DIZER APENAS QUE GOSTAMOS OU NÃO GOSTAMOS DE UMA PESSOA, LUGAR, ARTISTA, ATÉ AO LIMITE, NUNCA FOI A FORMA, NEM A FORMULA, QUE GOSTEI OU ADOTEI! TAL COMO AS FÓRMULAS SÃO MAL VISTAS, COMO SE FOSSEM SECRETAS OU INDECIFRÁVEIS. UM TEOREMA SEM OS COROLÁRIOS, SERIA UMA FÓRMULA SEM GRANDE VALOR!
ALGUMAS NOTAS PARA CORROBORAR O QUE SINTO, É O QUE TENTEI FAZER: DESORDENADAS:
´ ANGOLA II
I
Gostava de ter
conhecido Luanda, no tempo em que o senhor Paulo de Novais a fundou. Talvez
ficasse a perceber em que consiste o ato ou conjunto de atos a que uma fundação
obedece; ou, pelo menos um ponto de partida lógico, para que outra explicação
tivesse que não a mística que a envolve.
Segundo consta, a
cidade tomou o nome da baía que já lá estava, assim como estariam pessoas e
outros seres vivos; bem menos as pessoas, naturalmente, do que as que hoje
habitam Luanda e hoje bem mais do que as que a habitavam, no inicio da década
de sessenta, do século XX.
Mas uma coisa pode garantir: a baía, da qual a cidade tomou
o nome, não estava, como agora está, nem no século há não sei quantos anos,
podendo ter ganho em harmonia arquitetónica o que terá perdido em beleza
natural e em liberdade de mar.
Foi quase sempre assim: a natureza perdendo de alguma
forma, para o homem se convencer que ganhou de outra. Ou perdeu!
Como eu lá não estava, com o
senhor Novais, em mil quinhentos e setenta e cinco e ainda bem que não estava,
senão quem estaria hoje a discorrer sobre o assunto, vários séculos passados
Ao
menos, assim, posso imaginar a baía a espraiar-se, suavemente, pelas margens
que vão desde a colina do forte, passando pela falda da outra onde foi
construído o palácio do Governador, continuando pelo inicio das Ingombotas e da
Senhora da Muxima e, já mais perto do mar aberto, na base da falésia, quase a
pique na década d sessenta e que tem lá no alto o cinema Miramar, seguindo-se
um planalto onde foi construído o bairro com este nome, só vivendas com o
aspecto exterior de serem habitadas por gente abastada.
Do que
deu para perceber, Luanda está edificada sobre dunas, não consolidadas a sua
maioria e que devem ter-se formado com o decorrer dos séculos, com o mar a
recuar para novas arrumações, exceto, talvez, a colina do forte e a do palácio,
únicas que parecem de consolidação antiga. As outras, pelo que fui observando
ao longo do tempo, ficou a impressão de serem mesmo só areia e pedras
sedimentares, de pequenas dimensões, características de muitas praias e antigas
praias.
Senão
vejamos, mas com os olhos de sessenta e um a sessenta e três:
- a
encosta que vai da Maianga até ao inicio do planalto, onde construíram os
quarteis e bairro residencial de militares do Quadro Permanente, designada por
Alvalade, apenas com uma vivenda inacabada e a obra parada era, como disse
antes, formada por uma mistura de areia com a terra avermelhada e que, mal caía
uma chuvada mais intensa, a mistura acompanhava as águas e as pedras, conforme
lhes ia faltando o apoio iam rolando, algumas até ao tal rio seco, outras mais
pesadas ou mais teimosas, paravam e ficavam a aguardar novo ataque de lágrimas
das nuvens;
- a
falésia do Miramar, já talhada quase a pique e em permanente ameaça de mudar
para cota mais estável, terminava um pouco acima do patamar formado pela linha
e estação dos caminhos de ferro de Benguela, e logo a seguir o Porto de Luanda
e a avenida marginal! Devem ter sido estas construções, tal como estão
situadas, que cortaram a duna para se poderem instalar;
- Em
sessenta e dois sucedeu um pequeno dilúvio, se comparado com o bíblico, da arca
e do Noé, o dono da barca das espécies, que não vi e a história é por demais
inverosímil para que alguém embarque nela, na lenda da Barca! A mim pareceu ser
muito grande, pela balbúrdia que provocou em tão pouco tempo! Começaram a cair
as primeiras e gordas gotas quando estávamos a chegar ao Belo Horizonte para o
almoço. Logo a seguir juntaram-se, como irmãs gémeas, filhas da mesma nuvem que
devia cobrir toda a cidade e para além dela. Sentámo-nos à mesa para nós
reservada, junto a uma das janelas de frente para a rua e qual não foi o meu
espanto ao olhar e não ver o Bracarense, a cinquenta metros de distância, como
se alguém estendesse um densa toalha e a pendurasse da nuvem, enquanto lavámos
as mãos e nos sentámos. Um ruído cavo de água correndo se ouviu, mas ver é que
não. Acabámos de almoçar e em pé assistimos a uma batalha furiosa entre ondas
de água, que desciam da rua que parte do Largo e liga à zona do Hospital e
Palácio e se encontravam no Largo com as que vinham das ruas Pedro Nunes e da
que vem da rua que chega ao Hospital Militar, estas barrentas e mal dispostas,
mas ali tinham que decidir as que desciam a rua Primeiro de Maio e as que
continuavam até à pequena da Maianga e, ali, a batalha abrandava por serem mais
as opções de escolha, umas descendo a Serpa Pinto em direção à Mutamba e depois
até à baía; outras corriam à procura do Rio Seco, descendo a Rua da Maianga e
nesta escolha muitas sobravam e dirigiam-se para a avenida do aeroporto! Ali é
que não podiam ficar por toda a rotunda ter uma inclinação para o Rio Seco,
onde se iam juntar às que tinham trazido toneladas de areia e as tais pedras
polidas da encosta do Alvalade, ainda sem casas.
Aquelo
chamado rio Seco mais não é do que uma vala construída para acudir a estas
situações de emergência, não resolvendo quando o volume é grande, mas ajudava
bastante; se ele não tivesse sido construído a Maianga ou não teria construções
ou então algumas ficariam alagadas cada vez que o manda-chuva a mandasse
demais.
