
A Maria Anastácia
sofria de doença congénita, cuja designação clinica não averiguei
propositadamente, sendo as manifestações mais visíveis o posicionamento
corporal, dobrado pela cintura, quase formando um angulo recto em que o vértice
seriam as nádegas e a cabeça, para poder ver um pouco além dos seus pés,
assumia a posição da tartaruga ou cágado, opção por este ser mais conhecido que
aquela; um fio de baba escorria sem cessar para o queixo, estando este
permanentemente ferido, sobretudo nos gélidos invernos, chegando mesmo a
gretar.
Vestia sempre uma
blusa acinzentada, por vezes quase sem cor, pelo uso e lavagem frequentes e uma
saia quase da mesma cor, comprida quase até aos pós se fosse vista na posição
erecta, por isso a frente ia arrastando pelo chão, seco ou enlameado, conforme
o tempo, empapada quando o tempo era de chuva.
Nunca falava e só
muito raramente emitia sons indefinidos, mas que a família devia saber
interpretar. Eram mais audíveis quando a mãe ou alguém a contrariava.
A casa da família era
como muitas outras da aldeia: um piso térreo destinado aos animais de trabalho
e arrumação dos materiais de trabalho na agricultura e um piso acima para os
humanos, bem pouco dignas as condições de habitação e também pouco humanos os
humanos nalguns casos.
O acesso ao piso
superior era feito por uma escada, apoiada de lado na parede e por baixo,
formando um polígono trapézio rectângulo sendo em lajes de xisto o telhado do
polígono e também cada um dos degraus da escada. Era por aquele espaço que se
acedia à habitação e por debaixo das lajes do balcão eram a habitação nocturna
de galinhas e nalguns casos como o de minha casa, era também pocilga. Os
animais de trabalho de campo e o de todo o serviço, o burro, tinham uma entrada
própria, isto na minha casa.
No caso da Maria
Anastácia a laje cobria a entrada para o estábulo. Neste espaço era
frequentemente aprisionada a Maria de que tenho vindo a falar, ou quando os
pais tinham que deslocar-se para mais longe ou nos ataques de fúria mais
violentos.
Nunca soube que idade
teria e sempre me pareceu ter a mesma idade desde que vi até deixar de a ver,
devido às minhas mudanças e permanência bem longe de Castelo Melhor. Só por uma
dúzia de vezes, nem tanto, voltei e em algumas nem terei visto a Maria
Anastácia! Mas sempre me pareceu igual, sem mudanças.
A vertigem da vida iniciou-se
com a ida para a tropa, Angola, depois o casamento, estive quase uma década sem
ir a Castelo Melhor e quando lá estive não me recorda de a ter visto ou por ela
ter perguntado.
As famílias tinham
sofrido alterações profundas: o êxodo da emigração por um lado, a migração que
sempre houve um pouco e se acentuou também e a definitiva despedida de muitos,
pulverizaram as famílias quase todas; até as de mais posses, igualmente
envelhecidas, se não engrossaram o caudal da migração e da emigração, foram assistindo
à partida dos mais novos em busca de outros horizontes e eles, mais velhos, por
ali foram ficando à espera da chamada do além e alguns desejando que ela
viesse.
Todos os elementos da
nossa família, excepto inicialmente a Maria Juliana e a tia Amélia, minhas irmã
e Mãe, partiram para bem longe, uns a trabalhar nas indústrias do único
industrial da freguesia e outros para o Porto e Lisboa, em diferentes afazeres,
mas deixando para trás a terra e o seu Castelo, mesmo que do Melhor se
tratasse.
O que não faltam são
castelos por esse mundo fora! De pedra muitos e de ilusões a maioria deles.
A Maria Juliana, minha
única irmã, só mais tarde se aventurou para terras de França, onde já estavam
filha e genro e filho e nora e netos também.
Não foi uma emigrante
como os outros, foi mais para ajudar os que já lá estavam; e terá ajudado
bastante, mas todos sabemos que nem sempre a utilidade do que cada um vai
fazendo é em tempo útil reconhecido. Vá lá! Como ela costuma rematar as
conversas que já não são.
A emigração, nos
primórdios da década de sessenta do passado século era só para homens, o
trabalho era pouco recomendado a mulheres e a viagem ainda o era menos.
Assim, ela, Maria
Juliana foi ficando, viúva desde quase se casou e assim ficou até agora, pelo
menos sessenta anos passados, ou quase.
Fazia companhia à
nossa Mãe, viúva também desde o último mês de mil novecentos e sessenta e três,
treze dias antes do meu casamento e dois meses após ter regressado de
Angola. Do que eu queria falar mesmo
era da Maria Anastácia, mas as conversas, diz-se, são como comer cerejas, e
descambei para assuntos que, sendo pertinentes, não estão directamente ligados
à que devia protagonizar este registo. Na verdade o que sei da Maria Anastácia
é muito pouco, o que seria a sua biografia só mesmo entrevistando quem já não
dá entrevistas há muitos anos. Vá lá!
VII
As condições de vida
da Maria Anastácia eram tão más e tão infausta a vida da família – o pai
alcoolizado e o irmão com perturbações mentais, ajudante espontâneo de moleiro
de azenha, no Rio Douro, onde veio a encontrar a morte, por afogamento, depois
de se desequilibrar com um saco de trigo às costas e caindo no ponto onde a
corrente logo o arrastou e depositou num fundão que havia junto ao túnel, a
jusante da estação de comboios, vindo a aparecer, devolvido pelo rio, uns dias
depois.
O destino dele foi
sempre esse: a devolução.
Depois de tantos anos
passados sem ouvir falar daquela família, pensei que o mais natural morrido
também as duas irmãs que restavam, sumindo-se no tempo a semente da família do
ti Zé Manel.
A inesperada notícia
de que estava viva, não sei explicar o porquê, trouxe-me recordações muito
nítidas daquele percurso; e o facto de me dizerem que a Anastácia continuava a
viver e sua condição melhorou, a ponto de se manifestar com palmas quando algo
lhe agradava, o meu sentimento de culpa pelo olvido, ficou um pouco mais
atenuado.
A Maria Anastácia não
batia palmas, eram os punhos e as mãos meio abertas, pareciam alheias à
representação, assim como duas folhas que desconhecem a sua utilidade.
Era bem mais o que
gostaria de escrever sobre esta minha conterrânea sem idade e também sem
ilusões ou sonhos, mas inventar não faz parte deste tipo de escrita, nem do meu
objectivo inicial e que era de penitenciar-me de tão profundo alheamento da
recordação viva que ficou.
Fica só a ténue
promessa de ir um dia visitá-la ou então, como costumo fazer a todos os que,
duma forma ou doutra, fazem parte do meu itinerário mental e emocional,
preferir ficar com a recordação da imagem que marcas deixou.
Seja qual for a
decisão final, desejo-te, Maria Anastácia, para o tempo de vida que terás, uma
maior qualidade desta vida, estejas onde estiveres.
E de alguma felicidade
se a tua sensibilidade a compreender, mesmo que poucos ou nenhuns saibam,
exactamente o que é felicidade. Eu incluído!
Um pouco como
corolário: o ti Zé Manel, pai da Anastácia, foi quem despoletou a confusão que
esteve na origem da expulsão e apedrejamento do Senhor Bispo a primeira e única
vez que um Prelado visitou o rebanho de Castelo Melhor!
Reis Caçote
Jul/2015
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A CASA DA MARIA ANASTACIA NÃO ESTÁ VISIVEL |
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O BRASÃO DA ALDEIA, DA MARIA ANASTACIA E MINHA TAMBÉM! |
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