De Cabo Delgado ao Iémen, de Myanmar ao Haiti - Os conflitos esquecidos
A invasão da Ucrânia por parte da Rússia tem centrado as atenções do mundo desde fevereiro, temendo-se a ameaça do recurso a armas nucleares. O conflito na Europa deixou para segundo plano conflitos noutros continentes, em alguns casos onde a guerra já dura há mais de uma década. É o caso da Síria, onde os protestos da Primavera Árabe de 2011 contra o presidente Bachar al-Assad desencadearam uma guerra civil onde acabaram por intervir várias potências estrangeiras. Mas há também situações prestes a explodir, como é o caso do Haiti que está nas mãos dos gangues e onde a intervenção da comunidade internacional poderia representar um alívio para as populações, as primeiras a sofrer e a ter que deixar as suas casas. Há ainda avisos de que em algumas regiões, como no Sahel, a situação é explosiva e poderá tornar-se num problema maior para a Europa, com novas vagas de refugiados. E mesmo onde já houve tréguas, como na Eritreia ou na Etiópia, estas acabaram por desmoronar e teme-se novas escaladas de violência.
Haiti - Um país ingovernável nas mãos de gangues

© EPA/Johnson Sabin
Relacionados
Oassassinato do impopular presidente Jovenel Moïse, em julho do ano passado, acentuou a crise política e colocou o Haiti numa espiral de violência, onde os gangues lutam entre si pelo controlo do território, obrigando milhares a fugir de casa. Na sexta-feira, o líder de um dos principais partidos políticos do país, Éric Jean Baptiste, foi também assassinado. Desde setembro que os gangues mantém um cerco aos terminais de combustível e sem este não há eletricidade, ficando em causa o fornecimento de água potável e agravando a epidemia de cólera. Os gangues exigem a demissão do primeiro-ministro e presidente interino Ariel Henry, que tinha sido escolhido para chefe de governo dois dias antes da morte de Moïse (foram levantadas suspeitas em relação ao seu eventual papel). Face à situação caótica, Henry pediu ajuda internacional. O secretário-geral da ONU, António Guterres, defendeu o envio de uma força para lidar com a "situação de pesadelo", mas não houve acordo no Conselho de Segurança - uma das anteriores intervenções da ONU reintroduziu a cólera no país, que já causou a morte a mais de dez mil pessoas.
Síria - As ruínas de um país em guerra há mais de uma década

© EPA/WAEL HAMZEH
Os protestos contra o presidente Bashar al-Assad, em plena Primavera Árabe de 2011, escalaram para uma guerra civil que acabou por atrair várias potências internacionais (para um e outro lado do conflito) e deixou a Síria esquartejada entre diferentes poderes, incluindo grupos terroristas como o Estado Islâmico. Centenas de milhares de pessoas morreram e milhões ficaram sem casa, criando uma das maiores crises de deslocados e refugiados da história. Além disso, a guerra deixou o país em ruínas, com as forças de Assad (apoiadas pela Rússia e o Irão) a conseguirem recuperar o controlo da maior parte do território. Os rebeldes (e os grupos terroristas) foram empurrados para uma zona no noroeste, na região de Idlib e partes de Aleppo, próximo da fronteira com a Turquia. Ancara tem realizado várias incursões na região, aproveitando para atacar as milícias curdas, e criou uma zona tampão para afastar os combates da sua fronteira, aproveitando a saída dos EUA do conflito. No meio de tudo isto, há milhões de refugiados que estarão a ser obrigados a regressar - a Human Rights Watch acusa o governo turco de forçar o regresso de centenas de pessoas e o Líbano também está a repatriar, supostamente de forma voluntária, os sírios. Entretanto, Israel continua os seus ataques com mísseis contra a Síria, incluindo os aeroportos de Damasco e Aleppo, alegando ter como alvo as bases de grupos apoiados pelo Irão.
Iémen
Sahel - A violência terrorista é uma "bomba" à espera de explodir

© EPA/ASSANE OUEDRAOGO
O golpe de Estado no final de setembro foi o segundo do ano no Burkina Faso e o sétimo em pouco mais de dois anos na parte mais ocidental do Sahel (região que atravessa uma dúzia de países do Senegal à Eritreia). "O Sahel é uma bomba relógio, com mais de dois milhões de pessoas deslocadas internamente e com muitas das suas regiões sob o controlo de grupos islâmicos" extremistas, alertou o representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados no Mali, Mohamed Askia Touré, avisando que essa bomba pode explodir e causar problemas graves à Europa. As dificuldades de governação tornaram a região num berço para o extremismo violento, onde se multiplicam os grupos ligados ao Estado Islâmico ou à Al-Qaeda, com a comunidade internacional a apoiar operações contraterroristas que só atraíram mais violência e desestabilização. No Mali, epicentro do Sahel, os golpes militares de 2020 e 2021 levaram à saída das tropas francesas, no final de nove anos de cooperação, com os mercenários russos do Wagner Group a ocupar o espaço deixado vago - sendo desde então acusados de vários abusos. Os mercenários também já estavam na República Centro-Africana, de onde os franceses também já anunciaram a retirada. No Chade, a junta militar é acusada de tortura e execuções após protestos e por todo o lado multiplicam-se os ataques dos grupos terroristas. Problemas sem solução à vista.
Moçambique - Cinco anos de guerra contra o terrorismo em Cabo Delgado