Não
fosse a inestética construção ou a falta de dinheiros, deviam ter construído
outro na parte mais baixa da cidade, zona dos Correios ou um pouco antes, de
todo ineficaz uma vez que a Avenida Marginal fica logo ali e suas águas estão
perto da superfície da muralha de proteção. Quem teria razão seria quem sabe e
não quem pensa que a tem.
Acabaram
por fazer o que hoje se vai fazendo: encarrapitaram casas em cima das areias
dunares, todos querendo ter o mar à mão de semear. Assim foram nascendo
construções que mais não deveriam parecer do que castelos na areia!
Este
entusiasmo deve ter aumentado quando o paredão travou o avanço das águas, que
já deviam ali chegar cansadas e se acomodaram, com ar triste entre a Ilha do
Cabo e a construção da rampa que agora se estende até onde foi construído o
porto de mar.
Na
área mais ou menos plana que ficou, com o mar aparentemente espartilhado, os
construtores civis de então, garantidamente diferentes dos que apareceram mais
tarde e dos que hoje para aí estão, cansados de construir “castelos na areia”
encosta acima, atiraram-se, como “gato a bofe”, ao espaço agora disponível e
desataram a fazer em altura o que lhes faltava em largura, edifícios com vários
andares, sobretudo na marginal.
Quando,
quatro horas depois, o dilúvio terminou, da maneira como as ruas ficaram não
dava para voltar ao quartel, transformado num lago, como ficava sempre, com bem
menos chuva caída ou despejada, este deve ser o termo mais adequado para
aqueles exageros, fui ao cogumelo buscar a máquina de fixar o espaço no tempo,
e partimos à descoberta da Luanda pós dilúvio.
III
Já constava que a baixa
estava um caos e o pessoal do Regimento de Engenharia, com seus equipamentos,
novos e modernos, estava a atacar para desobstruir as ruas principais.
Era verdade! Ou o pessoal foi bem treinado ou escolheram só
os bons a manobrar tratores, retroescavadoras, camiões…era a Engenharia em
“guerra” contra areia e pedras que podia pensar-se que teria sido o mar em
fúria, por sentir violados os seus direitos de servidão de um espaço em que
podia espraiar-se para descansar, agora obstruído com os prédios, tivesse vindo
pelo ar e desabasse sobre uma cidade inteira, desventrando ruas e levando suas
vísceras para mais perto de si e ali as deixar, enquanto as águas que despejou
voltavam ao seu seio.
Era esta parte que não
regressou ao mar a que os fardados da engenharia atacavam agora e durante vários
dias mais!
A Mutamba, na
embocadura da rua que passava pelo café Polo Norte e desembocava no Largo dos
Correios principais, formando uma perpendicular com a Rua Luís de Camões, do
lado direito, tinha areia até ao primeiro andar, entrando mesmo para dentro da
alfaiataria onde os nossos fatos foram feitos, o meu e o do Magalhães.
Da Rua Luís de Camões,
à direita da Mutamba, tinham desaparecido dois dos edifícios mais antigos, que
devem ter emigrado, em fanicos, para a Rua Direita! Um pouco mais acima, junto
a dois novos edifícios de vários pisos, a água, talvez por excesso de
curiosidade, escavou crateras à procura dos alicerces, mas o que conseguiu foi
que fossem abocanhados cinco automóveis, uns de “cabeça” para baixo, outros de “barriga”
para cima, com o ar desleixado, de quem está muito descansado a dormir e é
acordado aos safanões, acabando por cair na garganta deixada aberta pelo
“regato” que passou poa ali e desapareceu.
Uns buracos mais acima,
na curva à direita para quem subia, talvez entrasse com velocidade excessiva e,
não conseguindo travar a tempo para fazer a curva em segurança, forçou a parte
da avenida daquele lado, criando um atalho para chegar mais depressa à rua
Direita, mas perigoso, pois deixou atrás um barranco com mais de vinte metros
de profundidade e uns cinquenta de abertura! Os mirones que se juntaram, alguns
de Kodak em punho, tentavam adivinhar quantas camionetas de areia terão
desaparecido, como se orçamentassem o custo do transporte dos milhares de
toneladas para encher novamente o buraco!
A rua Direita,
simpática, foi a fiel depositária das areias que decidiram ir passar umas
férias na parte baixa.
Soube-se que morreu um
homem, levado pela enxurrada, quando tentava atravessar uma das mais ingremes
artérias daquela zona da Muxima.
IV
Voltando à cidade,
tentando achar o caminho certo de regresso, pois que andar pelo futuro, todo
este tempo, três séculos e meio, sempre se esquece alguma coisa; e não só
esquece, tudo mudou, desde a fundação, para onde vou, até ao seculo XX onde
agora estou, mas agora vou.
A relativa fragilidade
do seu solo, ou talvez por isso mesmo, em nada prejudica a beleza do espaço em
que foi sendo estruturada, terá até beneficiado.
Quando os mares fizeram
a última das suas grandes arrumações, o daquele bocadinho de um tão grande
continente, terá feito a mudança sem pressas, de certeza com pena de se
afastar, mesmo que pouco fosse, do lugar onde devia sentir-se bem.
Certamente por isso,
limitou-se a recuar, lentamente, de olhos postos no relevo que para trás ia
ficando e deixando um manto de brancas e finas areias, como se de um diáfano
tule as quisesse ver sempre cobertas e as colinas pudessem olhar as linhas
suaves de seus contornos. E num misto gesto de sensualidade e abandono,
deu-lhes o espelho da baía e, logo de seguida, para que os curiosos olhares se
não perdessem nas distâncias dos mares, construiu-lhes um pequeno e elegante tapete de areia, para os olhos
poderem descansar e, sempre que quisessem, ir ver de mais perto o seu mar.
Estendido a partir da
base da mais antiga das colinas e prolongando-se alguns, não muitos,
quilómetros para o mar ocidental!
Muito mais tarde vieram
a tomar os nomes de colina do forte e ilha do cabo, este tapete,
propositadamente, não terá ido além de meia dúzia de metros acima do nível das
águas.
