sábado, 30 de agosto de 2025

 

O “Admirável Mundo Novo…”

(Manuel Duran Clemente, in Facebook, 10/04/2022)

(Há textos notáveis e este é um texto notável. Uma reflexão sobre o atual momento histórico, vista pelo prisma de quem se sente português, em Portugal, integrando nessa visão todos os nossos méritos e deméritos, virtudes e defeitos, esses atributos que nos fizeram ser um pequeno país, ainda assim grande por vezes nos cometimentos – dizem alguns. Aqui fica. Para a reflexão de todos. Tanto dos que me aplaudem como daqueles que me querem calar e incinerar.

Estátua de Sal, 12/04/2022)


1. “Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da hipocrisia” podia ser o título dum ensaio sobre o que se lê nas redes sociais e na imprensa… Sobre o que se ouve nas televisões acerca da Guerra na Ucrânia, da perigosa invasão Russa e do esquecimento da estratégia de alargamento da NATO…!!!

A famosa distopia de Aldous Huxley sobre uma sociedade totalitária do futuro, regida pela tecnologia e pelo materialismo e sob a máscara da democracia e da felicidade.

“Admirável Mundo Novo” é uma parábola fantástica sobre a desumanização dos seres humanos.

«Na utopia negativa descrita no livro, o Homem foi subjugado pelas suas invenções. A ciência, a tecnologia e a organização social deixaram de estar ao serviço do Homem; tornaram-se os seus amos. Desde a publicação deste livro, o mundo rumou a passos tão largos na direcção errada que, se fosse escrita hoje a mesma obra, a acção não distaria seiscentos anos do presente, mas somente duzentos. O preço da liberdade, e até da simples humanidade, é a vigilância eterna.»

Encontrei hoje este preambulo assertivo ao pensar que vou deixar de manifestar a minha inquietação nas redes sociais perante a teimosia cega de uma corrente de afirmações pessoais e de uma histeria mediática apostada em inflamar os ânimos com visões parciais e caça às bruxas.

Em vez de iniciativas que imponham rapidamente a paz assistimos a uma onda de narrativa de ódio que se estende a toda uma Europa com censura e xenofobia contra a população russa que não tem responsabilidade com o que está a acontecer e, até, é também sua vítima.

Com uma vergonhosa onda de russofobia decidir penalizar trabalhadores, artistas, desportistas, eventos culturais…como está acontecendo por parte de certas organizações é uma atitude difícil de perceber.

Temos outra pandemia.

Ontem a adquirir medicamentos numa farmácia inquiri uma médica, lá trabalhadora, sobre a sua nacionalidade. Esquivou-se. Insisti. Com o meu instinto disse: “não me diga que é russa?”. Confirmou, com receio. Descansei-a com conforto verbal. Vim no regresso a casa perplexo e abatido. Que mundo é este?!!

2.”Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da hipocrisia” (Continuação).

“O presidente ucraniano, Volodydymyr Zelensky, disse, durante uma entrevista televisiva na segunda-feira, que não vai insistir na adesão da Ucrânia à NATO, uma das questões que motivaram oficialmente a invasão russa”.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky acusa o Ocidente de quebrar promessas sobre proteção aérea.

“Por várias vezes, Putin disse que a adesão da Ucrânia à NATO constituía uma ameaça para os interesses de Moscovo, tendo exigido ao Ocidente que não expandisse a sua zona de influência militar junto das suas fronteiras.”

“O Presidente russo também reconheceu as duas autoproclamadas repúblicas separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia, exigindo agora que Kiev também as reconheça.”

“A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional que está a responder com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e financeiras a Moscovo.”

“Vladimir Putin justificou a “operação militar especial” na Ucrânia com a necessidade de desmilitarizar o país vizinho, afirmando ser a única maneira de a Rússia se defender e garantindo que a ofensiva durará o tempo necessário.”

Estes são cinco parágrafos de notícias recentes conhecidas e dos OCS. De alguma verdade a que temos direito.

Mais há mais quem tenha escrito.

Desta vez Miguel Sousa Tavares, no jornal Expresso, nestas três ideias força:

“E se é verdade que Putin anexou a Crimeia, não é menos verdade que esta sempre fora uma província russa (como a Florida é dos Estados Unidos) — tanto que foi ali, em Ialta, que teve lugar a mais importante cimeira dos Aliados durante a 2ª Grande Guerra, entre Estaline, Churchill e Roosevelt, e que a sua anexação teve o apoio maio­ritário da população, pois a entrega à Ucrânia, durante o tempo da URSS, fora um gesto absurdo do ucraniano secretário-geral do PCUS, Khrushchov.”

