O AVÔ JOAQUIM REIS CAÇOTE, PAI DE MINHA MÃE E MAIS DUAS FILHAS E UM FILHO, EMIGROU PARA O BRASIL NA PRIMEIRA DÉCADA DO SEC.XX, POR MOTIVOS QUE NUNCA TERÃO FICADO MUITO CLAROS, MAS QUE EU ADOPTEI COMO MEU IDOLO NA INFÂNCIA! COMO O NÃO CONHECI, A MINHA HOMENAGEM A ESTE PARENTE, É DEDICAR-LHE TUDO O QUE VOU FAZENDO NO CAMPO DAS ARTES! REIS CAÇOTE, É O PSEUDÓNIMO DE JOSÉ CASSIANO MONTEIRO!
segunda-feira, 26 de novembro de 2018
quarta-feira, 22 de agosto de 2018
terça-feira, 21 de agosto de 2018
terça-feira, 31 de julho de 2018
domingo, 18 de fevereiro de 2018
MARIA ANASTÁCIA
A MARIA ANASTACIA É UMA CONTERRÂNEA, DE IDADE NÃO DEFINIDA, SOFRENDO DA DOENÇA DE "TOURETTE", SE NÃO ESTOU EM ERRO, DA QUAL SOUBE QUE ESTEVE OU ESTARÁ, INTERNADA NUM LAR DA MISERICÓRDIA, NAS CHÂS OU MUXAGATA! NUM SUBTITULO ESCREVI: UMA VIDA QUE NUNCA FOI!
MARIA
ANASTÁCIA
Uma vida
que nunca foi…
I
Os meses
de Verão – Junho, Julho, Agosto e parte de Setembro – naquela faixa do País,
junto à fronteira com Espanha, que vai, ou vem, como for mais cómodo, do
estremo Nordeste do Distrito de Bragança, atravessa o rio Douro e se estende
ainda por diversos quilómetros do distrito da Guarda, sempre junta à raia, são
de todo desaconselháveis a quem não esteja bem habituado e até mesmo a estes,
em certas horas do dia.
Ou aos
que, como o Silvério e eu, por exemplo, que desde há muitos anos, por razões
que todos devem saber, até melhor que nós sabemos, deixámos o triângulo formado
pelo rio Douro e pelo seu afluente da margem esquerda, o Côa.
Só mesmo
quem tenha que ali estar ou passar é que se aventura! O Sol, não sei por que
razão especial, mas que deve ter muito a ver com a limpidez da atmosfera,
parece descarregar ali as suas fúrias astrais, dissolvendo em vapores
ineficazes a pouca humidade e sem um mínimo de dó tenta, e muitas vezes
consegue, secar tudo onde acerta! Sim, por que vai acertando sempre, mais nuns
sítios que noutros, mais nas soalheiras, encostas do Sul e Poente, por isso
lhes chamam soalheiras, do que as voltadas a Nascente e Norte.
Não
tinha previsto este ano ir para aqueles lados, mas a ida da minha única irmã, a
Maria Juliana, para o lar da Misericórdia de Foz Côa, agora não é já Vila Nova
de Foz Côa como o fora durante séculos, por ter ganho o estatuto de cidade e
aos meus conterrâneos, que sabem destas coisas que eu não sei e saberão outras
que eu não entenderei também, nem faço esforço para entender, terão achado que
se é cidade não deve ser vila e, ufanos, duma só penada, suprimiram o Vila Nova
de e agora já se não sabe se é Nova, de meia-idade, ou se, o que é mais certo,
anda já pela terceira idade, designação moderna, culta e educada que passou a
ser a dos antigos velhos! Durante o pouco tempo que lá estive, há dias, só vi
idosos (os velhos antigos acabaram), dentro e fora do Lar. E poucos! Ou porque
estavam resguardados em casa ou em alguma sombra onde passasse uma brisa,
daquelas que não dão sequer para acordar os espanta espíritos ( e neste caso
ainda bem porque não faço a mínima ideia do que possa suceder com um espirito
espantado, porque nunca vi nenhum e nada sei sobre espíritos, a não ser aqueles
dichotes que nem parecem de gente culta, “estás com o espirito da mula” ou” não
tens espirito aventureiro” ou ainda e aqui sim, mais elegante e educado, “estás
muito espirituoso!” neste caso deve sempre levar um ponto de exclamação ou de
admiração, como eu mais gostaria), por mais leves que sejam os seus elementos.
As
ovelhas, as poucas que por lá andam espalhadas pelas encostas empinadas, a
balir tristezas e cansaços, mesmo que, naqueles citados meses de Verão, já
aliviadas dos seus casacos de pele de ovelha, melhor dizendo, de lã de ovelha
ou de carneiro, que estes também os usam, por muito carneiros que sejam o frio
e o calor também os não excluem, pela tosquia de Abril, a certas horas do dia
daqueles meses de Verão, quando não encontram no trajecto lento e incerto, uma
ou mais árvores para acarrarem, encostando-se uma às outras, escondendo quase
só a cabeça dos ardores do Sol, mesmo que tal gesto as force, durante horas
seguidas, a inalarem os odores fecais das uma das outras e que nesta espécie
das badanas as fezes se vão acumulando à volta do ânus e aos poucos, conforme a
lã vais crescendo, vai formando pequenas bolas alongadas e que parecem
andaluzas castanholas mal ocadas, quando em movimento.
Tudo é
preferível a apanharem com o sol na cabeça: ou enlouqueciam, não como as vacas
mal comportadas e por isso sequestradas nos civilizados estábulos, porque a
mioleira, com tais raios, o mais certo seria ficar cozida e pronta a servir aos
apreciadores desta iguaria e que desde há muito era recomendada pelos
“pediatras” às crianças tenrinhas ou de tenra idade, como sucedeu com os meus
filhos.
II
Voltando
a Foz Côa e à mudança de nome. Pequena, mas mudança.
Dizia eu
que os entendidos lá da zona, por iniciativa própria ou sábio conselho externo,
pouparam umas quantas letras ao nome da terra na sua passagem de Vila a Cidade.
Bem vistas as coisas, não terá sido nada de tão criativo nem transcendente, se
tivermos em conta que em algumas freguesias do concelho, nomeadamente aquela onde
nasci, quando se referiam à sede do concelho era sempre “vou a Foz Côa fazer
isto ou aquilo” e não nomeavam o cansativo início de Vila Nova de, parecendo
até que havia duas vilas, a Nova e a velha, coisa de que nunca se ouviu falar.
E até
acho muito bem! Quando alguma coisa nasce, não nasce velha e esta Vila, quando
nasceu, só podia ser nova e nova ficaria se não fosse a ainda mais nova ideia e
execução da mudança.
Se
calhar como Vila Franca das Naves, Vila Franca de Xira, Vila Nova de Famalicão,
Vila Verde de Ficalho, Vila Real de Santo António e tantas outras, como Vila
Nova de Ourem, aqui pertinho.
Uns
entendidos deixaram ficar o nome que tinham, outros alteraram-nos e assim é que
é bonito, criativo e bem democrático!
Ou terá
sido por uma questão de estética que uns deixaram e outros apagaram?!
Apagar
as “Vilas Novas”, como as de Gaia, nem fica de todo mal; o mesmo entendimento
para Foz Côa e Ourem! Não seria tão elegante se os de Vila Franca de Xira
resolvessem apagar a “Vila” e ficaria aquela coisa meia-coxa e sem graça
“Franca de Xira”! Franca…de …Xira! Que horror! Era o mesmo que fazer
desaparecer os
Campinos, toiros e
fado
E esperas de gado
E até o
colete encarnado!
E com
Vila Real de Santo António o atentado seria ainda mais desastrado! Ficava Real
de Santo António, porque só Santo António, se ficasse, era o fim da macacada!
Santo António não é nome de terra, é de Santo! Até, ali no antigo fora de
portas de Lisboa, nasceu um santo António, mas para ser de alguém, nesta fúria
desvairada de tudo ter dono, entregaram-no aos Cavaleiros! De onde vieram estes
cavaleiros? Como a não quero nem de borla, fiquem com ela e vos faça bom
proveito.
Quem
previu esta açorda com montes de anos de antecedência foi lá o norte de
Portugal que, sem caganças, chamou apenas Vila Real e assim continua como
cidade, pois ficar só Real, em tempos de República –ahahahah! Republica! –
mesmo a rir não ficava bem e o mais certo era pensarem que estávamos a ser
colonizados pelo Brasil e pela mão do Presidente Lula e o seu Real que o tempo
não era de cruzeiros…
Mas cá
para mim, voltando a Foz Côa, esperando que ninguém me piça, do que os
decisores quiseram ver-se livres, claro que não o confessam e eu também não
garanto que tenha sido por esse motivo, foi do dito que circulava na freguesia
onde nasci, Castelo Melhor, e era assim:
Muxagata das Tomatas
Vila Nova dos
Ladrões
Almendra dos
Urtigões
Castelo Melhor dos
Pimpões
O melhor
é ficarmos por aqui, o assunto já deu o que tinha a dar, e não deu pouco, cada
um fez e fará como entende e isso é que é lindo, democrático, liberal, tudo o
que há de bom e culto, para não dizer outra coisa, que seria disparate pela
certa, pois é com acentuado pendor para ele que o raciocínio descamba.