E os amantes assim
ficaram, por dilatados tempos, não fosse o intruso do costume alterar,
bruscamente e em seu exclusivo proveito, tudo o que a natureza, sem pressas,
foi desenhando, ensaiando e gozando durante milénios.
O espelho da baía ficou
encaixilhado, roubaram à musa Luanda o acesso o acesso à sua contemplação
líquida, mas ela sempre vais espreitando de dia e de noite todas as areias se
enfeitam de fosforescentes estrelas que o mar, seu eterno amante, lhe indica o
caminho para a receber.
Alteraram tudo, sobre
as areias das colinas dunares, mas entre o mar e Luanda permanece a eterna
paixão de calmas sensualidades e doces afagos.
V
Dificilmente alguém
poderá encontrar hoje, em Luanda, vestígios deste conjunto de deambulações
mentais, envolvida como está, não pela então cintura dos musseques, mas pela
barafunda que será, a movimentação de cinco milhões de pessoas, a correrem
atrás de miragens de consumo e lucro.
Não por haver falta de
espaço, pois ele sobra naquela parte do mundo! O que deve ter faltado, entre
milhares de outras faltas, terá sido o tempo para receber tanta gente, com o
mínimo de condições; será a falta de vontade e de estruturas de toda a ordem,
nomeadamente os meios financeiros para, em tão pouco tempo, poder ser feito e
pago o muito que seria necessário fazer.
Onde ficarão hoje os
musseques de Luanda?! Que características terão? Serão habitados por quem?
Certamente o de São
Paulo, ali dentro da cidade, estará agora às portas de Catete, a setenta
quilómetros, ou será Catete, hoje, uma cidade dormitório de Luanda? E que
negros habitarão esses musseques? Serão os mais negros ou, como nos anos
sessenta do século XX, os negros que os habitavam, eram isso – negros; ou
seriam também deserdados da sorte.
Também não será fácil,
aos que hoje chegam, os que chegam e partem todos os dias, encontrar nada do
que tanto os enfeitiçou, eles também não aportam a Luanda para a apreciar, mas
para negociar, e negócio, queiram ou não os negociantes, é isso mesmo, não é
preciso gostar!
Há uma ou outra exceção,
dirá alguém, mas a regra é o que penso e gostaria de estar enganado.
Não quero, não me move
qualquer particular interesse, não tenho formação para estudos e análises de
antropologia e se porventura tivesse, de Luanda e Angola não o faria! É uma
ciência que, pelas suas características, me não desperta curiosidade. Gosto das
pessoas e das coisas ou não gosto e não preciso de qualquer especialização para
explicar o meu gosto ou falta dele. Por certo iria ter não poucos dissabores,
talvez por vir a chegar à conclusão de que gosto de quem não devia e o
contrário também, preferindo este patamar do saber, de análise muito
particular, mas meu, do que estabelecer futuros aplicando a cartilha de
determinada escola filosófica.
Há tempos e mais
recentemente, alguém me questionava sobre a escola onde aprendi a fazer algo de
que os curiosos gostaram; a resposta foi franca: aprendi por aí e o aí é isso
mesmo, tudo e nada, aqui e em todo o lugar por onde passei ou imaginei que
estive ou passei.
Ah! Pensei que tinhas
escola! E fiz, queiram ou não. O estar sempre desperto é, por si só, o passo
mais eficaz em direcção à grande escola – a Vida!
Mas era de Luanda que estava
a tratar. Continuando.
Do tempo de militar
pouco mais a dizer, pois ele representa quase nada no espaço mais amplo da
minha disponibilidade. E foi abordado num outro apontamento.
Há que acrescentar,
para que dúvidas não fiquem, que pouco me foi exigido e o que fiz, nunca como
voluntário, fi-lo escrupulosamente, como outros, milhares de outros o fizeram,
eles sim, correndo riscos imensos, mutilações definitivas ou de difícil correção,
físicas e psicológicas. Outros, demais, um só já o era, perderam a vida.
Aqueles, sim, poderão dizer-se e alguns o fazem, combatentes do Ultramar. Eu
não o faço, não o sou, não travei qualquer combate, com qualquer inimigo,
podendo e devendo afirmar, que não tinha inimigo, declarado ou subentendido.
Amigos sim, tive muitos. Combates houve outros, muitos.
Tomei parte, durante
cerca de trinta dias, na operação Esmeralda, assim designada por ser da tomada
da Pedra Verde, substituído um camarada que adoeceu, em Setembro de sessenta e
um.
Na noite de um para
dois de Dezembro, do mesmo ano de chegada, fiz a única operação da minha
especialidade, o reabastecimento de munições para as baterias que estavam a
operar na região dos Dembos, tendo como centro de reabastecimento o Úcua, onde
ficaram armazenadas as granadas carregadas em seis camiões, no Grafanil, ainda
quase só a servir de apoio às tropas que iam chegando, descapinado por nós, em
Julho, durante a semana que estivemos aquartelados no edifício inacabado da
Petrangol.
O capitão Calixto, do
Pelotão de Comando e Serviços, mas destacado no Quartel-general desde o dia em
que chegámos, ou cumprindo algum programa e por iniciativa própria, formou uma
equipa de futebol, que representaria o Quartel-General, para disputar um
campeonato entre regiões militares. Como não teria guarda-redes e no GACL havia
vários e alguns com alguma preparação, terei sido, a título de convidado,
chamado à equipa do Comando da Região.
Nada tinha de novo e a
chamada deveu-se a ter disputado o mesmo campeonato, antes de embarcar, sendo
já conhecido pelo treinador, um tenente cujo nome esqueci.
Durou pouco a minha
prestação, não indo além dos treinos. Ao terceiro ou quarto, um dos avançados
terá chocado comigo, numa jogada em que tive de “mergulhar” aos seus pés,
desequilibrou-se e aterrou fora do pelado, fraturando o braço direito! E foi o
fim da minha carreira como guarda-redes do QG.
