sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Carlos Matos Gomes 18 h · O DESAFIO DE PENSAR DIFERENTE Texto da minha apresentação do novo livro de Carlos Matos Gomes - A Verdade Única e a Heresia de Pensar - a noite passada, com sala cheia, na Casa do Alentejo, em Lisboa. Imagens de Carlos Martins, a quem muito agradeço.

 

O DESAFIO DE PENSAR DIFERENTE
Texto da minha apresentação do novo livro de Carlos Matos Gomes - A Verdade Única e a Heresia de Pensar - a noite passada, com sala cheia, na Casa do Alentejo, em Lisboa. Imagens de Carlos Martins, a quem muito agradeço.
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Permitam que comece por invocar Pessoa, como faço sempre que me encontro em situações como esta:
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer
Se fala, parece que mente
Se cala, parece esquecer
Espero aqui nem mentir nem esquecer, agradecendo desde já a V. atenção.
Antes de mais, quero agradecer ao Sr Coronel Carlos Matos Gomes e às Edições Colibri, na pessoa do Sr. Fernando Mão-de-Ferro, a lembrança que tiveram e o trabalho a que se deram de me ir desencantar no Alentejo - o que pressupõe uma memória benévola - no sentido de me convidarem a apresentar este novo livro: A Verdade Única e a Heresia de Pensar
Confesso que a minha primeira reação foi a de declinar o convite.
Já estou velho e prometi a mim próprio, desde que regressei definitivamente a Portugal, o ano passado, manter-me afastado da ribalta, refugiando-me no meu Alentejo, e cultivando aí, à moda da Antiguidade Clássica, uma "aurea mediocritas", à qual, passe a imodéstia, penso que fiz jus após uma vida bastante agitada pelo mundo em pedaços repartida. Isto porque a certa altura me dei conta, como na Mensagem, que depois tanta navegação e tanto mundo, faltava-me ainda cumprir Portugal.
No entanto, refletindo melhor, reconsiderei e acabei por por aceitar o desafio.
Percebi que esta era afinal uma oportunidade única de fechar o meu ciclo de vida social: por um lado, preencher uma lacuna e conhecer pessoalmente de perto um dos homens-chave do 25 de Abril, aqueles que, há 50 anos, tiveram a coragem de cortar o Nó Górdio que sufocava Portugal; no caso do coronel Matos Gomes - amigo de Salgueiro Maia e Jaime Neves, um dos que avançaram mais rápido do que a própria Junta de Salvação Nacional na tomada de decisões em relação às colónias, designadamente na Guiné-Bissau.
Ao mesmo tempo, com ele e através dele, voltar também ao breve convívio das pessoas da minha geração, com algumas das quais no final dos anos 60, fiz parte das lutas estudantis.
Fomos, sem nada hoje lamentar, como na canção de Edith Piaff, a geração ié-ié- /rock and roll, a geração dos Beatles, a geração Gestettner, as policopiadoras a álcool em que multiplicávamos os comunicados sobre as nossas iniciativas como o ciclo de colóquios sobre os Direitos da Mulher ou as manifestações contra a guerra do Vietname.
Estar aqui esta noite representa, por isso, fechando o ciclo,
afirmar - perante mim mesmo e perante os outros - que o isolamento que escolhi não é uma apostasia;
Estar aqui significa dizer que,
embora como profissional sempre tenha tentado ser o mais equilibrado e isento possível,
e apesar de ter feito ao longo da vida alguns recados às bruxas,
descontadas as inevitáveis hesitações e correções de percurso, continuo - afinal e no fundo - do mesmo lado em que sempre estive:
o da luta pela liberdade e pelos direitos da Humanidade, pela solidariedade com os humilhados e ofendidos de todo o mundo e de todos os quadrantes, por maior igualdade entre as pessoas, contra a ditadura e o pensamento único, contra o "there is no alternativ", a famosa TINA, venha ela de onde vier.
Nós, os da geração de babyboomers que se seguiu à segunda guerra mundial, aprendemos por nossa conta e risco, a desafiar a ditadura nos nossos verdes anos e isso não se apaga nunca.