III
Como a
Rua da Junta e arredores, Castelo Melhor, estava a ficar despovoada (a rua e a
povoação inteira) pois só por ali andavam, como resistentes fantasmas, uma ou
duas dezenas de velhos e um deles me confessou que desde há vinte anos só
nasceu uma criança, filha de um dos últimos professores para ali desterrado.
Actualmente
não há alunos nem professores; fecharam a escola, como fecharam milhares de
outras por esse Portugal que foi, pátria de Heróis e de Santos, de Sábios e
Descobridores, de Camões e outros Poetas, Artistas e Cientistas, Toureiros e
Fadistas e de Adamastores vencedores!
E agora?
Pergunta o náufrago daquela ilha da televisão – Maré Alta – e ao ouvir, já a
salvo no navio de cruzeiro, que o Império, berço de tão nobre gente, se
desmoronava e sem brilho, como todos os impérios e o berço se esvaziavam, o
país se transformava num Paraíso de ladrões, vigaristas, de trastes de todo o
tipo, de onde muitos vão fugindo e outros abandonando por nele se sentirem tão
mal, o naufrago grita
“ Eu não quero ir para a
ilha, eu vou voltar para a ilha” e atira-se ao mar, enquanto outros, mais
reais, se fazem às estradas da terra, do ar e do mar!
A
Portugal, só de fé…nem de férias!”
IV
A
solidão que invadia a Rua da Junta e todo o povoado, ou melhor, todo o
despovoado, que nem o achamento das gravuras rupestres mudou, como garantia o
picareta Guterres do alto da sua bocial papada, deixa sem protecção, sem abrigo
não, isso é o que não falta por lá, a cair uma boa parte, mas abundância há, ao
ponto de a Maria Juliana, há meses, ter dado uma queda e se quizeram fazer um
simples RX que o clinico tinha recomendado, foi só dar um saltinho à sede do
Distrito, à Guarda, a cerca de oitenta quilómetros de distância! De ambulância!
Cara radiografia!
A idade
da Maria Juliana, acima dos oitenta, justificava a ida para o Lar.É verdade
que, durante o dia, havia o Centro de Dia, de que sempre gostou, mas aos
fins-de-semana e à noite não funciona, por isso é Centro de Dia. Tudo linear.
Eu terei contribuído
também com a opinião de que fosse logo que tivesse vaga, por ser perigoso ficar
sozinha todas as noites, uma vez que os vizinhos mais próximos, a família
“Currala”, todos de idade avançada também, ficam a cerca de cinquenta metros e
dificilmente ouviriam um seu pedido de auxílio.
Em Fevereiro deste ano
de dois mil e oito, lá se mudou, de corpo só, de alma não, para Foz Côa.
Cada vez que a
contactava por telefone ia dizendo que estava bem, que o Ernesto e família a
visitavam uma ou duas vezes por mês, sempre que iam a Castelo Melhor e que o
Licínio já a tina visitado, incluído numa excursão sénior que o deixou em Foz
Côa e o autocarro seguiu com os restantes excursionistas e depois, no regresso,
foi busca-lo. O Licínio já não conduz.
Mas algo ficava sempre
no ar e que me levava a pensar que, ao contrário do que afirmava, estava a ser
difícil a adaptação, o que me agradava e preocupava; agradava-me, por revelar
da sua lucidez e o sequestro do Lar não se coadunava mesmo nada com o seu
sentido de independência e porque, como diz o ditado “galinha de campo não quer
capoeira”; e preocupação porque se ela rompesse com a situação não havia
regresso, voltando tudo ao princípio.
Havia que confirmar.
Sem demora.
O Mateus, meu único
neto, de quase dezassete anos, mostrava alguma vontade em voltar a Castelo
Melhor. Não é temperamentalmente efusivo e as suas curiosidades, fora de duas
ou três áreas de interesse, são pouco mobilizadoras.
Aproveitei para propor
uma ida à aldeia, juntando o útil ao útil, já que ao agradável seria descabido.
O calor esperado não seduzia e os esperados desabafos da “sequestrada” Maria
Juliana não ajudavam ao entusiasmo.
Num dos primeiros dias
de Julho, coincidindo com a minha folga, fizemo-nos à estrada e percorridas as
três centenas de quilómetros lá fomos parar a Foz Côa, já pronta para o “duche”
com as cigarras a “cantar” nas sombras dos troncos das árvores.
Perto de Coimbra ainda
apanhámos chuvisco, mas quanto mais avançávamos para o interior mais seco e
quente era o ar.
A Maria Juliana não
esperava visitas, ficando espantada com o nosso aparecimento e logo nos guiou
para lugar que seria mais sossegado. O esperado desabafo logo começou,
escolhendo a Lena como interlocutora e depressa fez escapulir duas idosas
“coscuvilheiras” duma forma bem branda que me espantou. A curiosidade é um bem que
não morre e bem mais apurada fica com o isolamento!
Durante o almoço, num
dos restaurantes da cidade, continuou o desabafo e pareceu-me bem mais
tranquila.
Como parte dos
assuntos versados eram por min conhecidos de outras conversas, só atentava mais
quando algo de novo ou já esquecido me soava.
Não quis ir connosco a
Castelo Melhor, alegando que não dava tempo nem tinha vontade de visitar todos
os mais próximos e os que não visitasse ainda iam ficar “enchicharados” , por
isso é melhor não ir.
Fomos os quatro e
prometemos que no regresso voltaríamos ao Lar para nos despedirmos.
V
A Lena foi
aproveitando, como quis, para fotografar o que ia achando interessante, última
actividade que a galvaniza desde há uns dois anos.
Espreitámos o edifício
onde funciona o Núcleo Paleolítico das gravuras, antigo armazém do senhor José
Madeira e por alcunha “Zé Laco”, onde meia dúzia de pessoas, portugueses e
estrangeiros, aguardavam o transporte para chegarem ao Campus, com visita
guiada.
Uns com ar
descontraído, outros com ar cansado que eu atribuí ao calor.
Mais uma vez adiei a
ida aos Prados, só ou acompanhado, mas a promessa feita é válida, aguardando
melhor dia. Mais fresco.
Já no momento do
regresso a Foz Côa, em conversa com os tais moradores que restam na Rua da
Junta, o ti Paredes e a Maria Amélia, fiquei a saber que tinham comprado a casa
do senhor Abel, pegada à deles, uma das três ou quatro mais bonitas da aldeia,
como eram a da minha tia-avó Amélia Caçote, irmã do meu ídolo avô Joaquim dos
Reis Caçote, de quem abusivamente vou usando os apelidos, Reis Caçote, para
subscrever as minhas aventuras, quer no campo da escrita, quer no das artes
plásticas, mais a pintura; a da professora D.Maria da Graça Pires Rodrigues,
junto à igreja e parece que nenhuma mais, a não ser a do meu padrinho, mas era
outro o estilo, mais apalaçado.
Disseram ainda que não
tinham comprado o lote intermédio da família da Maria Anastácia, por
divergências que existem em relação à mesma.
Mas porquê? Perguntei,
curiosíssimo.
- Porque devido aquele
problema dela e ao falecimento da irmã, tem sido difícil chegar a acordo e,
agora, tal como as coisas estão, fomos perdendo o interesse!
Mas a Maria
Anastácia!...
- Ainda é viva, está
no Lar das Chãs, onde esteve com a irmã, entretanto falecida. E está de tal
modo diferente e melhor que ninguém que a conheceu antes acreditaria se a
visse!
Esta foi a notícia
mais interessante e inesperada ou interessante por inesperada que acabava de
ouvir! Havendo a todo o momento, nesta era da comunicação instantânea, milhares
de noticias curiosas, por um ou outro motivo inesperadas, desde as mais
entusiásticas às mais desesperantes, estas bem mais frequentes que aquelas, a
da Maria Anastácia é de “primeira página”. Viva e irreconhecível no sentido de
melhoria.
As noticias são
registos quase só de eventos passados, alguns sem direito a registo e muitos
sem direito a recurso nem recuo. Logo, passam e boa viagem.
A da Maria Anastácia,
que poucos conhecem, à Maria e à noticia, é tão importante para mim, ou melhor,
é mais importante para mim do que a da morte do que do russo escritor
Soljnitsine, prémio Nobel de Literatura, ontem ocorrida.
Só para registo
histórico futuro hoje é dia quatro de Agosto do ano dois mil e oito. Que me
desculpem os seus familiares e admiradores, mas a franqueza, quando dela
podemos usar, continua a ser muito bonita.
VI
Quando nasci já a
Maria Anastácia pelas ruas de Castelo Melhor andava. Não por todas as ruas, ou
por decisão própria, o que não creio, ou por limitação familiar, mas todas as
ruas estavam disponíveis a quem quisesse e se limitações havia eram só devidas
ao mau estado do chão, só meia dúzia estava calcetada e mesmo estas em estado
de lástima por falta de manutenção.
Até para os animais
domésticos, incluindo galinhas e porcos, as ruas eram de seu uso corrente e só
o não eram na totalidade porque a aves e suínos não sobrava curiosidade e
atrevimento para aventuras de longo alcance. O que eles buscavam na sua
deambulação diária era mais para procurarem algo mais ou algo diferente para
completarem a sua dieta alimentar, nem sempre abundante e muito menos variada.