Como as guerras em que
milhares, muitos milhares, se situavam a milhares de quilómetros, num outro
continente e os meios de transporte, por serem poucos e estarem uma boa parte
deles ao serviço dos pacificadores, não era fácil dar um tempo de férias aos
que delas bem precisavam, não ao fim de seis meses, mas ao cabo de seis dias,
nas condições que tinham e que nem o mais genial general se atreveria a prever,
não bastava dizer que a mata não tem estradas, nem caminhos, nem hotéis, nem a
mais pelintra hospedaria! Os vinte e seis dias que passei na fazenda Kibaba em
nada se comparavam a outros tantos dias, dos militares de Infantaria, por
caminhos inexistentes, fosse noite ou dia, deslocavam-se, por trilhos quando os
havia e a corta mato quase sempre.
Passada uma semana, já
todos os soldados da secção tinham feito uma paragem de um ou dois dias,
ficando no aquartelamento e descansarem como pudessem, eu ia dormindo na caixa
da GMC, juntamente com os soldados, Uzi apoiada no banco corrido e entre as
pernas, queixo apoiado na mão que servia de almofada na ponta do cano de
metralhadora, nos percursos entra a Kibaba e o Caxito ou entre o Caxito e Luanda,
acompanhando o pessoal do abastecimento alimentar!
Este pequeno esboço de
um retracto que foi a realidade, só aqui surge para abordar a minha outra
tarefa que durou cerca de seis meses, gerindo o Centro de Licenças de Luanda,
tarefa que devia ser atribuída ao sargento Sousa e que só o não foi por ele
estar destacado numa outra unidade, substituindo um seu camarada que tinha sido
ferido e regressado à metrópole para tratamento e convalescença! O Sousa, que
não tinha embarcado no mesmo dia que nós, oficialmente por doença, mal chegou a
Luanda foi logo destacado para uma unidade em operação mais a norte de Luanda.
Os Centros de Licença
foram criados para que os militares das unidades em operações pudessem repousar
longe do local onde as tensões psíquicas, se agravavam degradavam, não tanto
pelo perigo, embora existisse, mas sobretudo devido ao cansaço físico!
Os dois pavilhões, em
material pré-fabricado, foram montados sobre uma placa em betão, no muito
espaço que o GACL tinha para lá dos seus edifícios e do campo de futebol.
Tinham cozinha e pessoal destacado para o efeito.
Nunca esteve lotado,
nem como alojamento, muito menos como restaurante! O pessoal chegava com alguma
disponibilidade financeira, no designado “mato” não havia onde gastar, o que
leva a concluir da inutilidade do dinheiro, como moeda de troca, se não houver
com que trocá-lo!
O regulamento dos
Centros de Licença era o dos quarteis, pelo menos no que toca a fazer faxina na
higiene e na lavagem das loiças, tarefa a que não estavam habituados, em tempo
de guerra não se limpam armas, o mesmo se aplicando aos pratos e talheres, por
isso foram as rações de reserva existiam: comia-se ou não a dieta e a embalagem
a natureza se encarregava de as integrar. Assim fosse com as minas e granadas
não explodidas e não teríamos um mundo minado e em alguns espaços são um perigo
invisível e por isso surpreendente! Ainda nenhum demente, dos tantos que por aí
se exibem nos vários desportos ditos radicais, se lembrou de explorar esses campos,
seriam atribuídos prémios para o que mais minas rebentasse e para lhe dar um
sabor acrescentado, criava-se uma Federação que iria gerir os espaços,
organizar por escalões os desportistas, com publicitação dum ranking mundial
por categoria, como no boxe, por exemplo.
Seria um golf radical,
com os seus buracos, feitos pelos participantes! O golf, dizem, custa uma pipa
de massa, quer os materiais, quer os campos, quer os hotéis.
Antes que a ideia pegue
e ganhe adeptos, é melhor não pensar mais no assunto, regressando a este campo
minado que é o de escrever e não estropiar ou mesmo limpar de vez os
participantes.
A gestão do Centro de
Licenças de Luanda, talvez por ser o Comandante interino do GACL, o efetivo
tinha sido chamado para outra missão, nunca soube qual e nem tem qualquer
utilidade para o caso, fosse o Comandante do Pelotão de Comando e Serviços a
que eu pertencia, foi ao Pelotão atribuída!
Como oficial disponível
não dispunha, um era das contabilidades, outro da tesouraria e o terceiro era o
chefe da secretaria, foi designado um tenente do GACL e como eu não iria mais
usar dos saberes da minha “formatura”, por ter sido criada e estar já
aquartelada no GACL, também, a Companhia dos Transportes, que devia ter pessoal
com a minha especialidade, embora a sua função mais importante era a do
abastecimento dos vários materiais às unidades em missão de guerra, fui
destacado para a gestão de CLL, até que o sargento Sousa regressasse ao
Pelotão, terminado o destacamento. E, de um dia para o outro, passei a ter uma
responsabilidade diferente, para a qual não tinha qualquer formação, mesmo nas
condições militares.
Devia ser apetecível, para
alguns dos sargentos do Quadro Permanente, o cargo que me foi imposto de
“gestor “do Centro de Licenças acabado de inaugurar! Fui, aos poucos,
percebendo tal apetite! E também percebi que apenas o cargo lhes interessava, a
função nem por isso. As abordagens eram feitas de forma enviesada: como
conseguiu aquele cargo, furriel Monteiro? Sabe como o vai gerir? Tinha alguma
experiência na vida civil? As respostas que fui dando não adiantavam nada sobre
o que pretendiam saber e isso devia estar a tornar-se irritante! Até um dia,
incapaz de se conter, um deles foi muito claro: “ Oh, furriel Monteiro, não
está a ganhar uns cobres naquela mina?” Aí senti-me no dever de lhe responder
com mais clareza! Aí senti-me no dever de lhe responder com mais clareza!
Se estás a referir-te
ao meu novo trabalho no Centro de Licenças, vamos falar claro: não tenho, que
eu saiba, qualquer benefício extra, no salário não podem mexer por não ser de
sua competência e prémio a situação é a mesma; não podem, não devem, dar saída
a um angolar sem que entre a justificação correspondente! Será assim, senhores
das contas sempre certas?
- Não era disso que
estava a falar! Mas é lá contigo, era só para dar umas dicas!