Pelos versos de Sophia na voz do padre Fanhais,
aprendemos que vemos, ouvimos e lemos,
e por isso
não podemos ignorar
os relatórios da fome
os caminhos da injustiça
a linguagem do terror
a lamentação dos povos destruídos, dos povos destroçados - como hoje, entre outros e tragicamente, o povo palestino.
Aprendemos também, com Manuel Freire, que
Não há machado que corte a raiz ao pensamento, cuja força vai mesmo para além da morte
Se ao morrer o coração/morresse a luz que lhe é querida/ sem razão seria a vida sem razão
Nada apaga a luz que vive/num amor num pensamento/ porque é livre como o vento/ porque é livre
Nestas circunstâncias, sendo o livro de Carlos Matos Gomes justamente sobre essa questão essencial da liberdade de pensar, entendi que não poderia deixar de estar presente.
Gosto de pensar que por vezes os astros se alinham numa dada direção ; e quando Deus quer e o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que reencontrasse os homens da minha geração e estar hoje aqui, à maneira de Kant, acabou por se se tornar um imperativo categórico, um destino marcado.
Foi essa força do destino, essa mão-de-ferro, mais até do que a do homem que dirige a Colibri, que me trouxe hoje até aqui. A conspiração dos deuses - ou do destino, como se queira - foi tão completa que até colocaram a apresentação aqui, na Casa do Alentejo, que conjuga as duas das vertentes que me são mais caras - a minha pátria de origem e a luta pela liberdade: como poderia eu, pobre mortal, resistir?
Mas refletir em profundidade sobre este tema, como nos propõe e desafia o novo livro do Coronel Matos Gomes, é um desafio imenso a que eu, com as minha limitadíssimas capacidades e em escassos 15 dias, não podia, por mais que me esforçasse, responder satisfatoriamente; por isso peço desde já a V. benévola compreensão.
O que posso e devo fazer, sem querer abusar demais da V paciência, é levantar algumas questões que haveria de aprofundar e ficam por responder:
- Sendo os homens animais gregários e prevalecendo sempre o coletivo, a que título se justifica a voz individual, o pensar contra a corrente? O que a legitima?
- Onde está a fronteira entre a dúvida legítima e o injustificado e quase sempre perigoso desafio à autoridade?
Já Ortega e Gasset lembrava:
"Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo a mim"
- O impulso à afirmação individual, ao remar contra a corrente, é inato na Humanidade?
- Ou trata-se mais de uma tradição ocidental, apesar de todas as repressões, de todas as violências, de séculos de Inquisição, que deixaram um inapagável e irresgatável rasto de dor e sangue no caminho da liberdade?
- Mas estamos nós suficientemente treinados no exercício da tolerância a ponto de considerar seriamente os pontos de vista dos quais discordamos?
- A Oriente os valores são, com recorrência, diferentes - preferindo-se, muitas vezes, mais a harmonia do que o exercício pleno da liberdade; na Malásia, por exemplo, soube outro dia, a maioria acha até que deveria haver uma lei que proibisse criticar o governo...
- E sendo diferentes os valores, que legitimidade tem o Ocidente de impor os seus?
- Haverá um caminho no sentido de conciliar essas visões divergentes?
- Como caminhar no sentido do progressivo alargamento da liberdade a toda Humanidade, fazer dela um verdadeiro valor universal, sem entrar em conflito com as sociedades que têm outros valores, sem entrar em maniqueísmos, sem provocar guerras?
- E reflexamente, como evitar que por ação conjugada dos monopólios, das corporações, da alta finança e dos media, como evitar que em nome da democracia destruam a democracia?
- Como evitar que as nossas sociedades de liberdade de expressão, Estado de direito, respeito pelo indivíduo, resvalem para o absolutismo do pensamento único ou
- façam, por exemplo, de Julian Assange um novo Nelson Mandela, um novo Andrei Sakharov?
- Por fim, mas não em último lugar, em toda essa reflexão, que papel para as religiões? Como conjugar fé e razão como tentou Santo Agostinho depois da queda do império romano às mãos dos bárbaros em resposta aos que disso culpavam os cristãos?
Por este simples elencar de questões se percebe como A Verdade Única - a Heresia de Pensar - é um verdadeiro Livro do Desassossego, um Livro Corajoso, um Livro Inquietante, um Livro de Cabeceira, embora devamos alertar os mais sensíveis que pode provocar insónias.