O cardápio era sempre o mesmo, alguma cevada, umas folhas de couve ou outro
legume e uma mistura de farelo com couve cortada miúda.
Os que tinham menos
liberdade eram ovinos e caprinos, muares, equídeos, asininos e bovinos. Os cães
e gatos, salvo raras excepções e atitudes menos elegantes de defesa do
território, tinha toda a liberdade que queriam e do excesso de uso dela sofriam
muitas vezes as consequências, muitas vezes provocadas pelo animal mais
evoluído: o bicho homem. Tal como hoje, por razões outras. A bestialidade é a
mesma, agora mais refinada.
Desde a idade de fixar
rostos, que não o meu, pois os espelhos em casa eram poucos e estavam altos e o
do barbeiro só se olhava uma vez por festa, pois a avença anual tinha as suas
regras e eram respeitadas.
Entre os que ficaram
registados na memória e são muitos, está bem nítido o rosto e estrutura fisionómica da Maria
Anastácia.
Da minha casa à dela
não serão mais de sessenta metros; uns trinta até à da Cândida e outros tantos
até à rua do Passadiço, sendo logo a primeira casa da direita ao virar da
esquina, em direcção à rua Larga.
Era uma casa muito
humilde, agora uma quase ruína como tantas outras, de uma família desleixada
por formação ou deformação. Azares não faltaram a esta família de cinco
pessoas.
A Maria Anastácia
sofria de doença congénita, cuja designação clinica não averiguei
propositadamente, sendo as manifestações mais visíveis o posicionamento
corporal, dobrado pela cintura, quase formando um angulo recto em que o vértice
seriam as nádegas e a cabeça, para poder ver um pouco além dos seus pés,
assumia a posição da tartaruga ou cágado, opção por este ser mais conhecido que
aquela; um fio de baba escorria sem cessar para o queixo, estando este
permanentemente ferido, sobretudo nos gélidos invernos, chegando mesmo a
gretar.
Vestia sempre uma
blusa acinzentada, por vezes quase sem cor, pelo uso e lavagem frequentes e uma
saia quase da mesma cor, comprida quase até aos pós se fosse vista na posição
erecta, por isso a frente ia arrastando pelo chão, seco ou enlameado, conforme
o tempo, empapada quando o tempo era de chuva.
Nunca falava e só
muito raramente emitia sons indefinidos, mas que a família devia saber
interpretar. Eram mais audíveis quando a mãe ou alguém a contrariava.
A casa da família era
como muitas outras da aldeia: um piso térreo destinado aos animais de trabalho
e arrumação dos materiais de trabalho na agricultura e um piso acima para os
humanos, bem pouco dignas as condições de habitação e também pouco humanos os
humanos nalguns casos.
O acesso ao piso
superior era feito por uma escada, apoiada de lado na parede e por baixo,
formando um polígono trapézio rectângulo sendo em lajes de xisto o telhado do
polígono e também cada um dos degraus da escada. Era por aquele espaço que se
acedia à habitação e por debaixo das lajes do balcão eram a habitação nocturna
de galinhas e nalguns casos como o de minha casa, era também pocilga. Os
animais de trabalho de campo e o de todo o serviço, o burro, tinham uma entrada
própria, isto na minha casa.
No caso da Maria
Anastácia a laje cobria a entrada para o estábulo. Neste espaço era
frequentemente aprisionada a Maria de que tenho vindo a falar, ou quando os
pais tinham que deslocar-se para mais longe ou nos ataques de fúria mais
violentos.
Nunca soube que idade
teria e sempre me pareceu ter a mesma idade desde que vi até deixar de a ver,
devido às minhas mudanças e permanência bem longe de Castelo Melhor. Só por uma
dúzia de vezes, nem tanto, voltei e em algumas nem terei visto a Maria
Anastácia! Mas sempre me pareceu igual, sem mudanças.
A vertigem da vida iniciou-se
com a ida para a tropa, Angola, depois o casamento, estive quase uma década sem
ir a Castelo Melhor e quando lá estive não me recorda de a ter visto ou por ela
ter perguntado.
As famílias tinham
sofrido alterações profundas: o êxodo da emigração por um lado, a migração que
sempre houve um pouco e se acentuou também e a definitiva despedida de muitos,
pulverizaram as famílias quase todas; até as de mais posses, igualmente
envelhecidas, se não engrossaram o caudal da migração e da emigração, foram assistindo
à partida dos mais novos em busca de outros horizontes e eles, mais velhos, por
ali foram ficando à espera da chamada do além e alguns desejando que ela
viesse.
Todos os elementos da
nossa família, excepto inicialmente a Maria Juliana e a tia Amélia, minhas irmã
e Mãe, partiram para bem longe, uns a trabalhar nas indústrias do único
industrial da freguesia e outros para o Porto e Lisboa, em diferentes afazeres,
mas deixando para trás a terra e o seu Castelo, mesmo que do Melhor se
tratasse.
O que não faltam são
castelos por esse mundo fora! De pedra muitos e de ilusões a maioria deles.
A Maria Juliana, minha
única irmã, só mais tarde se aventurou para terras de França, onde já estavam
filha e genro e filho e nora e netos também.
Não foi uma emigrante
como os outros, foi mais para ajudar os que já lá estavam; e terá ajudado
bastante, mas todos sabemos que nem sempre a utilidade do que cada um vai
fazendo é em tempo útil reconhecido. Vá lá! Como ela costuma rematar as
conversas que já não são.
A emigração, nos
primórdios da década de sessenta do passado século era só para homens, o
trabalho era pouco recomendado a mulheres e a viagem ainda o era menos.
Assim, ela, Maria
Juliana foi ficando, viúva desde quase se casou e assim ficou até agora, pelo
menos sessenta anos passados, ou quase.
Fazia companhia à
nossa Mãe, viúva também desde o último mês de mil novecentos e sessenta e três,
treze dias antes do meu casamento e dois meses após ter regressado de
Angola. Do que eu queria falar mesmo
era da Maria Anastácia, mas as conversas, diz-se, são como comer cerejas, e
descambei para assuntos que, sendo pertinentes, não estão directamente ligados
à que devia protagonizar este registo. Na verdade o que sei da Maria Anastácia
é muito pouco, o que seria a sua biografia só mesmo entrevistando quem já não
dá entrevistas há muitos anos. Vá lá!
VII
As condições de vida
da Maria Anastácia eram tão más e tão infausta a vida da família – o pai
alcoolizado e o irmão com perturbações mentais, ajudante espontâneo de moleiro
de azenha, no Rio Douro, onde veio a encontrar a morte, por afogamento, depois
de se desequilibrar com um saco de trigo às costas e caindo no ponto onde a
corrente logo o arrastou e depositou num fundão que havia junto ao túnel, a
jusante da estação de comboios, vindo a aparecer, devolvido pelo rio, uns dias
depois.
O destino dele foi
sempre esse: a devolução.
Depois de tantos anos
passados sem ouvir falar daquela família, pensei que o mais natural morrido
também as duas irmãs que restavam, sumindo-se no tempo a semente da família do
ti Zé Manel.
A inesperada notícia
de que estava viva, não sei explicar o porquê, trouxe-me recordações muito
nítidas daquele percurso; e o facto de me dizerem que a Anastácia continuava a
viver e sua condição melhorou, a ponto de se manifestar com palmas quando algo
lhe agradava, o meu sentimento de culpa pelo olvido, ficou um pouco mais
atenuado.
A Maria Anastácia não
batia palmas, eram os punhos e as mãos meio abertas, pareciam alheias à
representação, assim como duas folhas que desconhecem a sua utilidade.
Era bem mais o que
gostaria de escrever sobre esta minha conterrânea sem idade e também sem
ilusões ou sonhos, mas inventar não faz parte deste tipo de escrita, nem do meu
objectivo inicial e que era de penitenciar-me de tão profundo alheamento da
recordação viva que ficou.
Fica só a ténue
promessa de ir um dia visitá-la ou então, como costumo fazer a todos os que,
duma forma ou doutra, fazem parte do meu itinerário mental e emocional,
preferir ficar com a recordação da imagem que marcas deixou.
Seja qual for a
decisão final, desejo-te, Maria Anastácia, para o tempo de vida que terás, uma
maior qualidade desta vida, estejas onde estiveres.
E de alguma felicidade
se a tua sensibilidade a compreender, mesmo que poucos ou nenhuns saibam,
exactamente o que é felicidade. Eu incluído!
Um pouco como
corolário: o ti Zé Manel, pai da Anastácia, foi quem despoletou a confusão que
esteve na origem da expulsão e apedrejamento do Senhor Bispo a primeira e única
vez que um Prelado visitou o rebanho de Castelo Melhor!
Reis Caçote
Jul/2015
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A CASA DA MARIA ANASTACIA NÃO ESTÁ VISIVEL |
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O BRASÃO DA ALDEIA, DA MARIA ANASTACIA E MINHA TAMBÉM! |
![]() |
A IGREJA PAROQUIAL DE CASTELO MELHOR |
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018
domingo, 11 de fevereiro de 2018
A ROSINHA
A PROTAGONISTA DESTE TEXTO ESTEVE NA ORIGEM DA DECISÃO DE REGISTAR AS RECORDAÇÕES, BOAS OU NEM TANTO, EM JEITO DE BIOGRAFIA!
