AMIZADES EM TEMPO DE CRISES II
…Senhores passageiros com destino à Marinha Grande, Albergaria e Barosa, dirijam-se ao autocarro 2172, que está a entrar na linha 5 e com partida às 8 horas.
Um amplificador de som, na época e o ainda hoje usado megafone, tentava, nem sempre com êxito, fazer-se ouvir, sobre a zoada de fundo de centenas de vozes a chocarem-se, naturalmente, no espaço do grande barracão, que ainda hoje é, a gare da camionagem de passageiros da avenida Heróis de Angola, se misturavam com os gases dos escapes das viaturas que ali entravam e dali saíam para os mais diversos pontos do País e até para alguns destinos da Europa.
Mal acabava a noticia altifalada, logo um grupo de pessoas, mais ou menos numeroso, variando com o dia sa semana, se dirigia para a porta de entrada do autocarro e se iniciava a entrada e arrumação.
Alguns dos Senhores passageiros, mais passageiras, que faziam há anos este percurso, tinham, quase por direito adquirido, lugar cativo nos bancos da frente.
Eram estes os que chegavam mais cedo à “bus station” e logo ocupavam os primeiros lugares na fila de acesso.
Os forasteiros e até muitos dos habituais não ligavam muito à questão dos lugares da frente; e, alguns havia que preferiam o último banco, no fundo da cabine ( termo chic, este ) que era a toda a largura interior do autocarro: uns aproveitavam para facturar mais meia hora a dormir de uma noite mal dormida ou nem sequer iniciada; outros, para ficarem mais distantes dos olhares curiosos, sempre à coca de, coscuvilheiros, aproveitavam os solavancos da viagem pela estrada mal cuidada, com largas falhas de alcatrão e lombas pelo excesso deste quando os remendos eram feitos, aproveitavam para, com menos esforço, treinar beijos, ensonados alguns, bem despertos outros; era fácil perceber de que categoria se tratava, pelo entusiasmo ou falta dele, com que se entregavam. Os solavancos serviam também para, os caloiros da arte de namorar ou os mais tímidos, aproveitarem e se tornarem mais ousados; vantagens que sempre eram obtidas com o mau estado dos autocarros e a má qualidade das estradas.
Voltando à “bus station”:
As oito horas chegavam, os motores já a tentar ganhar coragem para a viagem, lá vinham mais umas escapadas de gasóleo mal queimado a sair dos “ânus” dos velhos autocarros e com dificuldade em ascender, numa camada já densa e tóxica que os ventiladores não conseguiam aliviar; iniciada a manobra de marcha-a-trás, alguém grita lá do meio da cabine:
“oh, senhor motorista, dê só mais três segundos que a Teresa, mais uma vez, coitada, vem lá a correr!”
Vozes, em surdina umas, bem audíveis e divertidas outras, assim se manifestavam, por esta ordem, as que não gostavam da Teresa e as que até se divertiam com os atrasos e sprints finais da Teresa!
Teresa, a respirar forte e corada:
- Eh, pá, obrigado senhor João (era o motorista, neste dia, mas nem sempre era ele, o senhor João também folgava, também tinha férias e adoecia, como todos), desculpem lá, estava mesmo a ver que hoje ficava em terra! Estes horários, dão cabo de mim!
- Risos!
- Deixa lá, mulher, isto até faz bem, uma corridinha logo pela manhã!
- Faz uma porra! Já fui a correr com o Pedro pela mão para o infantário e esta segunda corrida deixa-me com os bofes à boca e o coração a 100 à hora! Se soubesse nunca me casava!
- Mas foi bom, não foi, Teresa? Alguém brincava lá atrás.
O autocarro já a sair da garagem e a entrar na Heróis de Angola:
- A Teresa, já mais calma, põe as mãos nos joelhos da Isabel, dá-lhe dois beijos e, como de outras vezes diz: tu és um anjo!
- Ela é um anjo e nós somos anjolas, ouve-se lá atrás!
- Quem é aquela enjoadinha? Pergunta a Teresa à Isabel.
- Não ligues, está a meter-se contigo, é a Lúcia e só entra às nove, como nós!
- Entro às 9, mas quero tomar o meu cafezinho e pôr a escrita em dia sobre a Marinha, antes de ir para o calvário!
- Logo vi! E meia hora não te chega? Pergunta a Isabel.
- Nem meio-dia era suficiente em alguns dias, mais-a-mais sendo hoje 2ª feira! Refila a Lúcia lá atrás.
A camioneta já tinha deixado a paragem dos Capuchos e seguia para a seguinte, por detrás das Escolas Técnicas.