Eu sei ou calculo o que
possa ser, já tinha percebido desde a primeira vez que fui acompanhar o vague
mestre ao mercado: mal apresentei a requisição das frutas a comerciante olhou
para mim, mostrou-me a requisição e perguntou se era para trazer as quantidades
constantes da requisição!? Aí, sim, fiquei admirado e perguntei à senhora o que
estava errado? E a resposta foi:
- Como os vossos levam
sempre metade do que requisitam…!?
Já percebi, não sei nem
quero saber como eles procedem; só exijo que para o Centro de Licenças de
Luanda, e não há outro que aqui venha, a senhora executa a requisição tal como
aqui chega, seja eu ou não a apresenta-la! As dicas do sargento deviam ter a
ver com aquilo e outras formas de alguns ganharem uns “trocos” sem trabalho!
Entretanto, uns meses
depois, regressou o sargento Sousa do destacamento e assumiu de imediato a
gestão do Centro, tendo eu que pagar o vasilhame em falta dos distúrbios e
acidentes com as garrafas de cerveja e Sevem Up! Cerca de um mês de salário e o
subsídio foi quanto me custou a passagem pelo Centro de Licenças!
Riu-se, quando lhe
contei, o sargento conselheiro!
A partir daí voltei ao
trabalho administrativo de coordenação, das despesas de alimentação, das onze
unidades operacionais que dependiam administrativamente do Pelotão de Comando e
Serviços, tendo o primeiro cabo Filipe adstrito aquela trabalho! Na escala de
serviço do GACL fiz todos os para que fui escalado: sargento de dia, da guarda
e de Piquete. E penso que com o rigor requerido, e se incidentes houve nada
tiveram com erros meus, mas com equívocos de outros! Relembrar apenas dois, um
hilariante e outro bem pouco!
Num dos serviços de
piquete, estava na sala de sargentos a ler enquanto não chegava a hora da ronda
seguinte, quando ouvi o som de dois tiros disparados com a Mauzer e teria sido
bem perto!
Levantei-me apressadamente
e corri em direção ao posto de sentinela de onde me pareceu que os tiros foram
disparados. Os dois soldados do serviço de piquete que tinham a tenda montada
na horta, vinham já em direção ao mesmo sentinela, o que estava montado por
detrás da arrecadação do armamento e de outros materiais! O soldado, negro, que
estava de turno e naquele posto, ao avistar-me, tentou explicar o que tinha
sucedido:
- mê furrièr, ele deve
estar lá, caído! Vinha a rastejar, devagar e perguntei: quem vem lá faça alto
para identificação! Não parou e repeti, quem vem faça alto e como não
respondeu, disparei e ele continuou a rastejar, então apontei bem e disparei e
não vi mais!
Fica atento que nós
vamos ver quem era e se está morto ou vivo! Saí com os dos soldados do piquete,
virámos na esquina do muro com arame farpado, a partir do qual se estende o
planalto, de capim quase seco e só a umas centenas de metros havia o musseque,
onde nunca fui!
A sentinela, lá do seu
posto, o alto da guarita e dentro do muro ia-nos dando indicações do local:
mais além, mê furrier e lá seguimos as instruções! A uns dez metros de
distância havia um montículo de areia e de lá vinha um barulho estranho, que
não era humano! Uzi em posição de tiro de rajada e os soldados de mauzer
aperrada, avançámos devagar e perguntava quem estava aí, mas resposta não
havia! Quase a rastejar avancei até ao montículo de areia, ajeitei bem o
capacete e fui expondo o capacete e só de seguida os olhos!
Ora porra! Um porco
adulto grunhia cada vez que se mexia e sangrava por um buraco feito pela bala
de um dos disparos da sentinela! Ainda tentou pôr-se em pé quando chegámos
junto dele, mas não teve forças e voltou a deitar-se, grunhindo mais forte, mas
logo de seguida se calou e ficou imóvel!
- Já foi p’ró caralho,
comentou um dos soldados!
- Ainda bem,
acrescentou o outro!
Bem, vamos embora e
vamos participar a ocorrência e o oficial de dia, que era também oficial da
noite, que decida como quiser! Tal como está, o porco já não foge!
O oficial de dia, o
sargento de dia, estavam à porta de armas a falar com o sargento da guarda!
- Que raio de confusão
foi esta? Pergunta o tenente.
A sentinela viu um
“terrorista” a rastejar perto do quartel, mandou-o parar para se identificar
(risinhos dos dois soldados de piquete!), como não parou pregou-lhe um tiro e
por ser teimoso e não parar, deu-lhe um segundo tiro que o atingiu junto à
perna esquerda da frente!
- Perna esquerda da
frente?! Interroga-se o tenente! (os soldados já se estavam a afastar por não
conseguirem evitar a gargalhada!)
É verdade, meu tenente,
um porco, armado em parvo, não respondeu à sentinela e foi o “fim da picada” ou
melhor, do porco! Agora temos que dar solução ao cadáver, mas não precisa ser
pressa; tal como está é para ficar! Quer que escreva a participação, meu
tenente? Vai ter de ser nestes termos: um porco, evadido de uma pocilga,
algures no musseque, foi tomado por um terrorista pela sentinela, por não
responder nem obedecer à sua ordem e assim terminou a precária liberdade e
curta aventura!
- Vão lá descansar,
nosso furriel e o seu pessoal, vou ver o que fazer e depois digo! Temos muito
tempo até à uma da tarde!
O outro incidente, com
nenhumas consequências, ocorrido durante um outro serviço de piquete, de noite
também, durante a ronda habitual de duas em duas horas, tínhamos, eu e os dois
soldados, terminado a volta ao perímetro do quartel e regressávamos aos nossos
locais de permanência entre rondas, os soldados à sua pequena tenda e eu a
fazer horas na sala de sargentos, com tudo a correr normal.
O percurso mais curto
era passar entre as casernas e pelo caminho iriamos passar pela última
sentinela, que tinha a sua guarita no final da escada, que ía até à base do
depósito de água para abastecimento do Regimento a o Bairro dos Sargentos.
Mal nos avistou, a
sentinela, cumprindo o regulamento,
- Quem vem lá, faça
alto! Ordenou!
É o piquete,
regressando da ronda! Respondi.