A ROSINHA ERA UMA PEQUENA YORKSHIER, DE UMA COMOVENTE FORMA DE ME SAUDAR! FICOU ASSIM REGISTADA:
A ROSINHA
I
Há
alguns anos, pelo menos três, que eu não via a Rosinha! Não por morar longe
dela agora, ou por dela me ter esquecido! Amuado ou de relações cortadas, muito
menos!
Quando
mudei de residência, em Fevereiro de dois mil e quatro, da rua Latino Coelho
para o largo Cândido dos Reis, andava ela, a Rosinha, enamorada não direi, mas
de facto interessada, o mais certo será dizer preocupada, com o Elvis. Este
devia estar a atravessar a sua fase de afirmação ou delimitação de espaço, ou
território para ser mais específico, ou certamente ambas em simultâneo; o certo
é que me recebia, o Elvis, duma forma pouco “elegante”, usando um tom de voz
que, não sendo agressiva, era no mínimo de irritação!
Estava
no seu direito. Não me conhecia muito bem e a irritação que mostrava devia ser,
penso eu, devida à forma delicada, alegre, eufórica mesmo, como a Rosinha
sempre me recebia! E como ele não estaria de acordo, talvez por a achar
excessiva, isto sou eu a pensar por ele, adotava esse comportamento que se
assemelhava muito a uma boa dose de ciúmes!
Ela,
Rosinha, a seu tempo, esclareceria o Elvis, se achasse necessário, de que ele
não tinha razão para tal comportamento, como se o amigo dela, eu, pudesse ser
de algum modo um hipotético concorrente dele!
Se
o fez e o terá ou não convencido, confesso que nunca o cheguei a saber, mas o
que posso afiançar é que, esta ausência de quase três anos, nada teve a ver,
nem com o comportamento do Elvis, muito menos com medo de alguma reação
violenta por parte dele. Não é fácil explicar, coerentemente, determinadas
atitudes de menos consideração em relação àqueles que temos como amigos,
caindo-se quase sempre na “esfarrapada” desculpa “as amizades são mesmo assim,
feitas de encontros e de ausências”, ou então, como terá dito alguém de que
nunca soube o nome “os amigos são como estrelas, muitas vezes não as vemos, mas
sabemos que estão lá…” (citado de memória).
É
verdade que, neste espaço de três anos, passei lá, na rua Miguel Bombarda,
algumas vezes, umas a loja estava fechada e de outras a loja estava aberta, mas
nem Rosinha nem Elvis estavam, tinham ido dar um passeio.
E,
assim, frouxamente, fica explicada, mal explicada devo acrescentar, esta minha
falta de consideração com esta amiga, de todas a mais franca, frágil e delicada
e da mais expansiva demonstração de amizade! Merecia e merece bem mais esta
amiga e por isso terei que fazer a auto critica que se impõe: não sou melhor do
que a maioria e pior também.
Sei
que estou perdoado, como sempre estive convencido todo este decorrido tempo! E
confesso que me sinto bem, tranquilo mesmo e sem os atavismos inibidores da
manutenção da nossa amizade! Assim tivesse tal tranquilidade em relação a
outras amizades, às quais tenho dado mais atenção e que a Rosinha me fez
perceber, mesmo sem nada dizer.
E
por que penso, melhor, por que sei que é assim? O último encontro foi por
demais elucidativo, tal foi a manifestação de alegria, comovendo-me até às
lágrimas!
Eu
devia ser capaz de corresponder a tão exuberante e franca manifestação de
alegria, mas a minha timidez veio ao de cima enão fui capaz de participar por
inteiro na “festa”.
Terei
que me penitenciar, mas sem a Rosinha saber.
II
A
cidade, como tantas outras, tinha, em adiantado estado de degradação e em
alguns casos mesmo em ruína, uma boa parte do agora chamado “centro histórico”;
era pequeno, como pequena era a cidade.
Aproveitando os fundos da União Europeia, a partir da
adesão em oitenta e seis, nomeadamente aquele que dispunha de uma linha de
financiamento destinada à recuperação de edifícios degradados, a autarquia
ter-se-á candidatado e terá visto aprovados diversos projetos que foram sendo
executados, mal ou bem, outros estão em curso e alguns irão ficando piores do
que estavam, pois todos os anos, implacavelmente, se vai agravando o seu frágil
equilíbrio e a ruína será inevitável.
Depois
da primeira experiência de alguns anos na área de hotelaria, tão acidental como
todas as anteriores ensaiadas, e foram várias ao longo de uma vida, sempre com
total abertura e curiosidade a novos saberes, uma segunda fase foi encetada e
isso implicava ter que procurar um espaço para morar, mais próximo do novo
local de trabalho. Assim vi a porta aberta à possibilidade de materializar uma
antiga e inexplicável vontade de um dia morar na zona antiga da cidade; este
quase desejo se acentuou desde que à cidade regressei, após a rotura com a
empresa onde trabalhei quase duas décadas e meia.
A
ideia era mais antiga, vinha dos tempos da adolescência e era Alfama que no
início da década de cinquenta me seduzia, mesmo que mal tinha chegado a Lisboa
tenha sido Campo de Ourique a dar-me guarida e na parte final Campolide,
confinante com a zona “fina” da parte alta da capital, a quem dediquei algumas
páginas no espaço que achei apropriado!
E,
assim, comecei a procurar os espaços para alugar. Havia bastantes, mas vi
poucos. O espaço para habitar, por qualquer razão não muito clara, logo difícil
de explicar, tem tido sempre um caracter provisório, não tendo que obedecer a
padrões que a maioria normalmente exige ou ambiciona, sem áreas inúteis, acima
de tudo funcional, onde caibam os bens necessários a um quotidiano, sem
esbanjamento de espaço supérfluo, que só acaba por dar trabalho, nomeadamente
limpar.
Agradou-me,
à primeira vista, um espaço na Rua Latino Coelho, pela localização e,
sobretudo, pela assimetria do aproveitamento da área e menos do que a tal
funcionalidade.
Não
esperava que a decisão tomada e que durou cerca de dois anos, pudesse vir a
estar na origem de uma série de acontecimentos, uns mais marcantes que outros,
mas todos com uma carga emotiva bastante, para justificarem a sua inclusão no
que de positivo tem o percurso de vida.
III
O
espaço da referida Latino Coelho, era distribuído por três planos de um
edifício antigo que já conhecia há anos: por ser local de exposição e venda do
negócio de materiais em palha e verga da proprietária, que era conhecida por
cesteira devido ao produto que foi em tempos o principal; cestos para a
vindima, para transporte dos produtos adquiridos no mercado, enfim, uma
variedade de modelos e aplicações. Mas também porque no prédio ao lado moraram
duas amigas, que depois foram habitar num outro apartamento, numa das
freguesias da periferia, mas por qualquer motivo a utilização do espaço comum
não deu certa e uma delas voltou ao anterior apartamento da Latino Coelho. Este
edifício de que tenho estado a falar fazia parte da mesma herança e, na
partilha, coube ao filho da cabeça de casal, a viúva, senhora na casa dos
setenta anos. O filho, engenheiro, morava com a família no Estoril, pessoa de
que me não recordo de alguma vez ter visto.
O
edifício onde morei tinha e tem um rés-do-chão, com um espaço de geometria
irregular, inclinado para o lado da rua, formando um pequeno pátio onde o
artesanato das vergas era exposto.
O
acesso ao primeiro andar era feito por uma escadaria ao ar livre, mais larga no
inicio e estreitando conforme se aproximava, em meia espiral, da entrada para o
primeiro andar, formando um pequeno varandim, para o qual dão a porta de
entrada e uma janela.
Aquilo
que foi antes a casa de habitação familiar, foi transformado em três espaços
distintos, numa ânsia desmedida de rentabilizar até ao limite, o que foi uma
única habitação, já não habitada pelos herdeiros; assim foi dividido um espaço
que seria modesto, mas funcionando para uma família, em três que passaram a ser
diminutos e nada cómodos, nem sequer sendo equacionada a mudança do quadro
eléctrico para a fórmula do aumento da ocupação e consumo de energia. Esta
falta de respeito por quem tinha que utilizar os cubículos tinha como
consequência a falta de energia pelos cortes constantes devido à potência
instalada não ter sido alterada porque se o fosse a taxa a pagar seria maior.
A
prática seguida pela senhoria, negociante de feiras e mercados, ambos em
decadência, não foi a seguida pelo outro herdeiro, engenheiro, que não podia
dar como desculpa desconhecer a parte legal.
Mas
isto são assuntos de “lana-caprina”, que nada acrescentam ao que me propus
tratar e apenas servem para perder tempo em vez de avançar para aquele que foi
o meu recanto de habitação durante mais de dois anos.
