O AVÔ JOAQUIM REIS CAÇOTE, PAI DE MINHA MÃE E MAIS DUAS FILHAS E UM FILHO, EMIGROU PARA O BRASIL NA PRIMEIRA DÉCADA DO SEC.XX, POR MOTIVOS QUE NUNCA TERÃO FICADO MUITO CLAROS, MAS QUE EU ADOPTEI COMO MEU IDOLO NA INFÂNCIA! COMO O NÃO CONHECI, A MINHA HOMENAGEM A ESTE PARENTE, É DEDICAR-LHE TUDO O QUE VOU FAZENDO NO CAMPO DAS ARTES! REIS CAÇOTE, É O PSEUDÓNIMO DE JOSÉ CASSIANO MONTEIRO!
Bestiário do intelectual angolano
Com um drone à procura de água e campos para cultivar, no nosso país está, hoje, o intelectual desencantado: testemunhou o fim da utopia, assistiu ao florescimento da corrupção, aderiu ao silêncio cúmplice e viu o desgaste da moral na sociedade angolana.
O balanço dos últimos sessenta anos, em Angola, é estarrecedor: o intelectual passou de ser revolucionário a ser irrelevante, de guia a indíviduo acanhado, de laico e marxista a religioso e obscurantista, de útil a parasita, de clarividente a manipulador, de orgânico a contestatário, de vital a inerte, de patriota a diaspórico e com dupla nacionalidade. Para não sucumbir, decidiu adorar a ciência para garantir o seu sustento.
Doze animais, - o camaleão, o rato, o pirilampo, o caracol, a lebre, o avestruz, o cão, o pássaro, o cágado, o papagaio, o porco e, porventura, o homem- são, pois, parte do bestiário que me ajuda a explicar o papel que os intelectuais foram e vêm desempenhando, na história de Angola. Alguns nem intelectuais são, porque não se dedicam às coisas do espírito e à reflexão séria, mas, se projectam como tal.
Em finais do século XIX houve, em Angola, um intelectual humanista preocupado com o cidadão consciente, autóctone, livre pensador e activista político nativista à altura das suas circunstâncias. Depois vieram o intelectual-camaleão, próprio do tempo colonial, e o intelectual-rato de biblioteca, que juntar-se-iam aos movimentos de libertação nacional, transformados em pirilampos. Ambíguos, versatéis e estudiosos, os intelectuais do fim do período colonial desejavam uma coisa e, em parte, o seu contrário, queriam a independência nacional, mas trabalhavam para as instituições coloniais, identificamse com os autóctones, mas eram colonos.
Os que conseguiram unir-se aos movimentos de libertação nacional estabeleceram uma ruptura decisiva, na luta anti-colonial: são os intelectuais-pirilampo. Ex-estudantes do liceu e ou da universidade, a maioria frequentou a Casa dos Estudantes do Império, outros andavam na rede da clandestinidade urbana, em Luanda, e não nos podemos esquecer dos que sairam dos seminários e das igrejas, todos converteram-se em guerrilheiros, à volta deles criou-se uma aura.
À margem do intelectual-pirilampo esteve, também, o intelectual-caracol: enrolado sobre si mesmo, casmurro por convicção e maniqueísta por educação.
Depois da Independência, apareceram o intelectual-lebre e o intelectual-avestruz: são os intelectuais orgânicos, militantes de partidos políticos. Quando eram mais adiantados que as massas actuavam como as lebres e depois, quando as teias de aranha os impediam de ver com olhos críticos os processos sociais, viraram avestruzes. Os totalitarismos de esquerda para eles não existiam. Eles assumiram ideologias de esquerda ou de direita, acomodaram-se, passaram a entender a política como um modo de vida.
Quando o muro de Berlim caiu, o intelectual angolano que viveu dos anos sessenta e chegaria até princípios dos anos noventa do século XX, que antes fora rato, pirilampo, lebre e avestruz, virou intelectual-cão: de cultura enciclopédica, sabia latim, falava alguma língua nacional e várias línguas europeias. Mas, nós vimo-lo a andar a pé na cidade, com os calçados empoeirados e com ponta deformada. Isso foi o que aconteceu com os que não enveredaram pela política: terminaram abandalhados pelo sistema.
A guerra continuou pouco mais de uma década e recomeçou, então, a vaga de exilados, que fez o surgimento do intelectualpássaro: faz parte da diáspora, desenvolve os seus trabalhos fora, nos circuitos comerciais e académicos ou entra e sai de Angola, a seu bel prazer. Parcial ou totalmente desconhecidos, ostracizados por aqueles que deviam promovê-los, muitos são lidos por todos, de outros não sabemos o que publicam. Neles reside parte da esperança no amanhã.
Nos últimos quinze anos, um grupo muito reduzido de intelectuais “enriqueceu” material e espiritualmente, “camuflado” em qualquer outro ofício: trabalham por vocação absoluta e são o germe do “intelectual humanista”, que ressurgirá ao lado do cidadão consciente. Mas, o que escandaliza é a aparição de três outros tipos de intelectuais: o intelectual-papagaio, que passa a vida a repetir lugares comuns, o intelectual-porco, que se chafurda em todas águas e pensa que sabe tudo, e o intelectual-cágado, que é um mandrião e finório. Estes intelectuais não têm feito quanto deviam para, com conhecimento, inteligência e imaginação, catalizar as transformações sociais, políticas, económicas e culturais de que a sociedade precisa.
Sem perder a esperança num amanhã diferente, o intelectual outrora desencantado está, hoje, a sobrevoar com o drone as zonas virgens e as mais belas paisagens deste país: ele está convencido que, com a força da juventude e dos que continuam a trabalhar com rigor, podemos construir um país melhor.
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