A Teresa era casada, tinha duas crianças, a Inês com quase sete anos e o Pedro com quatro; o pai leva a Inês para a Cruz da Areia, para a escola e o Pedro é a Teresa que o vai levar ao infantário, atrás da Sé de Leiria, onde fica até o pai o ir buscar, por volta das seis da tarde, já acompanhado da Inês; a Teresa trabalha numa pequena loja de móveis e sai às dezanove, tendo boleia de uma amiga quase todos os dias, chegando a casa perto das vinte horas e nos dias em que boleia não têm, chega bem depois das vinte, indo na camioneta que sai da Marinha às dezanove e quarenta e cinco.
Apesar dos seus pouco mais de trinta anos, tinha já um ar cansado, que não melhorava muito aos fins-de-semana, segundo ela ia confessando: os dois filhos em casa, o marido a ajudar pouco, entretido com a sua bicicleta de estimação, mas que raramente saía da garagem, sem automóvel, que a vida não estava para aventuras de quatro rodas, com a mensalidade da casa a cair todos os meses naquele dia certo.
O fim-de-semana era aproveitado para tratar das roupas das crianças e dos adultos e só ao domingo, depois do almoço, davam um passeio até à cidade, mais para ver outras caras e se alguma coisa mudava, tão lento era tudo ou assim lhe parecia.
E a seguir a uma noite mal dormida, a maioria delas sem um carinho diferente, já que durante a semana era tudo a correr, lá vinha a segunda-feira, levantar às seis e meia, preparar as mochilas das crianças, preparar os pequenos-almoços, vestir-se e vestir os pequenos e lá estavam as sete e meia para correr com o Pedro até ao centro da cidade, deixá-lo à pressa e assim, mais que uma vez por semana, lá tinha que sprintar até à camioneta e ouvir a Lúcia, mais as suas insinuações.
Quem não teria um ar cansado aos trinta anos?
A Lúcia, um quarto de século de vida, duma alegria contagiante, num rosto bonito sem ser invulgar, bem tratado sem ostentação, emoldurado por uma clara castanha cabeleira, bem penteada e limpa, trabalhava no escritório de uma pequena oficina de moldes, a caminho do Engenho.
Só perdia o sempre presente sorriso, quando às oito já passadas via aparecer a Teresa a correr e a desfazer-se em desculpas.
Mais tarde vim a saber que a Lúcia e a Teresa eram amigas há muitos anos, nascidas no mesmo lugar de uma das freguesias do concelho, conhecendo-se desde sempre.
A Lúcia, que à sociedade com uma amiga, habitava um estúdio em Leiria, muitas vezes ficava de babysiter dos filhos da Teresa para esta e o João poderem dar um passeio, irem ao cinema ou mesmo curtir a noite.
Dizia ela, longe do burburinho da manhã no autocarro, que se antecipava sempre nas insinuações à Teresa, para evitar que algum forasteiro, algum/alguma dos/das habituais da tribo da camioneta das oito magoasse a amiga de infância.
Quem me deu nota de toda esta peça de teatro, tão natural que não precisava já de ser ensaiada, por estar em cena há pelo menos três anos, foi a Isabel, a única que, estando por dentro do enredo, se mantinha na plateia sem aplaudir ou patear. Era um segredo que guardava e só duas pessoas em quem confiava por inteiro, vieram a saber, sendo eu, uma delas.
A Isabel trabalhava numa empresa que vendia ferramentas e peças para a indústria de moldes e de um modo geral para outras indústrias, no caso das ferramentas; era das mais antigas e a mais bem abastecida da Vila.
Toda a gente, às oito da manhã, se acotovelava à entrada da camioneta, procurando ocupar um lugar o mais perto possível da Isabel; noutros lugares do mundo, onde com tudo se negoceia, os lugares perto dela seriam disputados por bom preço, mas ali era tudo tão natural que não havia disputas: quem ficava mais longe hoje, podia ficar mais perto no dia seguinte.
Só muitos anos passados, durante um período de doença da Isabel, doença grave, tendo mesmo que ser operada nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde esteve internada quase dois meses e aí a visitei duas ou três vezes.
Foi durante uma dessas visitas, acho que a última, que ela me contou como funcionava o mecanismo para ela, todos os dias, ter anedotas novas para contar e que transformava a carreira das oito num teatro ambulante e em movimento, onde as gargalhadas ressoavam desde os primeiros bancos até ao último, onde os que tentavam dormir uns minutos só o conseguiam se o sono resistisse ao som das gargalhadas ou dormisse nos intervalos, como a mim sucedia, na roça Quibaba, quando a noite era agitada pelos pedidos de fogo de artilharia e dormia nos intervalos das séries de obuses.