Era
o do lado direito, composto por um corredor que era também cozinha, por isso
tinha uma grande lareira e boca de chaminé a condizer, entretanto transformada
de modo a suportar o fogão a gás. Tinha um frigorifico, uma mesa de cozinha em
fórmica e pernas tubulares, assim como os bancos, um móvel-prateleira e por
cima, pendurado na parede, um móvel a que vamos chamar de cristaleira, mas que
era mais prateleira se tivermos em conta que no móvel debaixo era para guardar
os apetrechos para cozinhar: os tachos e panelas e outros e no de cima era dos
pratos; esta devia ser a função, mas pouco servia por quase nada ter dentro!
Tinha também uma máquina de lavar, mas que mal tentei servir-me concluí que era
só máquina porque lavar não lavava.
Para
abreviar, vamos arranjar um atalho, com base na máquina de não lavar.
Como
o País tinha obras em curso de todos os tipos para “aproveitar” os fundos da
CEE, ainda era o tempo das vacas, gordas foram só para alguns, mas os
emigrantes, sobretudo Ucranianos e alguns Russos, chegaram em catadupa e iam
ocupando os espaços habitacionais disponíveis nas periferias das cidades e
usados nos trabalhos que mais mão de obra pediam: a construção civil. E assim
foram sendo, criados espaços para alojar tanta gente nova!
A
minha senhoria estava atenta a esta situação e talvez por isso me terá proposto
o aluguer de um quarto na casa que ela habitava, proposta que recusei
liminarmente e só depois alvitrou a de que tenho vindo a falar.
A
sua má vontade contra mim vem desde essa recusa e o ter retirado a máquina de
lavar quase nova que tinha visto quando visitei com ela o espaço, colocando
outra em seu lugar era retaliação; mas foi isso mesmo que me fez ficar mais
tempo, nem sequer exigindo o recibo da renda.
No
corredor-cozinha havia uma dispensa que, para gastar o menos possível, o
“inventor” do novo espaço meteu o chão, de mosaicos em plástico sobre um
estrado por cima do que existia antes, colocando a dispensa cerca de dez
centímetros abaixo do nível do chão do corredor!
A
seguir à dispensa havia uma escadaria em madeira, a fingir de Torre de Pisa,
mas em madeira, ameaçando ruir para dentro da dispensa, uma obra de carpintaria
que faria inveja aos mais ousados engenheiros! Dava acesso, a escada ao mais
genial espaço que era o senhorial quarto que eu ia ocupar, nascido daquilo que
fora um varandim como na época de nascimento do edifício se usava. O chão, em
madeira forro que, certamente por engano do fornecedor, chegou antes da de
solho e como não havia tempo a perder, nem faziam conta de ali dormirem, quer a
senhoria, quer o técnico, há que aplicar no chão madeira que era de forro.
Foi
a coisa mais perfeita que alguém terá criado, nem o Criador Universal teria tal
inspiração, porque ficou um pavimento musical, não era perfeito o conjunto, as
notas eram de invenção recente, soavam a portas a ranger na noite, dos filmes
de suspense!
As
paredes, nunca cheguei a perceber de que materiais eram feitas e nem tentei
averiguar por recear que se mexesse podia estragar! Encostava-me, melhor,
encostei-me a uma delas sem querer e tudo aquilo rangeu e deslocou.
No
cantinho, em frente da porta de entrada no senhorial aposento, foi construída a
casa de banho onde nada sobrava, nem mesmo espaço! Couberam lá um pequenino
lavatório, uma sanita e um poliban de requintado gosto e com vista para a
cidade uma diminuta janela, estilo moderno, em caixilho de liga de alumínio,
vidro martelado ou granitado, de correr. Quando se queria abrir ficava só
metade onde só cabia o tronco, mas de lado. Dava para o telhado do edifício e
por cima dele via-se uma paisagem de encantar sobre a cidade, os telhados de
dois ou três edifícios e lá muito mais longe os da encosta por detrás do hotel
Lis onde trabalhei cinco anos.
Em
frente à porta do quarto com vista panorâmica, foi construída uma escada, esta
sim em material de construção, para aceder ao terraço que era o estendal
também, mas no apalavrado contrato era usado também pela proprietária quando
precisasse secar roupa. Deste espaço, que era a cobertura do meu quarto e
escada, se tinha uma vista para o lado da cidade com alguma e durante o
primeiro ano e meio, subindo dois degraus para chegar a um pequeno varandim,
avistava-se o castelo, a sua face mais elegante com sua arcada que era a da
alcáçova!
Durante
ano e meio vivi com a esperança de um dia ser surpreendido pelo estrondo da
derrocada provocada pelo deslizamento de um enorme penedo de material calcário,
polido pelos anos, que faz parte do monte no alto do qual o castelo foi
erguido, mais de metade emergindo do solo! Se o bloco um dia se deslocasse
galgaria tudo o que tivesse pela frente e só pararia ao meu colo se não pesasse
várias toneladas. Não me surpreendeu e fiquei sem essa esperança, mesmo que
seja a última a morrer, quando começou uma obra no prédio que vivia encostado
ao onde eu morava e com entrada pela rua que dá acesso ao terreiro, hoje Largo
Cândido dos Reis, acrescentando um andar sobre os que tina, que eram
rés-do-chão e primeiro andar!
O
dono da obra que raramente via, já com a obra acabada no que de paredes se
tratava, apareceu, talvez para ver o resultado do já feito, quando eu estava a
ver a cidade e a ausência do castelo e lhe dei conta da minha bizarra esperança
de aparar o enorme bloco em vertigem descomandada, em busca de estabilidade!
Do
sério que ficou inicialmente, mal se apercebeu que a minha seriedade era
nenhuma, desfez-se em simpatia: “ desculpe lá, mas não foi com má vontade
contra o meu vizinho, nem sequer pensei nisso, mas se tanto representa para si
a vista do castelo e sobretudo o poder abraçar um tão antigo pedregulho, eu
mando deitar abaixo o raio das paredes!”
Ficámos
de bem os dois quando eu lhe disse que talvez até passasse a dormir melhor,
perdida que foi a esperança fico com outra, a da segurança! E assim continuou a
obra, bem interessante quando acabou, com uma janela rasgada acima do muro do
estendal, coisa com a minha senhoria não concordou, por achar que aquelas
janelas não podiam ficar, mas dali lavei minhas mãos e pensei: entendam-se, eu
já cedi a minha esperança em troca de mais segurança.
O
estendal que era de uso comum de dois (não o gramatical comum aos dois géneros,
como por exemplo “rouxinol” porque nunca acharam bem que houvesse” rouxinola”)
mas sim comum no uso pelos dois, começou a ser usado, sem minha consulta, por
uma amiga da senhoria, sendo uma pessoa a passar pela minha cozinha e invejar a
minha luxuosa e bem acabada moradia! Como não gosto de ostentar a minha
razoável fortuna, comecei a pensar que teria de mudar para local onde desse
menos nas vistas.
E
assim terminou a minha experiência da Rua Latino Coelho.
IV
Durante
este atribulado período, correspondendo ao “segundo andamento” da sinfonia sem
fôlego que foi e está sendo o ensaio na hotelaria, onde algumas novas amizades
surgiram e outras, naturalmente, foram interrompidas por falta de contacto. O
normal, ao que sei, na rotina da vida de muitas pessoas; de todas as pessoas,
ditas normais, na minha não, normal também, porque raramente fica como está, à
minha passagem, o quotidiano que me cerca. Não por deliberada intenção, mas os
eventos sucedem e sucedem-se, algumas vezes a ritmos alucinantes, sem que tenha
feito uma antecipada preparação e por isso se tornam caóticos, por vezes quase
incontroláveis.
Entre
as amizades surgidas, uma merece destaque: a da Rosinha!
Da
minha casa à dela não seriam mais de cinquenta metros a distância. Por lá tinha
que passar, por ser o mais pequeno percurso para chegar à Praça onde
habitualmente tomava café, por vezes lia o jornal e cavaqueava com alguns
conhecidos, ávidos de novidades de última hora.
Inadvertidamente
ganhei o hábito de trazer na mão, normalmente na direita, o porta-chaves que,
por ser metálico, como o eram as chaves, me deve transmitir, sem que de tal me
aperceba, alguma sensação agradável e relaxante, sofrendo, sem que o saiba, de
alguma psicose não muito clara, tal como alguns oradores sofrem, quando em
público não sabem o que fazer das mãos, fazendo figuras que chegam a enervar
mesmo aqueles que os querem ouvir. Esta é uma daquelas explicações que nada
explica, mas também já se tornou um hábito quando não encontro maneira de,
racionalmente, explicar os meus defeitos.
Não
será bem isto que sinto com as chaves. É mais a presença de algo que,
sobretudo, me faz companhia; tal como uns óculos de sol, uma pastilha elástica
ou um cigarro, hábito este que já não tenho e a pastilha nunca fez parte deles.
Isto
para abordar uma das facetas do comportamento da Rosinha, que devia possuir um
apuradíssimo sentido auditivo, a ponto de se aperceber da minha aproximação,
mal eu dobrava a esquina da rua Miguel Bombarda, deixando para trás a Praça
Rodrigues Lobo.
Mal
me via ao fundo da rua disparava a correr ao meu encontro e numa comovedora
manifestação de alegria, que começou a despertar a curiosidade e alguns
comentários da vizinhança:
-
Isso é que vai aí uma paixoneta! Comentava uma das vizinhas dela.
