sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Até já, Donbass (Bruno Amaral de Carvalho, in Facebook, 12/10/2022)

 

Até já, Donbass

(Bruno Amaral de Carvalho, in Facebook, 12/10/2022)

(Confesso que me emocionei ao ler este texto. A Estátua é de lágrima fácil quando toca a questões de valores e de justiça. Realço a coragem de Bruno de Carvalho. A luta pela verdade, por vezes, exige-nos que arrisquemos a própria vida. Que os deuses te continuem a proteger como até aqui, Bruno de Carvalho.

Estátua de Sal, 12/10/2022)


Março foi há 15 quilos atrás. Uma vida. Os guardas fronteiriços russos parecem não acreditar que eu sou o mesmo tipo que aparece na fotografia do meu passaporte. Levam-me para uma sala, daquelas com fita métrica na parede, e andam para trás e para a frente. Arrependo-me de ter ido cortar o cabelo poucos dias antes de partir de Donetsk. As cabeleireiras riam-se com a ideia de terem um estrangeiro como se tratasse de um evento exótico numa cidade em guerra. Pelo espelho, para além do excesso de cabelo cortado, conseguia ver a vitrina da loja coberta por placas de madeira. Meses antes, vários rockets lançados pela artilharia ucraniana atingiram um supermercado, uma escola primária, um talho e este cabeleireiro.

Às vezes, passam-me pensamentos parvos pela cabeça. Lembro-me da primeira vez que me levaram a um barbeiro na Amadora. Devia ter seis anos e o esfola cabras, como lhe chamavam, pôs uma tábua sobre os braços do assento para me ter à altura do espelho e da tesoura. Aprendi, desde então, a dedicar a longa tortura de cortar o cabelo a viajar pelos meus pensamentos. Há uns tempos, contaram-me que havia gente que se preocupava com a roupa interior devido aos bombardeamentos. A minha avó tinha o costume de me fazer a cabeça em água se usasse meias ou boxers com buracos porque podia acontecer alguma coisa e acabar no hospital, arruinando a reputação familiar pela exposição destas peças de roupa comidas pelas traças à observação de médicos, enfermeiros e auxiliares. Percebi que o mesmo acontece em Donetsk. Pode parecer absurdo mas, no meio das bombas, há quem tenha receio de ser apanhado a meio de uma ida à casa de banho. Pensei nisso enquanto ouvia os movimentos da tesoura e ri-me da possibilidade de ter de correr a meio do corte ou de morrer assim.

A morte tornou-se um hábito desde que cheguei no fim de Março, há tanto tempo que parecem anos. O primeiro corpo que vi foi o de um soldado ucraniano nas trincheiras de uma aldeia na região de Lugansk. Na verdade, não havia carne. Apenas ossos dentro de um uniforme. O resto serviu de banquete para cães vadios. A tragédia da guerra traduziu-se demasiadas vezes em imagens destas. Muitas vezes, quando caminhava de noite em Donetsk, repetia um velho hábito. Olhava para as janelas iluminadas dos apartamentos e imaginava espaços acolhedores em que quem ali vivia era feliz. Sempre fui otimista. Talvez em excesso. Quando olhava para cadáveres descompostos, acontecia o contrário. Eram janelas escuras para a barbárie. Lembro-me de quando tropecei num cadáver carbonizado numa cave escura dentro do teatro de Mariupol. Apontei a lanterna do telemóvel para o chão e senti-me envergonhado. Era uma pessoa que estava ali e eu não fui capaz de evitar o tropeço.

Durante um mês e meio, andei com as mesmas botas e as mesmas calças. Parece absurdo mas quando cheguei ao Donbass a ideia era ficar apenas uma semana. Acabei por estar sete meses com uma interrupção de duas semanas pelo meio. Naqueles meses frios, não havia forma de lavar as botas e as calças e conseguir que secassem no dia seguinte. Todos os dias, olhava para as botas e pensava no corpo que tinha pisado. Ainda hoje penso.

A guerra é uma merda. Sobretudo para os que são obrigados a vivê-la. Para mim, foi uma opção e, por isso, nunca me queixei. Fui um dos repórteres ocidentais com mais tempo no terreno. Trabalhei para o Público, para a CNN Portugal, para a CNN Internacional, para o Nòs (Galiza), para o Gara (País Basco) e para A Voz do Operário. No total, cerca de uma centena de reportagens, crónicas e diretos.

Dediquei-me a fazer o melhor que sabia, consciente de algumas limitações, para trazer luz a uma parte escondida do conflito. Enquanto havia quem em Portugal se dedicava a esperar a mínima falha para tentar desacreditar o meu trabalho, fui o jornalista português mais escrutinado. Nunca quis que o foco se centrasse em mim mas nas histórias que contava. Lamento nem sempre ter sido bem-sucedido mas quando se aprende a chorar por algo também se aprende a defendê-lo, como cantou o grupo basco Barricada.

Queriam que não houvesse nenhum jornalista daquele lado porque a única coisa que lhes importa é a propaganda e não o jornalismo. É por isso que nunca escrutinam o outro lado.

Felizmente, nesta caminhada, milhares caminharam comigo e senti o calor da solidariedade que pode sempre mais que o ódio. A minha despedida não é definitiva. Comigo, trago o cinto com cinco furos feitos com a ponta de uma navalha que surpreendeu os guardas russos. Já estou deste lado da Europa.


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