Ela, a Isabel, muitas vezes, gargalhava até antes de iniciar a anedota, só de pensar nela e durante a narrativa chegava a ter que parar, quase sufocada, para regular a respiração e poder continuar; e no fim, quando alguém não percebia devido à convulsiva forma que o rosto adquiria, a Isabel, de lágrimas a correr pelo rosto, vermelho de tanto esforço, tentava, em vão, repetir, a parte não entendida, mas não dava mesmo; parava, limpava os olhos.
- já sabem porque não me maquilho de manhã? Questiona ela. Era tempo perdido! Como entro às nove, tenho meia hora para o cafezinho, que não dispenso e para pintar os olhos. E por vezes tenho que limpar e repetir, pois mal me lembro das caras dos “espectadores”, lá se vai o rímel e tenho que repetir! Tenho que acabar cós as anedotas, senão qualquer dia não ganho para o rímel ou então começar a cobrar bilhete ou colocar uma caixinha a pedir contributo: “ É p’ró rímel, é p’ró rímel! E lá se vai mais uma camada.
Voltando atrás, à colheita das anedotas.
Houve um período, entre 1985 e 1990, em que o grupo dos colegas do almoço se desarticulou, devido ao desencadear da crise na empresa e que, sucintamente, posso definir como sendo o tempo que mediou entre a nacionalização e a passagem à iniciativa privada: uns deixaram a empresa, outros tomavam posição por este ou aquele grupo, conforme lhes parecia mais conveniente ou influenciável. Como membro da CT – Comissão de Trabalhadores, não podia, não queria, alinhar em claques ou fazer parte de clãs, a todos conhecia bem e por isso comecei a evitar os almoços conjuntos com os que ainda restavam e passei a almoçar nos restaurantes perto da estação da Rodoviária, onde passei a cruzar-me com a Isabel e, durante algum tempo, almoçámos juntos.
Nessas conversas, de mais ou menos uma hora, é que ela me falou da sua vida pós laboral e do “negócio” das anedotas.
Vendia, produtos vários, de homem e mulher, pelo método de catálogo, prática velha e que ainda subsiste ao turbilhão da publicidade, dos shoping’s e da Internet,
Como contactava com muita gente e era precisa uma certa forma de marketing para vender, ela adoptou a das anedotas, que resultava no esforço, à tarde e à noite e dispunha bem, de manhã, de regresso ao trabalho, onde nem sequer teve a vida facilitada, passando mesmo pelo assédio do chefe, inicialmente sexual e depois, perante a sua resistência e desagrado, passou à psicológica, incluindo a ameaça repressiva e que levou mesmo ao seu despedimento, mas que em Tribunal ganhou e foi indemnizada.
Raramente me cruzo com a Isabel, mas sempre que sucede há uma gargalhada a ensaiar, mesmo sem anedota, bastando recordar as que faziam o ambiente leve e saudável da carreira das oito para a Marinha. Sem a frescura daquela época, a sua voz ficou definitivamente perturbada pela intervenção cirúrgica e o abuso do cigarro, que nunca deixou.
Aquela amizade é hoje diferente, é mais aveludada pelos desgaste dos anos frenéticos que se sucederam.
Quase todos os dias, numa ou noutra das várias paragens do percurso, entravam caras novas a que o grupo dos veteranos, a tal tribo, designava por “forasteiros”, de certeza devido ao resíduo do que ficou dos muitos filmes de cow-boys que Hollywood criava e distribuía pelo mundo que influenciava.
Conforme a sua apresentação, fosse mulher ou homem, física ou oral, o grupo iria fazer a sua análise instantânea e corresponder.
Se se apresentava todo engravatado ou vestida de modo a dar nas vistas, era a conclusão de que lá vem mais um ou uma, inchado ou inchada; este parecer era, sempre diferente se, o “foras”, saudava os presentes ou não abria a boca quando entrava.
Alguns já não apareciam no dia seguinte e depressa eram esquecidos, nem sequer os comentários da véspera eram lembrados; outros andavam por ali semanas, mas ficar a acrescentar o grupo eram raros e quando ficavam, aos poucos, ia avaliando a tribo e o ambiente que a envolvia e se ia adaptando ou definitivamente o rejeitava.
Como o grupo era heterogéneo, não era difícil a integração e a festa, atenuada quando o foras entrava, logo retomava a sua habitual naturalidade.
Reis Caçote
2005/dig.2021
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