- Avancem para
reconhecimento! Qual é a senha?
Mas eu não tenho
qualquer senha! Informei.
Mas devia ter! E agora,
como vamos fazer?
Eu apenas me limito a
cumprir, no teu posto quem mandas és tu! Mas não deixa de ser estranho que
nenhuma das quatro sentinelas do muro me falou em qualquer senha! Ficamos aqui
até que o sargento de dia ou o oficial apareçam ou alguém por quem faça chegar
noticia da situação ao oficial de dia e venha resolver o problema da noite, uma
vez que foi ele quem criou este imbróglio!
- Como conheço bem o
furriel Monteiro vou deixar passar e veja se esclarece isto com o oficial de
dia!
Podes ficar descansado,
é diretamente para lá que eu vou! E assim fiz! Fui direito ao gabinete, pedi
licença para entrar, “bati a pala” e perguntei que senha tinha, para circular
durante a noite?
- Porquê, furriel
Monteiro? Houve algum problema?
Pela aparência parece
que não houve, ou pelo menos não foi grave! Pior teria sido se eu e os dois
soldados estivéssemos estendidos junto do depósito, como ficou o gordo suíno que
foi tomado por um hipotético terrorista que queria entrar no quartel, ou
fossemos já de tinoni, tinoni, a caminho do hospital!
Mas houve mesmo
problemas com a sentinela? Que tamanha bronca! Foi ao único a quem dei a senha,
por estar no centro do quartel e esqueci que havia o piquete! Peço desculpa,
furriel Monteiro! Vou já anular a porra da senha!
Por estranho que pareça
os incidentes que tive, sem contar os da Operação Esmeralda, foram todos na
missão de piquete; os dois aqui já relatados: o do disparo da FBP de um dos
soldados, na formatura do render da parada, quando dei a ordem de sentido para
o hastear da bandeira e cuja bala ficou alojada a menos de dez centímetros da
minha bota direita e na antevéspera de regressar a confusão que deu o camuflado
emprestado!
O tempo restante do
tempo, ou seja, a maior parte dele, foi passado a procurar viver e conviver com
o maior número de pessoas diferentes com quem fui cruzando.
Esse período sim,
valerá a pena inclui-lo fora da guerra e napaz que tantos outros também
beneficiaram!
VI
O Américo Lourenço
chegou a Luanda no dia trinta de Novembro de sessenta e um, era o dia do seu
vigésimo segundo aniversário.
Por seu intermédio
conheci uma família de Chaves, radicada em Angola há alguns anos, cuja
referência ele trazia daquela cidade, onde esteve algum tempo já como militar,
ou para fazer a especialidade de enfermagem ou já com a especialidade
concluída!
Como ele raramente
vinha a Luanda, tentei manter algum contacto com a família, mas de pouca
consistência; duas idas à praia e logo se dissipou, as afinidades era poucas.
Todos tínhamos o dia ocupado e à noite não tínhamos os mesmos roteiros.
A vida noturna envolvia
outro tipo de gente, descomprometida como eu, aligeirada, com poucas ou regras
nenhumas. O cinema, os copos, as incursões aos bares e musseques, por vezes sem
outra finalidade que não fosse andar, ver, apreciar, absorver aromas e novos
tipos e ritmos de vida.
O tempo entre o almoço
e o regresso ao GACL, era a viagem de machimbombo entre a Mutamba e São Paulo e
regresso no mesmo transporte.
Com o tempo já muita gente
nos conhecia de vista e eramos já cartaz gasto de velho filme de aventuras.
Havia boa disposição, não tínhamos compromissos sérios e o tempo não nos trazia
preocupações, nem graves nem grandes.
O Pinto era gordinho,
falador, divertido, com um sotaque interessante e bastava beber um copito para
ficar vermelho, reacção que o chateava, mas ele não o revelava; o Magalhães era
o oposto: alto, magríssimo e tão pachorrento que a andar parecia que um pé
esperava do outro autorização para avançar e esta pouco clara indecisão
alterava sua forma de andar que se traduzia numa leve oscilação lateral um
tanto à semelhança do andar dos palmípedes; eu, fisicamente, estaria entre um e
outro, beneficiando da ginástica que cedo comecei a praticar e não mais deixei,
transmitia-me um certo conforto físico. Dos três era o que vestia pior, como
militar, a tal ponto que nalguns meios se comentava ser eu o furriel mais mal
vestido de Luanda! Era exagero, mas era uma opinião.
Numa dessas viagens
digestivas (era assim que as designávamos), da Mutamba a São Paulo e volta, vinha
eu sentado num dos lugares da cochia do machimbombo e, distraidamente, apoiei a
mão direita no banco da frente, para poder ir falando com o Pinto, sentado no banco
de trás, mas da outra fiada de assentos, sem sequer reparar quem aí sentado na
minha frente.
Notei que a pessoa
parecia encostar-se intencionalmente aos dedos da minha mão que seguravam
naquela parte do assento! Pensei que devia ser só nas curvas, para retomar a
posição normal de sentada! Só que, na parte recta e plana a pressão continuava
a ser exercida, quase ou mesmo ostensivamente. Não me dei por achado.
No final da viagem, não
por que me restassem grandes dúvidas, perante o guloso olhar da companheira de
quase todos os dias de São Paulo para a Mutamba, contei o que me tinha parecido
aquela atitude e logo o Magalhães avançou com pormenores para mim, estranhos: que
ele tinha reparado nisso desde há cerca de duas semanas! Não pode ser verdade!
E eu não dava por isso?!
- Até já tem mudado de
lugar para se sentar à tua frente, mal este fica vago!
Ou ele estava a gozar
ou então eu era bem mais distraído do que pensava! Iria tirar isso a limpo.
Fui eu que procurei o
lugar ao lado dela e na minha inevitável cortesia e respeito perguntei se podia
antes de me sentar, faz favor, respondeu! Não incomodo? Perguntei! Tenho muito
gosto, respondeu!
Meu nome é Fátima – de
mão estendida – e Fatinha para os mais chegados! O meu é José, mas na família
militar preferem usar o apelido, que é Monteiro!