“E na questão da adesão da Ucrânia à NATO, com a consequente instalação de tropas da NATO e armas nucleares no seu território apontadas à Rússia, Putin pode estar carregado de razão.”

“Por igual razão, Kennedy esteve à beira de desencadear a terceira guerra mundial quando o mesmo Khrushchov quis instalar mísseis russos em Cuba, apontados aos Estados Unidos. A mesma narrativa não pode ter duas leituras e duas morais diferentes.”» (M.S.T.)

A condenação -da invasão russa – pela generalidade da comunidade internacional pode confortar-nos a todos. A todos que seriamente odeiam invasões mas concomitantemente odeiam meias verdades. Cuidam de evitar entrar no palco da histeria mediática. Sem se darem conta das omissões graves e das visões parciais colocadas à vista de todos. Não só no que tem acontecido mas no que acontece no presente.

Não chega dizer. O passado não justifica o presente. Basta verificar. O presente resulta do passado.

Ontem. Todo o Ocidente lúcido se queixava. Ai o admirável mundo novo!

Hoje todos parecem terem sido vacinados. Acordaram na parte bela e feliz do planeta. A leste do Éden. Bem dentro Paraíso.

3. “Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da histeria” (Conclusão)

Nos anteriores capítulos falei do livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. Hoje vou falar das contradições do saber e não posso deixar de referir “A Rebelião das Massas” de J. Ortega y Gasset…notável pensador “hermano”.

Li-o antes dos meus vinte anos assim como Garcia Lorca, Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez, Simone Beauvoir, Marguerite Yourcenar (esse imortal “Memórias de Adriano”), A. Saint-Exupéry (a “Cidadela” e “Petit Prince”), John Steinbeck (“Ratos e Homens” e a “25ª Hora”), Torga, Camilo, Herculano, Eça, Fernando Pessoa (Obra Poética/ edição, em papel bíblia, de S. Paulo, 1960, que me acompanhou sempre nas viagens desde os meus 19 anos e ainda acompanha). Li outros calhamaços ou muito pequenos em tamanho como o que dizem ser – o mais bem escrito, de sempre (?)- “A Crónica duma Morte Anunciada” de GGM. Também li, escrevi e investiguei Camões, Cervantes e Bocage e até o Luso-Tropicalismo de Gilberto Freyre. Isto nos tenros anos 50, 60 e 70. Depois li muito mais como é óbvio, nunca esquecendo Saramago e para mim o seu eterno “Levantado do Chão”. Li bastante sobre geopolítica e política, como entenderão. No meu exílio – sabia (?) fui exilado na República Popular de Angola – até 09.Set.1976. Exilado por irmãos de Abril e depois deste. Nesses seis meses, com o “frio” da tropical angústia – sem filhos e família -voltei a ler o livro “Rebelião das Massas” que Edmar Edgar Valles, amigo assassinado no 27 de Maio de 1977, me havia emprestado. Fará algum sentido esta narração apologética narcísica? Faz. Na sociedade e “mundo” ignaros de hoje … Só alguns percebem como certas circunstâncias fazem sentido.

Acontece que em setembro passado numa entrevista que dei ao Jornal do Fundão, à ultima questão que me foi colocada, ficou lavrada a seguinte resposta:

Vejo com muita inquietação este crescimento dos extremismos. Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional, que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os mais desfavorecidos e descontentes. Saber mais e melhor é preciso para distinguir oportunismos assaz perigosos…

Isto foi dito, por mim, seis meses antes da invasão da Ucrânia. A nossa sociedade (a não alienada e até a alienada) clamava por mal-estar permanente.

Nós os portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns:

3.1.-Internamente: -*Reféns de uma cultura “de poder pelo poder” em vez “do poder pelas pessoas, pelas nossas gentes”…

*Reféns pela mentira, pela manipulação, pelo “faz de conta”…

*Reféns pelo angariar clientelas a todo o custo…criando elites sôfregas por lugares ao sol…e que por aí vão propagando formas de estar e de vivência nada condizentes com o espírito de Abril…

*Reféns de se fazerem de “ouvidos moucos” das verdadeiras necessidades e ensejos do povo trabalhador…

*Reféns de acções constantes dum asfixiar das responsabilidades cívicas e dos direitos de participação e da cidadania activa que Abril abriu…

*Reféns, por muito que nos custe, do prodígio da incompetência e da estratégia do suicídio…que o mais pessimista de nós nunca esperaria após o 25 de Abril…