Mas
o que tinham era inveja, disso não tenho dúvida, pois todos sabiam que eu lhe
não oferecia mais do que retribuir aquela amizade, sempre menos exuberante do
que aquela que a Rosinha me prodigalizava.
A
rua Miguel Bombarda estava condicionada ao trânsito, apenas funcionava para
cargas e descargas e o trânsito era num só sentido e poucas eram. Dos
estabelecimentos a funcionar, excepto o talho, o seu movimento comercial era
pequeno, por terem clientela de hábitos seleccionados três deles e dois outros
de antiguidades e uma pequena galeria de arte. Mesmo assim comecei a temer pela
segurança da Rosinha quando corria ao meu encontro, já que podia surgir algum
obstáculo que provocasse um acidente.
E
a minha preocupação tinha razão de ser, pois um dia em que estava ao colo da
Teresa, saltou sem o menor cuidado e deve ter-se magoado, pois se manifestou
com a dor sentida, mas tal não impediu de correr ao meu encontro, saltando e
rebolando-se no chão, na sua habitual e comovente manifestação de alegria.
A
Rosinha, agora para os que a não conhecem, é pequenina, de pêlo castanho-escuro
na parte de cima e mais claro nas pernas e barriga e tem uma franja que lhe
cobre os olhos: é uma Yorkshire terrier com pouco mais de dois quilos de peso e
os donos (não gosto mesmo nada do termo donos) têm uma loja, quase só de
adornos, que alguns grupos de jovens usam, à base de metais e algumas peças de
roupa entre o roxo, o vermelho e o preto, e que se designam por góticos,
metálicos, punks, isto se não erro muito e que têm uma componente musical
distinta a cada um dos grupos.
Um
desses estabelecimentos era residência da Rosinha, apenas durante o dia, à
noite recolhia a casa que os donos habitavam e que nunca soube onde era, nem
perguntei! A Rosinha era parte integrante daquele espaço e ali era a minha
amiga que eu tanto admirava e estimava!
V
Aquele
aparatoso acidente atrás referido, saltando do colo da Teresa e se queixou,
provocou em mim uma sucessão de saltos mentais, no tempo e no espaço, que me
levaram até ao ano de sessenta e um do seculo vinte, a Luanda e outros que se
seguiram, assim como me trouxe recordações de situações em que nunca mais pensara
por não terem um fio condutor que as ligasse e que, uma vez feita a ligação,
mereceram registo escrito, na correspondência que então mantinha com Berlin.
VI
Os
compromissos que a vida nos vai rigorosamente impondo, raramente deixam o tempo
indispensável e atento para que, de cada passo dado, ou apenas esboçado,
façamos um registo de memorização. Mas não se perde tudo; a imagem apaga-se
quase sempre, mas não é raro ficar o negativo ou esboço mínimo que, uma vez
estimulado por um reagente, regressa a imagem quase tão nítida como a original.
O
salto-queda da Rosinha e a minha natural preocupação, trouxeram-me de imediato
a recordação de uma outra situação, ocorrida com uma criança de dois ou três
anos, filha mais velha de um casal amigo, onde íamos ver televisão, logo após o
casamento; só um ano ou dois passados é que comprámos essa ainda novidade.
A
casa dos amigos ficava ameio caminho entre a casa habitada quando casámos e a
da minha sogra, onde fazíamos as principais refeições nos primeiros meses que
se seguiram ao casamento.
Daquele
que foi o meu local de trabalho, durante seis anos, o trajecto mais curto de e
para casa de minha sogra, impunha a passagem à porta da nossa residência e
também à porta da casa do casal amigo.
Não
me recordo de alguma vez ter levado qualquer guloseima que pudesse ter estado,
mesmo que em parte, na origem da afeição que a pequenita me dedicou. Apenas
brincava com ela e raramente com o irmão, ainda bebé, recolhido quase sempre no
seu berço-cama.
O
certo é que, a partir de dado momento, a pequenita, mesmo quando me via ao
longe, se manifestava de forma pouco comum, exuberante, rebolando-se pelo chão,
tendo mesmo, uma das vezes, ficado com escoriações na face e num dos braços!
Esta atitude da menina começou a fazer parte das minhas preocupações,
certificando-me se ela estava à vista e quando estava desviava o percurso de
forma a não me ver.
Contei
estas situações aos pais e eles, brincando, diziam que tinha ali uma complicada
paixão! Riam!
Com
o nascimento da nossa filha mudámos de casa. A pequenita cresceu e a “paixão”
foi esmorecendo.
Os
pais separaram-se mais tarde, tal como o casal por mim formado. Durante vários
anos não vi a então pequenita que continuou a crescer e se foi tornando numa
adolescente encantadora e depois uma senhora, casou como a maioria faz, bem ou
mal, não é o que está em apreço agora, mas se divertia, quando nos
encontrávamos, dizendo a brincar, que eu fui o seu primeiro amor!
VII
Cheguei
a Luanda, em comissão de serviço obrigatório, nos primeiros dias de Julho de
mil novecentos e sessenta e um, juntando-me a milhares de outros que, desde
Março ou Abril, cumprindo a ordem do “depressa e em força para Angola” que um
louco, mais um que a história regista e que o cidadão não repudia definitivamente;
todos sabiam e o louco também, que desde há muito havia sublevações em vários
pontos da colónia, desorganizados ainda, mas muitos morrendo; como tinham
prendido alguns dos líderes devem ter admitido que a organização dos povos
demoraria e a rebelião de Fevereiro deve ter apanhado de surpresa alguns, mas
todos sabiam que um povo colonizado há quase cinco séculos um dia acabaria por
rebelar-se! Portugal era o único dos Países colonizadores que insistia, através
da demente ideia de manter um Portugal único e indivisível do Minho a Timor.
Juntei-me
aos que já lá estavam e eram muitos, mas muitos milhares foram chegando, por ar
e por mar, sobretudo por mar e este vaivém durou catorze anos consecutivos.
Muitos
voltaram, alguns deles com marcas físicas e/ou psíquicas, outros nem sequer
voltaram, perdidos para sempre na bruma matinal das florestas e na noite escura
das cabeças que em Portugal pensavam e das que lá cumpriam as ordens.
Não
tardou que Moçambique e depois Guiné, um pouco por todos os continentes onde o
império insistia em contrariar as leis naturais, dizendo-se “orgulhosamente só”
naquela voz beata que era a sua, cada vez que mais um País ia cortando relações
diplomáticas com Portugal ao não cumprir as decisões das Nações Unidas.
O
exemplo recente da Argélia, colonizada pela França e que após anos de batalhas,
o colonizador teve que reconhecer que não podia continuar uma guerra injusta e
que a nada conduzia.
Salvo
uma ou outra pequena escaramuça na periferia, quase sempre devida ao excesso de
álcool e que a polícia aproveitava para descarregar seus rancores racistas,
Luanda era um espaço sem violência física. Muitos dos seus habitantes, temendo
não sei bem o quê, mas eles sabiam e não serei eu a julga-los, podia dizer-se
que Luanda estava quase deserta. Abandonaram a cidade e alguns bens, as casas,
os carros, eram os que mais davam nas vistas.
Para
mim tudo era novidade e que bela novidade! O espaço físico, o ambiente, a
temperatura, mesmo tendo chegado em plena época do cacimbo, assim designado o
período de Junho a Setembro, mais fresco e sem chuva, só densos mantos de
neblina, o tal cacimbo, predominavam.
As
vivendas, desabitadas, eram parte de uma quase global oferta imobiliária, que
não era aproveitada por qualquer militar, sobretudo solteiros e desenraizados
como eu e tantos outros, sempre sob a ameaça de na próxima semana avançarmos
para a Zona de Intervenção, da qual Luanda já fazia parte e todo o território a
norte da capital.
Enquanto
se ia e não ia para a tal Zona de Intervenção, eufemismo usado para designar
áreas de conflito aberto e perigoso, como seria fácil de concluir pela chegada
frequente de helicópteros ao Hospital Militar de Luanda, transportando macas
até no exterior dos gafanhotos, aforismo usado para os designar.
Dizia
que naquele vai-não-vai, o melhor era procurar solução para nos irmos
instalando, sobretudo a partir da primeira semana, quando o Pelotão de Comando
e Serviços do qual eu fazia parte, foi instalado nas instalações do
aquartelamento do Grupo de Artilharia de Campanha de Luanda (GACL).
Os
três furriéis, todos milicianos, Figueiredo, Magalhães e eu, encontrámos
dormida, pensão e tratamento de roupa no bairro da Maianga, cerca de duzentos
metros abaixo da entrada do GACL, onde o bairro de Alvalade, então quase só
dunas e um ou dois prédios em que a obra foi interrompida, terminava no Rio
Seco, nome dado a uma vala construída e que tinha a única função de drenar as
águas das chuvas que desciam, por vezes em catadupa, as dunas do Alvalade e da
Maianga, este mais plano e quase todo urbanizado e alcatroado.
Os
pensionistas eram um casal de Tomar, com dois filhos pequenos, que habitavam
uma moradia de dois pisos, próxima do chamado Rio Seco e já na “margem direita”
deste e da estação dos correios.