© Camille LAFFONT / AFP
Cinco anos após as primeiras incursões islamitas em Cabo Delgado, e apesar da presença das forças de Moçambique e do Ruanda desde agosto de 2021, a situação está longe de controlada, com ações de grupos aliados ao Estado Islâmico a alastrarem também às províncias vizinhas de Niassa e Nampula. O conflito já causou a morte a 4300 pessoas e obrigou pelo menos um milhão a sair de casa, segundo os dados do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Dos que não conseguem fugir, as mulheres são raptadas e mantidas como escravas sexuais, enquanto os rapazes são transformados em crianças-soldado. Cabo Delgado, a província mais pobre de Moçambique, é rica em gás natural e podia ser uma alternativa ao gás russo em plena guerra da Ucrânia - se os franceses da TotalEnergies não tivessem tido que parar quase toda a produção. A expectativa era, contudo, que a primeira exportação de gás natural liquefeito produzido na província ocorresse no final de outubro ou início de novembro. Apesar de um discurso mais positivo do presidente Filipe Nyusi em relação à situação no terreno, os insurgentes visam ataques destinados a causar medo à população e desestabilização económica, como por exemplo o de há dez dias a uma mina de rubis.
Etiópia - Esperança nas negociações de paz depois do fim da trégua humanitária

© Yasuyoshi CHIBA / AFP
Após cinco meses de trégua humanitária, os combates regressaram à região de Tigray (ou Tigré) há dois meses. A guerra começou em novembro de 2020, quando as forças do governo de Abiy Ahmed atacaram as da Frente Popular de Libertação do Tigray, um antigo movimento rebelde que dominou durante quase três décadas a política etíope. A ideia era recuperar rapidamente o controlo da região, depois de alegadamente os rebeldes terem atacado um campo do exército, mas a tarefa revelou-se mais difícil do que o esperado. Os rebeldes contra-atacaram e conseguiram recapturar a maior parte do território perdido. Dezenas de milhares de pessoas morreram e milhões foram obrigadas a fugir das suas casas, com ambos os lados a serem acusados pela Amnistia Internacional de crimes de guerra e atrocidades. O impasse levou à trégua em março, que foi quebrada em agosto, com as forças etíopes, junto com as aliadas da Eritreia (Ahmed ganhou o Nobel da Paz em 2019 por fazer as pazes com o velho inimigo), a recuperarem terreno no Tigray. Negociações formais de paz começaram na semana passada na África do Sul, com a mediação da União Africana, mas ainda não há luz ao fundo do túnel.
Iémen - O fim da trégua faz temer nova escalada do conflito

© EPA/YAHYA ARHAB
Após meses de uma trégua periclitante, a guerra entre os rebeldes hutis apoiados pelo Irão e as forças pró-governamentais apoiadas pela coligação liderada pelos sauditas ameaça voltar a reacender, deixando a situação ainda pior para os iemenitas que estão a morrer à fome (a Ucrânia fornecia 40% dos cereais consumidos no Iémen e a comida está este ano 60% mais cara). Os hutis desceram das montanhas em 2014 e ocuparam no norte do Iémen, incluindo a capital Sanaa, forçando o governo reconhecido internacionalmente a fugir para o exílio na Arábia Saudita. Desde então mais de 150 mil pessoas morreram, havendo ainda três milhões de deslocados. A trégua foi instituída em abril, inicialmente devia ter durado apenas dois meses, mas foi sendo renovada até ao início de outubro. Sem acordo, os hutis já retomaram os seus ataques, temendo-se uma escalada da situação que dificulte o envio de ajuda humanitária.
Myanmar - A repressão da dissidência após o golpe militar

© AFP
A 1 de fevereiro de 2021, os militares voltaram a tomar o poder em Myanmar (antiga Birmânia) pondo um ponto final na frágil transição para a democracia. A justificação para o golpe foi a alegada fraude nas eleições de 2020, ganhas pela Liga Nacional para a Democracia de Aung San Suu Kyi, com a histórica opositora no caminho para ter ainda mais poder. Mas desde então está detida, tendo já sido condenada a mais de 26 anos de prisão por dez crimes, incluindo cinco de corrupção. Os birmaneses saíram à rua para contestar o golpe, com os militares liderados pelo general Min Aung Hlaing a responder com violência contra qualquer dissidência. Mais de 2300 pessoas morreram na repressão e pelo menos 15 mil foram detidas, com a junta a acusar os combatentes anti-golpe da morte de cerca de 3900 civis. Milícias locais, as Forças Populares de Defesa, foram formadas, contando em alguns casos com o apoio de organizações armadas de diversas etnias que durante décadas lutaram contra os militares. A Associação de Nações do Sudeste Asiático tem procurado, sem sucesso até ao momento, que haja negociações para resolver a crise no país. Mas a junta militar avisa que estabelecer um calendário pode ter "implicações negativas".
Sem comentários:
Enviar um comentário