*Reféns da ilusão de alternativas salvadores mas que apenas têm escondido o papel de afundadores do País de Abril, repetindo e alternando a farsa a que se entregaram nestas cinco décadas…subvertendo na prática as normas, os fundamentos e as linhas orientadoras da Constituição de 1976…e até querendo atribuir-lhe os males do País…

*Reféns pela incapacidade de desmontar uma intensa ofensiva ideológica levada a cabo pelos órgãos de comunicação, propriedade do grande capital, cujo objectivo tem sido criar condições favoráveis à continuação da política dos poderosos…e à desqualificação da vida dos trabalhadores…

*Reféns da corrupção, da apropriação, assalto e esbulho aos bens, que supostamente deveriam estar ao serviço de todos os cidadãos, mas têm servido para a criação de coutadas geradoras de lucros e escandalosas remunerações e prémios anuais recordes do mundo …

*Reféns, pecado maior, do mando dos grupos financeiros e económicos nacionais, a cuja subordinação, esta nossa democracia já compete com os piores tempos da ditadura…

E, ainda mais, a nível global, éramos ou estávamos reféns:

3.2-Externamente: -*Reféns duma débil e falsa União Europeia (um gigante de pés de barro) para onde partimos (em 1985) apenas com dez anos de democracia e com um estrondoso atraso estrutural económico (herdado da ditadura) que só por si merecia, como muitos avisaram, outro tipo de negociações, outras cautelas, leviana e festivamente, desprezadas…

*Reféns da incapacidade de fazer valerem os pontos de vista nacionais, submissos à abdicação e imposição que nos fragilizaram em sectores económicos vitais (como nas pescas, na indústria e na agricultura…) entre outras malfeitorias semelhantes…

*Reféns ou aliados à cegueira de não perceber que a crise internacional teve responsáveis…os mesmíssimos que agora a querem curar à custa dos mais fracos e dos que são sempre sacrificados: quem trabalha e produz…

*Reféns ou cúmplices da ignorância do que tem acontecido aos povos que recorreram à designada “ajuda externa” que não é mais do que um “eufemismo” porque significa tudo menos ajuda. É exploração, é especulação, é ingerência…

*Reféns duma lógica de integração capitalista que é o aumento da acumulação e concentração de capital dos grandes conglomerados de empresas, dos monopólios dos países mais ricos e desenvolvidos que não só engordam à custa do saque dos países do terceiro mundo, como também dos países menos desenvolvidos da U.E….

*Reféns, pecado ainda maior, de não perceber que as ditas crises financeiras resultam das crises do capitalismo e baseiam-se sempre na sobre acumulação de capital na esfera da produção. Não perceber que perante as crises ou impasses o capital monopolista irá tornar-se mais agressivo, predatório e sem escrúpulos, intensificando a exploração dos trabalhadores. O objectivo é a redução do custo da força do trabalho…

*Reféns de não perceber ou ser cúmplices de que nenhum pacto, mecanismo ou programa de estabilidade, poderá, só por si, debelar a crise ou resolver as contradições do capitalismo, como ataque selvagem e bárbaro do capital contra os direitos e vida dos trabalhadores, das camadas populares e dos jovens… …

*Reféns de não compreender que com a continuação das politicas e dos comportamentos ,que teimosamente o Capital impõe ( perante o qual se têm vergado os responsáveis portugueses)…com a continuação dessas políticas o desemprego, a pobreza, e as contradições entre os estados-membros da U.E. irão aumentar, com graves consequências para os povos…

*Reféns de não entender que a escalada de ataques antipopulares atingirá todos os estados membros da U.E, porque o Capital Monopolista quer é reduzir o custo da força do trabalho, o seu objectivo fulcral é reforçar a competitividade não só em relação aos EUA, mas também em relação às forças emergentes como China, India e outras, com mão de obra muito mais baixa… a questão dos défices e dos endividamentos pode ser apenas e tão somente uma cortina de fumo…

Nós os portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns destes factores.

Milagre. Com a brutal invasão do capitalista “putinista” deixámos de estar reféns? Ou, ao invés, ainda podemos ficar mais presos, mais pobres e mais alienados?

O título do livro de J. Ortega Y Gasset engana os ingénuos e incultos. Não trata da revolta do povo sacrificado. Trata do povo massificado pela poluição corrente da atmosfera. Poluição igual a ignorância. Ignorância igual a POPULISMO ou a pior. Hegemonia do obscurantismo, obstáculo do progresso e da união cidadã para uma sociedade melhor, mais verdadeiramente igualitária e solidária. Menos enganosa e hipócrita.

Viva Abril.


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