O
espaço que nos foi destinado e que antes seria a sala principal, tinha três
camas individuais.
Mais
ou menos dois meses passados o Figueiredo saiu e foi morar no espaço onde
estava instalado o alferes Afonso, chefe da Contabilidade do Pelotão, das três
baterias de artilharia que faziam parte do Comando e de um esquadrão de
cavalaria e outras unidades, com quem o Figueiredo trabalhava directamente e
também um primeiro-cabo. Tratavam ainda do envio para Portugal dos fundos das
pensões que a maior parte tinha fixado.
O
Magalhães e um primeiro-cabo estavam ligados à Tesouraria e gestão de armazéns
diversos e o chefe era o tenente Neta. O único que não dependia directamente de
alguém era eu, por isso tinha a categoria de (deixem-me encher o peito de ar e
bater uma pala com todos os matadores), comandante da secção de reabastecimento
de munições, dependendo de mim seis motoristas.
O
único que era da arma de artilharia era eu e o Comandante do Grupo, o major
Cunha Rodrigues; todos os outros eram do Serviço de Amanuenses.
Com
a saída do Figueiredo a cama disponível passou a ser usada por militares que
vinham chegando, normalmente para substituir colegas que, ou tinham ferimentos
de modo a não voltarem às zonas de combate ou tivessem mesmo morrido, ficando
em Luanda a aguardar condições para chegarem à unidade. Só mais tarde se
juntou, em permanência, o furriel Pinto, amanuense também e do mesmo curso que
o Magalhães e Figueiredo, mudando connosco, mais tarde, para o cogumelo da
Primeiro de Maio.
Feita
a minha grande guerra em Setembro, entre Luanda e a Pedra Verde e o meu
primeiro e último abastecimento de munições no dia primeiro de Dezembro, o que
foi, em mil seiscentos e quarenta, da Restauração da Independência da Pátria do
grande império colonial, era altura de olhar para o tempo de Natal e apreciar
como seria no hemisfério Sul, com calor em vez de frio, com uma companhia
diferente de todos os outros anos e sem neve, nem inventada!
Quase
no início também apareceu na Maianga e se instalou em casa da dona Rosa um
segundo sargento baixote, moreno, na casa dos quarenta anos, natural do
Algarve.
Sem
grande dificuldade alugara uma das muitas vivendas mobiladas que os jornais
anunciavam diariamente, para instalar a família que chegou cerca de uma semana
antes do Natal. A esposa e duas filhas, uma com a idade de dezoito anos e a
outra com dezasseis e que provisoriamente se instalaram com o sargento num dos
quartos que a hospedeira dona Rosa deve ter preparado como foi capaz,
transitando ela e família para o rés- do-chão. Aguardavam a chegada dos bens do
casal que vinham num outro navio que chegou logo de seguida.
Almoçávamos
e jantávamos juntos e nunca saíam à noite, por não conhecerem a cidade,
limitando-se a um passeio pelos arredores da Maianga.
Quando
os bens da família chegaram, eu e o Magalhães ajudámos na arrumação dos
caixotes e malas.
E
adeus, nosso primeiro e família, passem bem e um bom Natal por terras de
África, desejei-lhes eu um pouco a sério e mais a brincar e eles, um pouco mais
sérios se despediram, retribuíram os votos de bom Natal para nós e pareceu-me
ter visto lágrimas nos olhos da filha mais nova.
Para
a véspera de Natal eu fui “cravado”, por um dos furriéis natural de Luanda,
filho duma família que não se escapuliu para Portugal ou um dos Países
fronteiriços como tantos fizeram, para lhe fazer o serviço de piquete para que
estava escalado. Aceitei, por achar que a mim nada perturbava por estar longe
da família e ele sempre podia aproveitar para fazer a consoada com a sua
família.
O
render da parada era às treze horas e durava vinte e quatro horas. Lá estive,
como tinha assumido, uniformizado e pronto a fazer de duas em duas horas, uma
ronda pela periferia interior do quartel. Tinha combinado com o Magalhães que,
se quisesse, depois do jantar, aparecer no quartel, sempre beberíamos uma Cuca
ou outra coisa, não muita porque eu estava de serviço.
Ainda
não seriam dezoito horas quando pelos altifalantes chamaram o furriel Monteiro
para atender uma chamada. Fiquei espantado quando do outro lado da linha, a
dona Rosa me informava que a filha mais nova do sargento, que dois dias antes
se mudara para a nova residência, estava lá em casa e decidida a passar o Natal
comigo!
Só
me faltava esta, oh Dona Rosa!
-
Como lhe disse que estava de serviço, ela disse que ia ter consigo ao quartel!
Adiantou a dona Rosa.
Eu
dentro de meia hora, mais ou menos vou ai ter para tentar resolver esse
sarilho.
-
Agradecia, porque eu não consigo demovê-la da intenção!
Não
era difícil arranjar alguém que me substituísse, desde que o oficial de dia
aceitasse, pois eram vários os sargentos que, numa situação transitória, usavam
como dormitório a caserna de sargentos.
Tinha
reparado, sem lhe atribuir qualquer significado especifico, durante os poucos
dias que estivemos todos na dona Rosa, que a mais nova das filhas do sargento
me tratava com uma delicadeza diferente da que tratava os outros, mas achava
que tudo era normal, por principio não uso segundas intenções em qualquer tipo
de relacionamento, seja com homens, seja com mulheres; reservas mentais não
uso, mesmo que a experiência me recomendasse algum rigor, face a algumas
surpresas, quase todas agradáveis, confesso, mas mesmo estas não me teriam
surpreendido! Verdade que gosto de surpreender e ser surpreendido, mas tudo
deve ter os seus limites.
Aceite
a troca pelo oficial do dia, foi só entregar a Uzi e o cinturão e esperar que o
sargento levantasse o equipamento dele e um quarto de hora depois estava a
descer pelo carreiro da duna do Alvalade em direcção à Maianga.
Cumprimentei
todos e em particular fui conversar com a determinada adolescente. Como a não
conseguisse demover do intento, perguntei-lhe o que acharia ela e a família se
eu e o Magalhães, entretanto chegado, fôssemos acompanhá-la a casa e ceássemos
com ela e a família.
-
Todos sabem que eu vim aqui e vão ficar radiantes quando lá chegarmos!
Garantiu, com alegria estampada no rosto.
E
lá passámos parte da noite com a família que dias antes tinha chegado.
Ainda
contactámos várias vezes no ano seguinte, disse-lhe que tinha namorada, o tempo
foi esbatendo impulsos e a responsabilidade escolar ajudou.
Cerca
de dois anos depois eu regressaria a Portugal e ela terminaria o liceu, mas
ficou a promessa de nos mantermos em contacto, pelo menos uma vez por mês.
Já
com a Universidade de Luanda a funcionar, aluna do segundo ano da área de
Antropologia e Relações Internacionais, casou com um comerciante que eu
conhecia.
O
divórcio deu-se alguns anos depois, passando ela a exercer uma actividade não
revelada e que obrigava a deslocações frequentes a vários países; notei que não
iria dizer-me com exactidão o que fazia, adoptei o critério de manter tudo como
sempre esteve, um pouco à imagem da nossa invulgar e bela amizade.
Quando
estava em Portugal alguns dias que davam para nos encontrarmos, sempre o
fazíamos.
Aquilo
que mais nos terá definido como cúmplices duma idade que não muda, foi o acordo
que fizemos e que tinha a ver com a comemoração do seu quadragésimo
aniversário.
Foi
quase a repetição da situação da véspera de Natal em Luanda, no ano de sessenta
e um: telefonou-me a informar que estaria em Portugal por escassos dias, mas
fazia questão de comemorar os seus quarenta anos comigo, já que o Natal de
sessenta e um lho tinha recusado, disse a brincar!
O
local a combinar, mas que gostava que fosse aquele de que tínhamos já falado:
Vila Nova de Mil Fontes.
O
encontro foi na sexta-feira, fazia anos às duas da manhã de sábado. Alugámos um
espaço particular, sem outras pessoas a morar. Os quartos, dois, eram no
primeiro e último piso, ficando por nossa conta todo o fim-de-semana.
O
tempo colaborou com sol brilhante e quente durante o dia e as noites de uma
temperatura agradável para todas as iniciativas. E foram de deslumbramento, com
a Lua a reflectir nas aguas da enseada e nós no alto da falésia a falar de
Luanda e do nosso sentido de autonomia, que sempre respeitámos.
Vila
Nova de Mil Fontes seria o local da terra onde gostaria de estar ancorado e ali
fazer o que mais gosto: amar, escrever; amar, pintar; amar, ouvir boa música;
amar, amar, amar sempre e gozar da magia de um espaço privilegiado pela
natureza e agora de maior encanto por ter sido um lugar de eleição para outra
invulgar amiga, onde passou vários períodos de férias, inclusive no mesmo
primeiro andar, só não sendo certo que no mesmo quarto, na mesma cama em ferro,
modelo antigo.
VIII
As
alterações que ocorreram em Abril de mil novecentos e setenta e quatro e
setenta e cinco criaram condições para as pessoas, antes mais ou menos
isoladas, passarem a conviver mais, socializando os comportamentos e predispondo
a viver mais em comunidade.