Podemos muito bem com ele não concordar em tudo, o que não podemos é deixar de aceitar o desafio que nos lança de pensar diferente.
Embora seja uma recolha de artigos escritos ao longo de uma dezena de anos e abordando diversos temas, este livro é mais do que uma simples coletânea e ganha uma relevância superior à simples soma das partes. Nele, o quase "samizdat" a que a pequena repercussão de cada artigo fica quase sempre confinada ganha uma compreensiva amplitude de conjunto com muito maior impacto, impondo-se à atenção de todos.
O que opera essa metamorfose é a oportunidade do momento em que ocorre o seu lançamento - o conjunto de agudas crises que atravessamos - económica, política, social, moral... - todas elas de uma forma ou de outra abordadas nos artigos coligidos para as quais o autor procura uma explicação das causas, não se limitando à mera descrição dos efeitos.
Outro motivo de grande interesse são as descrições, com conhecimento de causa direto, de episódios e contextos desses momentos cruciais da nossa história contemporânea que foram o 25 de Abril e o 25 de Novembro, quer um quer outro classificados sem peias como golpes de Estado pelo autor. Tudo isso enquadrado numa visão estratégica dos grandes confrontos de interesses a nível mundial.
- Destaque também para a questão central do papel dos media, que hoje e cada vez mais, em vez de se assumirem como contra-poder revelam, pelo contrário, estar cada vez mais ao lado poder.
- Tudo na linha de um Ryszard Kapuscinski, para quem, desde que a informação virou mercadoria, a verdade deixou de interessar ou também de um Joseph Pulitzer que, com conhecimento de causa, escreveu que "com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, dogmática e corrupta, acabará por formar um público tão vil quanto ela própria".
De caminho, o autor ainda tem tempo de entrar em polémica com a socióloga Raquel Varela sobre os fatores determinantes dos acontecimentos históricos - se a luta das massas trabalhadoras como ela defende ou se as novas tecnologias no campo militar, como argumenta Matos Gomes.
Vindo do aparelho militar do anterior regime, com cujos principais chefes da fase final conviveu - como Spínola e Costa Gomes - e apesar das suas opiniões fortes, o autor revela uma capacidade de avaliação independente, fugindo sempre ao maniqueísmo, como quando analisa o papel e a relevância política de algumas das grandes figuras do período anterior ao 25 de Abril como Adriano Moreira, Teotónio Pereira, Franco Nogueira - configurando-se assim ele próprio, como uma ponte arguta, um traço de união entre o passado e o presente da história portuguesa do último século.
O conhecimento da História de Portugal, da qual evoca por vezes acontecimentos pertinentes, a par do domínio dos grandes clássicos do pensamento filosófico e político é outro dos traços que muito enriquecem a análise de Carlos Matos Gomes.
Tudo isso num estilo claro, direto, em que por vezes perpassa uma ironia de matriz queirosiana; como quando escreve, por exemplo, que a França tem no Médio Oriente a mesma prioridade de todos os outros países europeus: Nenhuma...
É aliás numa nota de ironia que o autor remata o livro, quando - depois de o ter na entrada dedicado aos que pensam - fecha com um apelo a que - perante o estado do mundo - não se pense e nos limitemos a ter fé e esperança de que, apesar da hecatombe que nos ronda, acabaremos todos por sobreviver como as baratas, que se têm revelado resistentes a todos os cataclismos.
Trata-se, claro, de ironia amarga, por parte de um homem algo desencantado com a Humanidade, um cético confesso que prefere a razão à fé.
Até porque, hoje como há 50 anos, e evocando de novo Sophia
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado
Suspeito, entretanto, que lá no fundo, no fundo, Carlos Matos Gomes não deixa de ser um crente - um crente que, contra toda a esperança - numa reversa imagem das figuras de um qualquer filme de Tarkovsky - ainda mantenha acesa a pequenina luz bruxuleante de que falava Sena, a pequenina luz bruxuleante de uma secreta e indizível esperança que vai alimentando com os seus livros.
Se não, porquê escrever? Muito obrigado, Carlos Matos Gomes, muito obrigado a todos.
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