Tinha um rosto muito
bonito, poucos traços de africana e pele muito mais clara, usava o cabelo preso
na nuca, um sorriso permanente e natural, e gostava de falar.
- Sou filha de uma
família muito conservadora e nacionalista até à medula! Não dão a mínima margem
de manobra para que eu possa relacionar-me com qualquer branco ou negro que não
correspondesse aos padrões por eles estabelecidos.
A minha incompreensão
da atitude e a minha persistência para a corrigir, levou a uma bela amizade,
com mutuo respeito, fui mesmo convidado pelo pai para ir tomar uma bebida com ele,
o que acabei por fazer, não muitas vezes!
As viagens de
machimbombo entraram na rotina, e não raro riamos com vontade sobre quase nada,
mas quando a provocação vinha à baila, dava mesmo para a gargalhada! Eram
animadas as viagens.
Trabalhava na baixa,
num estabelecimento de artesanato quase só de origem angolana.
Numa das idas ao
Miramar e em dia de enchente só conseguimos lugar nas cadeiras do bar, de onde
se podia assistir.
O calor era grande
nessa noite e durante o dia tinha sido bem mais, aquecendo corpos e materiais
de tal modo que pode dar origem a situações, sem piada ou com ela, como esta:
Ao intervalo, o Pinto,
que ficara no varandim do bar, mais pertinho das Nocais e das Cucas, vinha
eufórico, ou melhor, elefórico, mais vermelho do que era naturalmente e
transpirava anormalmente! Conta lá, empurrei eu, o Magalhães evitava falar por
ter um problema de gaguez, mas estava tanto ou mais curioso do que eu! E o
Pinto contou:
- Vocês repararam na
senhora que estava sentada na mesa ao lado? Ofegante, o Pinto!
Vi e estou vendo! Houve
malandrice, querem ver! Mas desembucha, porra!
- Esteve todo o tempo a
“empernar” comigo, ou melhor, a roçar a perna dela na minha! Respirando
acelerado.
Mas o marido ou quem
está com ela não deu por nada?
- Não deve ter dado!
Responde o Pinto.
Tem lá calma, senão
ainda te dá alguma macacoa! Estás quase a rebentar de tão vermelho!
- Que vou fazer,
porra?! Cada vez mais agitado.
Eu acho que deves beber
uma fresquinha, respiras fundo meia dúzia de vezes, vais sentar-te a ver o
resto do filme, como se nada tivesse ocorrido! Eu vou ficar de olho em vós e se
for provocação o marido não nos há-de comer!
Mal se sentou para ver
a segunda parte do filme, deve ter feito o ponto da situação e se vermelho
estava passou ao “rubro” quando olhou para mim e me fez sinal para me levantar
e foi no sentido do espaço do bar de que se não via o palco, onde fui ter com
ele! Ria convulsivamente, a barriga proeminente ameaçava saltar para fora do
cinto! Numa pequena paragem, perguntei: então, que houve?
- Deixa-me cá, então
aquilo quente, que não cedia um milímetro, se eu aumentava a pressão e não
procurava o contacto quando eu aliviava, não era a perna da vizinha, por sinal
boa como o milho, era só, nem mais nem menos que o tubo em ferro, pintado de verde,
suporte do telhado em fibra da esplanada do bar!
Ria, contorcia-se e mal
conseguia falar! O Magalhães que desde a conversa do Pinto se desinteressou,
chegou para ver o que se passava por eu não ter aparecido mais e o Pinto, idem!
Pobre Pinto nos dias
que se seguiram! Fizemos-lhe a vida negra, mas nunca deixou de se divertir
também.
A certa altura
apareceram uns gravadores-leitores de cassetes, não recordo a marca, penso que
era National
Deve ter-se convencido,
o Pinto, de que tinha achado a varinha mágica para preencher os tempos mortos
das noites sem sono e com melgas em “bando”, que o calor excessivo, quase
diariamente, prometia e cumpria.
Gravou as músicas em
voga, mal gravadas quase sempre, por falta de condições e de insonorização e
falta de qualidade do aparelho; passou pelas anedotas, as suas cantigas de
banheira e outras maluqueiras que não vale a pena incluir. Acabou a sua
comissão ao serviço da camarata, umas semanas depois, quando só já era
mobilizado para uma sessão dos peidos gravados durante os treinos com vista a
um campeonato que nunca se realizou.
Deve ter ficado
ofendido e farto de nos aturar, fez uma grande birra e levou a sua avante,
calando de vez! Caminho final, sem honras prestadas nem hinos cantados, foi
enviado para o lixo e nunca mais deu notícias.
Numa das noites sem
programa, com o grupo aumentado de mais dois que ao Bracarense aportaram,
resolvemos ir apanhar ar até à Mutamba e depois se veria. Ainda não tínhamos
chegado ao final da primeira etapa, começámos a ouvir um alarido que parecia
vir dos lados do campo de futebol dos Coqueiros. Deve haver futebol, disse o
Martins, vamos até lá? Embora, está decidido!
Era um jogo entre uma
equipa do São Paulo e outra da Maianga
Sentámo-nos atrás de
outros espectadores, aplaudindo e comentando as jogadas de que gostávamos, mas
também aquelas que eram uma lástima!
A certa altura o São
Paulo, numa jogada bem-sucedida, marcou o que seria o primeiro golo do jogo!
Aplaudimos, com falso entusiasmo, mas os jogadores e o público estavam concentrados
no jogo e não notavam se era falso ou sentido o aplauso! Mas era o mais
ruidoso!
O jogo prosseguiu e o
Maianga, numa jogada bem urdida, marcou também e nós fizemos a mesma justa
homenagem, aplaudido como minutos antes fizemos ao do São Paulo.
Os nossos vizinhos,
duas bancadas mais abaixo, não abriram boca, nem para insultar. Um deles,
descontente com o golo do Maianga e connosco, certamente, virou-se para trás e
perguntou: qual é o vosso clube? Nós viemos só para ver a bola, passar tempo e
fazer a festa com as jogadas de que mais gostássemos e com as que não
gostássemos! O senhor só disse: ah!