Surgiram
as associações de caracter profissional, cultural, politico, religioso, um
pouco à maneira do que já era conhecido nos países onde a democracia, mal ou
menos mal, porque bem…bem, deixemos para depois, ou como algum influente as ia
sugerindo ou mesmo impondo. Trouxeram as condições suficientes para que a
generalidade das pessoas sentisse uma maior abertura ao diálogo, um abrandar de
tensões, um ambiente mais agradável, que nem as crispações de final de setenta
e cinco apagaram.
Numa
dessas associações, onde muitos participavam e se encontravam, fui conhecendo
pessoas que, morando na mesma cidade, nunca as tinha visto e muito menos falado
e criando laços de amizade que ainda hoje se mantêm nalguns casos.
A
seguir aos tumultuosos incidentes do Verão de setenta e cinco, em que a
associação viu a sua sede vandalizada, as pessoas voltaram a dispersar-se, mas
encontravam sempre uma forma, por vezes quase espontânea, de se juntarem,
discutirem a situação criada e a forma dela sair.
Não
tinham ainda decorrido dois anos quando nova sede foi encontrada, um amplo
edifício da zona histórica da cidade, onde um dos causídicos tinha o seu
escritório e que foi também vítima do vandalismo já antes referido, cedido à
associação em excelentes condições.
Vinda
da margem Sul do Tejo, da cidade de Setúbal, chegou a pessoa que dispunha de
condições para dinamizar o novo e enorme espaço, a ele dedicando todo o seu
tempo e saber.
As
novas condições mobilizaram os amigos para voltarem a juntar-se e muitos outros
se foram juntando, dando ao espaço uma vida social que nunca tivera antes.
Entre
as novas pessoas chegou uma professora do ensino secundário, leccionando
geografia, mãe solteira que, com alguma regularidade, coincidindo com as férias
mais alargadas, trazia a filha, de uns cinco anos, vinda de Braga onde vivia
com os avós, trajando uma sainha de pregas que a transformava numa boneca que,
pela sua simpatia e graciosidade, todos queriam cativar.
Por
qualquer razão que sei explicar a pequenita simpatizou comigo e tentava
mobilizar-me, talvez por eu apoiar e incentivar as suas iniciativas e ela
sentir que tinha espaço para desenvolver a sua criatividade.
A
pequenita, ao fim da noite, mais que cansada, era o meu colo que ela procurava,
se eu estivesse presente, para o seu primeiro sono, até que a mãe a levava para
casa.
A
criança de então que só nas férias aparecia, mal a mãe se fixou, já como
efectiva, trouxe a filha, aqui fazendo a primária e o liceu, passando para o
novo Instituto, onde se licenciou em línguas e administração.
Hoje
é uma mulher, pequena na altura, deixou-se engordar, mas o seu sorriso que
parece ter feito morada permanente nos seus lábios e olhos, acompanhado por
duas covinhas faciais são um encanto de simpatia.
IX
Alguns
anos passados sobre o Abril de setenta e quatro o meu amigo Adriano, formador e
formando de uma linguagem que só os surdos-mudos entendem, doente cardíaco há
vários anos, pai de duas meninas já às voltas com a escola, veio a falecer.
Eu
era visita frequente da casa deles, que ficava no trajecto entre a minha casa e
a sede da associação.
A
filha mais nova, a Ana, nasceu com um problema de formação, que consistia numa
abertura no céu-da-boca que era um problema, para a criança por ter sido
sujeita a várias intervenções sem que fossem obtidos resultados eficazes e para
os pais por acompanharem o sofrimento da filha e gastarem mais do que tinham.
Foi
a equipa de cirurgia que deu como terminada a sua capacidade de melhores
resultados obter, ficando a Ana com uma pequena alteração externa do lábio
superior, mas o mais complicado está na fala, sempre nasalada. É mãe de duas
crianças, neste tempo da narrativa.
A
outra irmã, uns dois anos mais velha, espertíssima e duma alegria contagiante,
contrastando com o ar calmo e de pouca alegria. Escrevia bem e muito, sobretudo
poesia, penso que grandemente influenciada pela Florbela Espanca, tendência que
se terá acentuado com a morte do Adriano.
Nunca
percebi muito bem porquê, mas a certa altura reparei que a miúda, ou porque
gostava da minha presença ou porque gostava de me ver a conversar com a mãe,
numa altura em que ambos estávamos sós, eu separado há alguns anos. Não sei nem
irei saber e para a narrativa nada traria de melhoria, há momentos da escrita
que não se dão bem com a ficção.
Fomos
vezes sem conta todos juntos ao cinema, numa pequena sala que funcionava junto
ao Bingo e hoje é a casa de oração ou igreja, não sei como é designado
correctamente, da Igreja Universal do Reino de Deus.
Continuamos
a ser amigos e as filhas também, a mais velha, licenciada em economia, fixada
em Lisboa, onde trabalha e a Ana trabalha, quando consegue, em Leiria.
Não
conheço a totalidade do seu trabalho poético, apenas me deixou ler, penso que
só para ser simpática, uns quantos ainda antes da minha fixação na Marinha
Grande.
X
Em
jeito de conclusão e resumida síntese, registarei que a queda aparatosa da
Rosinha, a Yorkshire da Miguel Bombarda, saltando do colo da dona para correr
ao meu encontro mal saí da Rodrigues Lobo, veio a despertar-me,
inevitavelmente, para esta série de pequenas coincidências, mas que representam
um vasto leque de interpretações, sem conclusões razoáveis, pois outro ponto em
comum não havia, além do nome entre todas as intervenientes, pequenas e
grandes, que se foram situando no percurso duma vida, bem irregular, elas com
papeis tão diversos, mas todos de grande beleza:
-
A miúda da noite de Natal de sessenta e um em Luanda, amizade que ela fez
questão de manter viva até ao limite, sempre que as condições lho permitissem;
-
A pequenita que se manifestava de forma tão exuberante, ao ponte de se ferir e
alterar meu percurso para evitar que me visse quando na rua brincava;
-
A pequenita de Braga, hoje mulher, licenciada e a leccionar, com o sorriso mais
cativante que alguma vez vi;
-
A filha mais velha do Adriano que, sem que alguma vez o dissesse, sempre gostou
de me ter perto ou da mãe, não sei; também ela licenciada e a trabalhar,
mantendo aquele sorriso aberto e franco que sabe tão bem;
-
Por fim a especial amiga de tantas coincidências, que nem a parapsicologia teve
resposta séria, pois outra não permitiria.
A
primeira foi sempre como um cometa, sem regra, que só aparecia de
tempos-a-tempos e sem aviso prévio; a última é a que nunca entenderei e que me
tem proporcionado momentos de muita beleza, viagens que jamais pensei fazer e
um campo fértil para a criatividade e não pouca vaidade!
-
Dedique-se à escrita que é o que você faz bem; não disse: deixe de pintar,
apenas por cortesia.
Só
que eu, querida Amiga, para que um dia possas entender, não costuma fazer
coisas para depois agradarem a alguém; o meu narcisismo, que me recuso a
admitir, vai ao ponto de me pressionar a fazer, sobretudo, o que a mim vai
dando algum prazer! E vou continuar “até que a mão me doa”, como a Maria da Fé,
fadistava “ Cantarei até que a voz me doa” (desculpai este pequeno atrevimento
de comparação!)
XI
A
primeira e única vez que fui a Berlin, a convite da última das Susanas, que
entretanto mudou para o Sul da grande Alemanha por motivos profissionais, não
dela, mas do companheiro, foi para celebrar com eles e muitos outros, o seu
quadragésimo aniversário; isto sucedeu em dois mil e cinco e logo dois anos
depois fui estar com eles, em Heidenheim, e daí para cá tem sido quase todos os
anos, outras vezes são eles ou ela só que vêm a Portugal, espreitar uns raios
de Sol brilhante e quente, que é o que mais falta notará lá no país dos doges.
Em
Berlin deixou, a contas com a vida universitária (como o tempo passa!) a Iris
Margarida, sempre um espanto de beleza e ternura e muitos outros valores que
não serão aqui mencionados, mas que ela sabe que os tem e eu, sempre que acho
oportuno, não regateio o elogio.
Ficou
também, e aqui regresso à Rosinha que catalisou este escrito e por isso é dela
o título, para recordar que com a Iris Margarida ficou a pequena Megi, mais
clara de pelagem, mas igualmente simpática, uma Yorkshire talvez mais nova e
que passou a integrar e ligar o passado e o presente, afinal de contas, um
intercâmbio emocional entre Alemanha e Portugal.
Às
duas, Rosinha e Megi, estejam onde estiverem, terão sempre o meu apreço e
gratidão, pois também elas passaram a fazer parte deste registo mental que
parece não ter fim.
Reis
Caçote
2003/dig.01/03/14
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NA RUA À ESQUERDA FOI ONDE MOREI |
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PODERIAM SER A ROSINHA E O ELVIS |
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ALBERGARIA DO TERREIRO, MINHA ÚLTIMA MORADA |
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A ROSINHA SERIA UMA IRMÃ DESTA |
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PRAÇA RODRIGUES LOBO E A RUA DA ROSINHA, A ÚLTIMA À DIREITA |
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