VII
O Américo Lourenço, na
época apenas meu conhecido e de há pouco, dois anos mais tarde meu cunhado, era
então um jovem enfermeiro, envergonhado e tímido, defeitos ou virtudes que o
tempo e a vida anularam.
Chegou a Luanda, como
já disse antes, no dia trinta de Novembro, saído do Niassa, se não estou
errado, com guia de marcha para o RIL-Regimento de Infantaria de Luanda, na
mesma zona do planalto onde instalaram os quarteis, tendo a separar o GACL do
RIL o Quartel da Policia Militar, que penso não tinha designação própria.
Passaríamos a ser vizinhos enquanto ele não fosse juntar-se à Unidade a que
vinha destinado.
Como era dia de anos
pareceu-me ser de mau gosto passar uma parte do dia ao sabor das ondas e o
final encafuado numa caserna militar e sem conhecer nenhum dos provisórios
moradores, resolvi ir busca-lo ao RIL para jantar comigo e o Magalhães.
Com alguma sorte que
costumo ter em momentos vários da vida, encontrei de serviço, sargento de dia,
um furriel meu conhecido das noites de Luanda. Disse-lhe ao que ia e passados
minutos já estávamos a sair para nos encontrarmos com o Magalhães.
O jantar estava marcado
para o Amazonas, a cinquenta metros da baía.
Escolhemos, eu e o
Magalhães, frango estufado com ervilhas. O aniversariante alegou que não estava
com grande apetite, o que achei estranho, acabado de chegar de uma viagem de
mais de uma semana, com os inevitáveis enjoos, mais ainda se pensarmos num
navio bem menos confortável que o Vera Cruz, onde o caos vomitado se instalou a
partir do segundo dia e que mais parecia uma epidemia.
De acordo com ele veio
um bife à Amazonas, que nós já tínhamos comido algumas vezes. Era uma posta de
carne de vaca, grossa e tenra, a que a sua falta de apetite chamou “um figo!” e
que, só por vergonha, não atacou no nosso frango, que só provou e aplaudiu com
o elogio de excelente.
No início da noite do
dia seguinte, estávamos os três no Bracarense a beber o tédio misturado no
café, quando um jeep, apenas com o condutor, que saiu em passo quase de corrida
e batendo a pala, “dá licença, meu furriel?”, levantei-me delicadamente e
perguntei o que o trazia ali?
- Trago ordens para o
vir buscar e o levar para o quartel!
Mas tenho que me ir
fardar!
- A ordem é de o levar
o mais urgente possível para o quartel e se apresentar ao oficial de dia! Reforçou!
Vamos ver se a urgência
não vai dar confusão, sabes que não podes transportar civis na viatura militar,
mas se houver, fui eu que dei ordem para me transportares assim mesmo. Vamos
lá!
Meus senhores,
divirtam-se, amanhã cá estaremos! O Américo ainda perguntou se podia ir comigo?
É simpático, mas esta guerra é minha!
E era, mas vai ser
tratado em capítulo separado!
Numa das primeiras
viagens a Luanda, dormindo em casa da Dona Rosa, após o jantar fomos dar
apanhar um pouco do ar mais fresco da noite. Como ficava em caminho para a
baixa e sempre por ali paravam conhecidos, parámos no Bracarense!
Num terreno quase em
frente, onde ainda não tinha construído o que para lá estava previsto, uma
organização de que não recordo o nome, promoveu uma miniatura da Feira Popular:
um pequeno carrocel, espaços onde se podia petiscar e até uma mini arena onde
os amantes da tourada podiam ir chatear os bezerros e divertir a plateia.
O Américo foi dar uma
espreitadela e pouco tempo depois regressou, agitado e dizia que estava lá uma
“miúda” a dar-lhe uma sorte do caraças.
Pareceu-nos que era
sorte demais para um forasteiro, quando os cow boys, ali todos os dias, ainda
continuavam a “apanhar papéis”, ninguém nos dava confiança! Fui com ele ver
como era o achado. Ele, Américo, disfarçadamente, indicou a pessoa, deu-me uma
vontade de rir enorme e dirigi-me a ela, que já me tinha dito olá com o gesto
da mão, cumprimentei-a e, divertidos ambos, “apresento-te o meu amigo Américo,
vosso conhecido e amigo também”! Acendeu-se a luz na recordação do apresentado
e rimos os três, com vontade!
- Logo me pareceu que
ele me não reconhecera! Esclarece a Manuela.
Era a irmã da tal
senhora de Chaves, que ele me tinha apresentado numa sua anterior vinda a
Luanda e que não teve tempo para fixar os traços. Eu tive, como já disse antes,
por os ter acompanhado à praia duas ou três vezes e até jantei com elas num dos
dias em que o marido e cunhado delas, como funcionário da TAP, tinha ido a
França para tratar de substituir o carro que tinham.
Ainda sobre o Américo,
para terminar.
A última passagem dele
por Luanda, antes de eu regressar a Portugal, foi para acompanhar um militar
ferido e evacuado da zona de operações.
Estávamos no, café
Bracarense, como era quase obrigatório, quando ele passou em direcção ao
Hospital Militar, numa ambulância, fazendo sinal de que já voltava.
Cerca de um quarto de
hora depois apareceu.
Fomos jantar, os três,
a uma cervejaria frente à Central dos Correios, situada no espaço ajardinado entre
os edifícios.
Como eu tinha um
compromisso a que não queria faltar, ficaram os dois, Américo e Magalhães e eu
fui dar instruções ao gerente, meu conhecido como seu cliente, para servir o
que pedissem e que no dia seguinte iria pagar.
E não me espantaria
muito se tivesse sido este gesto natural que estivesse na origem de ser um tipo
endinheirado e com crédito em tudo o que era Luanda, o que não era nem podia
ser verdade, nem nada que se pareça!
Mas é assim que muitas
vezes passamos pelo que não somos! É a vida!.
Reis Caçote
Dig.l6/04/15 (sem revisão)
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BOAVISTA, SEM DÚVIDA |
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UM PEQUE NO MAPA GEOGRÁFICO |
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A MARGINAL, EM OBRAS DE RECUPARAÇÃO |
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UMA VISTA AÉREA DA LUANDA JÁ EM RECUPERAÇÃO |